07 Dezembro 2022
A poucos meses do 10º aniversário de sua eleição, o Papa Francisco se vê à frente de uma Igreja atravessada por pulsões e impulsos radicalmente diferentes.
A reportagem é de Francesco Peloso, publicada em Domani, 02-12-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Surgem visões opostas sobre o futuro do catolicismo entre bispos e conferências episcopais. A discussão cresce mais por contraposições do que pela busca de possíveis mediações.
A esse aspecto geral, somam-se outros dados críticos internos à vida da Cúria Romana: como o longo processo do escândalo da venda do imóvel londrino da Sloane Avenue com recursos da Secretaria de Estado.
O caso, que resultou em um prejuízo de mais de 100 milhões de euros para o Vaticano, levou Francisco e seus colaboradores a acelerarem alguns capítulos da reforma financeira (entre outras coisas, a Secretaria de Estado não poderá mais administrar seus próprios recursos econômicos), mas também trouxe à tona indícios de má gestão, amadorismo e corjas de poder grandes e pequenas, enquanto, depois de dezenas de audiências, ainda não está claro que tipo de crimes foram cometidos e por quem.
O envolvimento do cardeal Angelo Becciu, ex-sostituto para os assuntos gerais da Secretaria de Estado, em diversos filões de investigação, nada mais fez do que prejudicar ainda mais a imagem de uma Cúria já gravemente comprometida por escândalos e casos judiciais no passado recente.
Nesse sentido, a morosidade processual e a sucessão de revelações relacionadas com o processo são elementos que não parecem ajudar a solucionar o caso e a apurar a verdade.
Nesse ínterim, Francisco conseguiu levar a bom termo a reforma da Cúria, o que não é pouca coisa, se considerarmos que esse objetivo estava na base do mandato recebido no conclave pela ampla maioria dos cardeais que o elegeram.
A nova constituição apostólica Praedicate evangelium entrou em vigor apenas alguns meses atrás, e seus efeitos certamente serão vistos com o tempo.
Deve-se destacar, entre outras coisas, que todas as várias peças da reforma financeira promulgada nos últimos anos pelo papa com um motu proprio, como a transparência dos orçamentos, o fim da discricionariedade absoluta de gasto dos vários dicastérios vaticanos, a regras para contratação, a instituição de órgãos de controle e planejamento dos investimentos, o papel dos diversos dicastérios econômicos, passaram a fazer parte do novo quadro institucional.
No entanto, os problemas não acabaram. Prova disso é a recente decisão tomada por Francisco de mandar supervisionar a Caritas Internationalis, o órgão que reúne as mais de 160 entidades caritativas espalhadas pelo mundo da Igreja Católica e colocadas sob o controle do Vaticano.
Essa decisão afeta tanto a capacidade de gestão interna de pessoal e da organização do trabalho, evidentemente carentes, quanto a necessidade de tornar o órgão mais capaz de intervir adequadamente nos diversos cenários de crises humanitárias que se abrem no mundo.
O fato é que quem pagou o preço por essa ordem de supervisão foi o cardeal filipino Luis Antonio Tagle, ex-presidente da Caritas Internationalis e prefeito do Dicastério para a Evangelização.
Ao mesmo tempo, cresce o papel do cardeal jesuíta canadense Michael Czerny, à frente do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral – o superministério para as questões sociais e ecológicas criado pelo papa – “competente em relação à Caritas Internationalis”.
Por outro lado, não pode passar despercebido que outro jesuíta, Juan Antonio Guerrero Alves, prefeito da Secretaria para a Economia, renunciou ao cargo por “motivos pessoais” em 30 de novembro. Em seu lugar, foi nomeado o secretário do mesmo dicastério, o “doutor Maximino Caballero Ledo”, ou seja, um leigo, especialista em gestão financeira, espanhol de nascimento e estadunidense por adoção.
E essa também é uma pequena revolução para os padrões vaticanos: um leigo no comando das finanças do Vaticano, de fato, é um evento impensável apenas há poucos anos.
Nesse contexto já nada simples, Bergoglio convocou uma discussão sem precedentes dentro do mundo católico ao convocar um Sínodo mundial sobre o tema “Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”, aberto a todas as realidades eclesiais, aos leigos, às paróquias, às associações, aos movimentos, para tentar levar todo o corpo da Igreja Católica a se deparar com a modernidade.
Francisco não quis impor mudanças de cima, mas buscou o caminho de um reformismo mais lento, laborioso, porém mais compartilhado por todos os componentes eclesiais.
A fase final do Sínodo lançado em 2021 ocorrerá em dois tempos: em Roma em meados de 2023 e em meados de 2024. Uma extensão desejada pelo próprio pontífice para favorecer o encontro e evitar divisões graves.
No entanto, esse gigantesco esforço para um debate interno baseado na compreensão recíproca está evidenciando, por enquanto, as divisões de um mundo católico que parece não ser mais capaz de se reconhecer em uma elaboração teológica, pastoral e doutrinal unitária.
O papel dos leigos, a ordenação das mulheres, o reconhecimento de uniões entre pessoas do mesmo sexo, a ordenação de “viri probati”, ou seja, de leigos de comprovada fé e reconhecidos pelas suas comunidades para enfrentar a escassez de padres em muitas partes do mundo, são alguns dos temas que levantam discussão
Quem pressiona mais ao suscitar aberturas sobre esses temas é a Igreja alemã, promotora de um Caminho Sinodal que preocupa muito Roma, tanto que, na recente visita “ad limina” dos bispos alemães ao Vaticano, o cardeal canadense Marc Ouellet, prefeito do Dicastério para os Bispos, pediu uma “moratória” para o sínodo em curso na Alemanha, mas recebendo como resposta uma clara recusa de seus coirmãos alemães.
Embora com tons menos rigorosos, as mesmas temáticas foram levadas a Roma pelos bispos da Bélgica nos últimos dias. Não só isso: com uma abordagem mais problemática, trata-se das mesmas questões levantadas nos documentos de síntese de vários sínodos nacionais.
No entanto, por trás dessas questões não resolvidas que emergem na superfície, escondem-se questões estruturais. A concepção católica da sexualidade, que entrou em crise há muito tempo, cruzou-se com o grande “moloch” do escândalo dos abusos sexuais, que, há mais de 20 anos, atinge a Igreja como um ciclone.
Assim, na Alemanha, mas também na Austrália, por exemplo, o impulso para a reforma do celibato obrigatório e do papel dos leigos ampliou o pedido de uma desclericalização da instituição, julgada demasiadamente fechada em si mesma em defesa dos seus membros, também no que diz respeito ao caso dos abusos de menores.
Pelo contrário, nos Estados Unidos, o episcopado como um todo tem se mantido em posições fortemente conservadoras e oposicionistas em relação ao pontificado bergogliano, não só e nem tanto pelas posições assumidas pelo papa – que se mantém fortemente contrário ao sacerdócio feminino, por exemplo –, mas pela própria ideia de Igreja proposta por Francisco, aberta ao diálogo, disposta a questionar as próprias certezas graníticas, pronta para acolher a todos e, sobretudo, não se deve esquecer, alinhada primeiramente ao lado do pobres e dos excluídos.
Por isso, não agrada à frente conservadora dos bispos dos Estados Unidos, que recentemente elegeu como seu presidente até mesmo o ordinário militar, o arcebispo Timothy Broglio, a posição do pontífice sobre o aborto.
Bergoglio, de fato, expressa um julgamento claramente negativo e alinhado com o magistério sobre a interrupção da gravidez, mas ao mesmo tempo pede aos bispos que não politizem o assunto, o que uma parte da Igreja estadunidense tem feito incansavelmente nos últimos anos.
É, portanto, nessa lacuna, nesse risco de duplo cisma entre reforma e neotradicionalismo, real ou apenas ameaçado, que a Igreja de Francisco entrou em crise, mostrando toda a dificuldade de permanecer como um corpo único, enquanto modelos de cristianismo alternativos vêm à tona e se desafiam.
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As crises que abalam o pontificado de Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU