23 Dezembro 2022
Em seus votos de Natal à Cúria Romana, Francisco fala da atenção dos "demônios educados", que podem enganar aqueles que servem a Igreja com a convicção de que não seja mais necessário se converter. E novamente fala da Ucrânia, das guerras no mundo e da paz que começa pelos corações: diante de Jesus que vem "nós depomos todas as armas de todos os tipos".
A reportagem é de Alessandro De Carolis, publicada por Vatican News, 22-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Podemos nos perder também em casa". Onde tudo está aparentemente em ordem por fora, na forma das coisas e das instituições, enquanto há um "inferno" de luvas brancas, educado como sabe ser um demônio, que trabalha para levar à perdição os corações consagrados ao serviço do Evangelho. Corações convencidos de que agora estão a salvo do mal e, portanto, não precisam de "conversão" ou de praticar "uma das virtudes mais úteis", a da "vigilância". É como um aviso aos navegantes – especialmente na tempestade de um mundo que vive de guerras em pedaços e corre o risco sem a paz de transformar a justiça “em vingança” - o discurso do Papa aos cardeais, bispos e membros da Cúria Romana, reunidos na Sala da Bênção do Palácio Apostólico para a tradicional troca de votos antes do Natal.
Um discurso que prepara à escuta com o convite a "retornar ao essencial", o que significa saber agradecer constantemente a Deus pelos bens recebidos, para chegar ao ponto crucial, igualmente necessitado de constância, ou seja, a "conversão", que para o Papa não deve ser traduzida apenas com um genérico "tomar as distâncias do mal", mas significa "pôr em prática todo o bem possível". Tanto o Concílio, que celebrou o 60º aniversário de seu início em 2022, quanto o percurso sinodal da Igreja de hoje, observa, foram e são ocasiões de conversão. Uma atitude simplesmente incontornável para um cristão.
É muito pouco denunciar o mal, mesmo aquele que serpenteia entre nós. O que se deve fazer é decidir uma conversão diante dele. A simples denúncia pode nos dar a ilusão de ter resolvido o problema, mas na realidade o que importa é fazer mudanças que nos coloquem em condições de não mais nos deixarmos aprisionar pelas lógicas do mal, que muitas vezes são lógicas mundanas.
E é nesse ponto que Francisco, como já fez nas audiências gerais dedicadas ao tema do discernimento, evoca a "vigilância", definida como uma das "virtudes mais úteis a praticar", especialmente para as pessoas que vivem a serviço de Deus. Para elas, o maior risco, diz ele, é o "fixismo", isto é, a "crença oculta de que não precisam de mais nenhuma compreensão do Evangelho". É o erro de querer cristalizar a mensagem de Jesus em uma única forma sempre válida”, em vez de continuar a “traduzi-la em linguagens e modos atuais” à maneira de São Paulo. Uma rigidez que, segundo o Papa, contém a incapacidade de reconhecer que o mal evolui e que as tentações, uma vez expulsas, podem reaparecer piores do que antes, mas com mais elegância – um tema recentemente mencionado várias vezes por Francisco.
São os "demônios educados": eles entram educadamente, sem que se perceba. Só a prática quotidiana do exame de consciência nos pode fazer com que nos demos conta disso.
É por isso que "podemos nos perder até em casa", como recorda a parábola do filho pródigo. Ou seja, adverte Francisco, "dentro dos muros da instituição, a serviço da Santa Sé, no próprio coração do corpo eclesial", pensando erroneamente "que estamos seguros, que somos melhores, que não temos mais que nos converter". E aqui o Papa explica a razão de algumas de suas palavras serem às vezes duras:
Corremos mais perigo do que todos os outros, porque somos tentados pelo "demônio educado", que não chega fazendo barulho, mas trazendo flores. Se às vezes digo coisas que podem soar duras e fortes, não é porque não acredite no valor da doçura e da ternura, mas porque é bom reservar carícias para os cansados e oprimidos, e encontrar coragem para "afligir os consolados", como gostava de dizer o servo de Deus dom Tonino Bello, porque às vezes a sua consolação é só engano do demônio e não dom do Espírito.
Neste ponto, Francisco muda de direção, dedicando uma série de reflexões ao tema mais quente desta fase da história do mundo. Há uma paz martirizada tanto quanto a Ucrânia e os muitos países onde ela é sistematicamente violada e nos quais – diz referindo-se a um pensamento do teólogo Bonhoeffer morto em um campo de concentração – “só podemos reconhecer Jesus crucificado”. E lembra que sempre “começa no coração de cada um”, o único lugar por onde começar se realmente “queremos que cesse o clamor da guerra”. Não só a guerra dos mísseis, mas também, enumera o Papa, a violência das palavras, psicológica, do abuso de poder, a violência “oculta das fofocas”. Toda guerra, conclui, “para ser extinta precisa de perdão, caso contrário a justiça se torna vingança, e o amor é reconhecido só como uma forma de fraqueza”.
Diante do Príncipe da Paz que vem ao mundo, depomos todas as armas de todos os tipos. Que cada um não se aproveite de sua própria posição e função para mortificar o outro. Misericórdia é aceitar que o outro também possa ter os seus limites (...) o perdão é conceder sempre uma outra possibilidade, ou seja, entender que nos tornamos santos por tentativas.
Ao final, como dom aos presentes, o Papa ofereceu exemplares de dois livros. Trata-se de Vita di Gesù escrito pelo nosso diretor editorial Andrea Tornielli e Passiamo all’altra riva de dom Benito Giorgetta. O primeiro, publicado pela Piemme, (Casale Monferrato, 2022), é um texto em que a narração entre história e imaginação da vida do Nazareno se alterna com as palavras de comentário de Francisco, que também assina a introdução do volume. O segundo, escrito pelo sacerdote e pároco de San Timoteo a Termoli, em diálogo com Luigi Bonaventura, narra o passado desse ex-mafioso e sua experiência agora como colaborador da justiça. O livro tem prefácio do Papa e posfácio de dom Luigi Ciotti.
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O Papa à Cúria: sejamos vigilantes, o demônio sempre volta, corremos mais perigo do que os outros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU