04 Fevereiro 2023
Durante a Guerra Fria, dizia-se que, para ser Kremlinologista, bastava ser criminologista. É lamentável que, hoje em dia, o estudo da Igreja tenha se reduzido à “vaticanologia”, e que a vaticanologia corra o risco de se tornar criminologia.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado por La Croix International, 01-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Após o primeiro mês de 2023, parece que há menos páginas reconfortantes da história da Igreja para equilibrar o crescente número de páginas vergonhosas. Os últimos cinco anos do pontificado de uma década de Francisco não apresentaram nenhuma falta de dificuldades ligadas à crise dos abusos – desde sua desastrosa viagem ao Chile em janeiro de 2018 até as revelações do mês passado sobre o artista jesuíta e suposto abusador em série Marko Rupnik.
As recentes mortes de Bento XVI e do cardeal George Pell trouxeram à tona mais lembranças desse passado desagradável. Seus históricos em relação à crise dos abusos e a governança do Vaticano são, de formas diferentes, problemáticos, controversos e improváveis de serem resolvidos tão cedo.
Nos Estados Unidos, um exemplo paradigmático da dificuldade de fazer as contas com o passado – tanto no nível individual quanto no coletivo – foi o caso do arcebispo que caiu em desgraça e ex-ícone do catolicismo do Vaticano II Rembert Weakland, que faleceu em agosto de 2022.
O que parece ser um estado de crise sem fim também paralisou a capacidade da Igreja de fazer as contas com as partes problemáticas de seu passado. É bom que tenhamos superado as atitudes cavalheirescas do Vaticano II, quando, por exemplo, os Padres conciliares aprovaram esta passagem na declaração Nostra aetate, exortando todos “a que, esquecendo o passado, sinceramente se exercitem na compreensão mútua e juntos defendam e promovam a justiça social, os bens morais e a paz e liberdade para todos os homens” [n. 3]. Agora, não é possível esquecer o passado, pois ele está sempre aqui na nossa frente.
É claro que o comportamento pessoal das lideranças da Igreja de hoje não é menos santo do que o daqueles que vieram antes — especialmente os de um passado relativamente distante. Já houve tempos piores: a passagem precoce dos cristãos de perseguidos a perseguidores; a era da “pornocracia” papal no fim do primeiro milênio (veja-se especialmente o Papa João XII); a epidemia de crimes mesquinhos e hediondos cometidos pelo clero no início do período moderno; o conluio de bispos e cardeais com ditadores e criminosos de guerra.
Mas a percepção pública da Igreja hoje é de que ela é mais corrupta do que no passado. O escândalo dos abusos sexuais tem muito a ver com isso, mas, ironicamente, o escândalo também é outra tentativa da Igreja do pós-Vaticano II de lidar com as questões preocupantes que vieram antes – a começar pelos esforços do Concílio e, depois, de Paulo VI de reexaminar o passado a fim de avançar nas relações ecumênicas e inter-religiosas.
Uma tentativa importante, embora incompleta e de alguma forma apologética, também foi feita durante a preparação e a celebração do Grande Jubileu do ano 2000. À sua maneira, João Paulo II tentou moldar o Jubileu como um momento de conversão e de exame de consciência para a Igreja com o discurso que ele proferiu aos cardeais reunidos para o consistório extraordinário de 13 de junho de 1994: “A Igreja precisa da metanoia, ou seja, do discernimento sobre as faltas históricas e as negligências dos seus filhos em relação às exigências do Evangelho”. Esse tema foi ampliado ainda mais na carta apostólica Tertio millennio adveniente, de 10 de novembro de 1994, e levou à celebração penitencial na Basílica de São Pedro em 12 de março de 2000.
Em certo sentido, porém, essa tentativa de metanoia fracassou – e devemos nos lembrar disso agora que a preparação do Jubileu de 2025 está em andamento.
A crise dos abusos fez mais do que varrer o triunfalismo do Jubileu do ano 2000. Também revelou como a Igreja lidou inadequadamente (quase embaraçosamente) com sua “purificação da memória”, considerando-se o que ocorreu logo depois: a proteção dada em ambos os níveis institucional e local ao cardeal Bernard Law, ao Pe. Marcial Maciel e a outros abusadores e facilitadores notórios; e o deserto que cresceu entre a teologia católica e a Igreja institucional.
Em outro sentido, a indignação provocada pela crise dos abusos e a crise eclesial de modo geral são sinais de uma metanoia contínua. Se julgamos a Igreja e o cristianismo como profundamente diferentes daquilo que os Evangelhos nos levaram a esperar, fazemos isso precisamente porque nos recusamos a ignorar essas expectativas. É por isso que sentimos o escândalo de sua negação. Se conseguíssemos olhar a Igreja fora desse horizonte de expectativa, o escândalo realmente acabaria.
Mesmo assim, o problema de memória da Igreja afeta negativamente as chances de uma metanoia eclesial. Em breve chegará o tempo de articular uma hermenêutica do passado da Igreja. Isso terá de incluir o que foi negligenciado no Vaticano II, na Igreja pós-Vaticano II de Paulo VI e nos pedidos de perdão de João Paulo II (Bento XVI não acreditava na fecundidade desses mea culpa, até que a crise dos abusos o fez voltar à realidade).
O Papa Francisco sugeriu algo como a necessidade de reexaminar a história à luz do escândalo dos abusos. Em seu discurso de 21 de dezembro de 2018 dirigido à Cúria Romana, ao fim de um ano que começou com a catastrófica visita ao Chile e ao Peru, e que também incluiu o caso McCarrick, Francisco falou sobre a necessidade de uma hermenêutica adequada da história: “Que fique claro que, diante dessas abominações, a Igreja não poupará esforços para fazer todo o necessário para entregar à justiça qualquer pessoa que cometeu tais delitos. A Igreja jamais tentará encobrir ou subestimar nenhum caso. É inegável que alguns responsáveis, no passado, por leviandade, por incredulidade, por despreparo, por inexperiência – devemos julgar o passado com a hermenêutica do passado – ou por superficialidade espiritual e humana, trataram muitos casos sem a devida seriedade e prontidão”.
No entanto, isso não está ocorrendo ainda. Provavelmente, é a única maneira de dar uma chance ao “processo sinodal”. Mas a Igreja mantém uma postura defensiva – defendendo sua autoridade assim como sua tradição, inclusive a defesa do Vaticano II dos ataques dos tradicionalistas. A política eclesial domina o debate no mais alto nível: o foco no pontificado do Papa Francisco, sua possível renúncia e as manobras para o próximo conclave (veja-se o manifesto escrito e posto para circular anonimamente no ano passado pelo cardeal George Pell, no qual ele criticava Francisco duramente).
Quase 20 anos atrás, em 2004, em sua Conferência de Candlemas no Boston College intitulada “Peregrinos. A jornada incerta dos católicos estadunidenses”, Paul Elie disse:
“Minha opinião é de que o escândalo moldará a peregrinação dos católicos estadunidenses de hoje da mesma forma que o Concílio Vaticano II moldou a peregrinação da geração anterior à nossa. O presidente da Conferência dos Bispos caracterizou recentemente o escândalo dos abusos sexuais clericais como ‘histórico’. Assim o é, mas não no sentido dado por ele. Ele não faz parte do passado; é uma provocação e um ponto de partida.”
Onde estamos nessa peregrinação? A globalização da crise dos abusos não está no passado; a situação que Elie descreveu para os católicos estadunidenses também se globalizou. O escândalo molda a peregrinação de todos os católicos do mundo da mesma forma que o Concílio Vaticano II moldou a peregrinação dos católicos daquela geração.
Além disso, na última fase dos escândalos da Igreja, não tem sido dada muita atenção à forma como a Cúria Romana – e, portanto, o papa – lidou com os casos particulares. De alguma forma, isso mudou o significado do centro simbólico da Igreja ao longo do caminho dessa peregrinação. Um certo romance católico com Roma ainda se sustenta, mas o apego dos católicos a esse lugar e à sua história muda drasticamente de acordo com a opinião deles sobre o papa no poder em um determinado momento.
Semelhante a um período pós-guerra civil, a mistura entre escândalo e mentalidade de guerra cultural criou uma memória dividida, em que lados opostos veem o outro lado como criminoso. Esse fenômeno é visível tanto dentro da Igreja quanto fora dela. E isso significa que os partidos de cada lado do espectro ideológico veem algo na Igreja institucional que podem condenar como inimigo.
Durante a Guerra Fria, dizia-se que, para ser Kremlinologista, bastava ser criminologista. É lamentável que, hoje em dia, o estudo da Igreja tenha se reduzido à “vaticanologia”, e que a vaticanologia corra o risco de se tornar criminologia. Não é essa a “Igreja da misericórdia” sobre a qual o Papa Francisco tem falado nos últimos 10 anos.
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Os problemas de memória da Igreja: a importância do passado… e também do presente. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU