25 Agosto 2018
“É hora de revisitar os modelos básicos de organização eclesial que o Concílio de Trento impôs à Igreja Católica.”
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado por Commonweal, 23-08-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Com as recentes revelações sobre Theodore McCarrick, as novas investigações sobre os seminários de Boston e de Lincoln (Nebraska), e o relatório do grande júri da Pensilvânia, a crise dos abusos sexuais atingiu um novo estágio.
Se esta é, como muitos acreditam, a crise mais séria na Igreja Católica desde a Reforma Protestante, então a análise desse fracasso sistêmico da Igreja institucional precisa assumir uma visão de longo prazo, comparando esse período na história da Igreja com outros, a fim de descobrir exatamente onde as coisas deram errado.
Alguns – por exemplo, Ross Douthat – pensam no período atual na história da Igreja como um “assentamento” estabelecido pelos pontificados pós-Vaticano II que vieram antes de Francisco, caracterizado por mudanças na abordagem católica à moral sexual e pelas enormes transformações sociais e culturais dos anos 1960.
Esse modo de entender a história recente da Igreja é popular entre aqueles que conectam o abuso sexual clerical às reformas do período do Vaticano II e que, não coincidentemente, desconfiam da abordagem do Papa Francisco às questões ligadas a casamento, família e sexo, especialmente homossexualidade.
Essa abordagem, que começa a partir do Vaticano II, tende a ignorar a longa história das instituições que presidiram o fracasso da Igreja ao lidar com o abuso sexual clerical. Para entender seu papel na crise atual, é preciso olhar para três elementos-chave que tornaram possível a “reforma católica” que começou com o Concílio de Trento (1545-1563), elementos que o Vaticano II não mudou tanto quanto tendemos a pensar: a formação dos padres nos seminários, a estrutura diocesana baseada no pároco e no bispo, e o papel dos leigos.
O currículo dos seminários católicos mudou algumas vezes ao longo dos últimos cinco séculos, mas o modelo básico, concebido pela Igreja tridentina, não mudou. Vale a pena lembrar que muitas dioceses da Europa não tinham um seminário em funcionamento até meados do século XVII – um século após o término do Concílio de Trento.
Outras instituições tridentinas envelheceram muito bem (o papel da diplomacia papal no mundo global de hoje, por exemplo), mas os seminários claramente não o fizeram. O seminário diocesano tridentino foi construído para a formação de padres recrutados em áreas cuja cultura católica fornecia a formação primária a um grupo muito maior de potenciais candidatos. Este não é mais o caso, o que é uma das razões para a proliferação de outros tipos de seminários para a formação de padres pertencentes a um movimento eclesial particular.
Deixando de lado as orientações teológicas e ideológicas muito diferentes desses diferentes movimentos (por exemplo, os Legionários de Cristo, de um lado do espectro, e Santo Egídio, de outro), eles fornecem alguma formação humana básica e são capazes de selecionar candidatos para o sacerdócio de uma forma que as paróquias locais não podem mais.
Nos últimos anos, muitos seminários diocesanos se fundiram em seminários interdiocesanos ou regionais, onde estudantes de 19 anos vivem e estudam juntos com homens muito mais velhos com “vocações maduras”. Além disso, o fenômeno dos seminaristas vagantes – homens dispensados de um seminário apenas para serem admitidos em outro que esteja procurando por algum candidato minimamente viável – revela que alguns bispos estão tão ansiosos para manter seus seminários abertos e tão desesperados por vocações que fecharão os olhos para os problemas que levaram outro seminário a dispensar alguém.
Além disso, o modelo do seminário tridentino ainda reflete a ideia pré-moderna de que os fiéis não têm nenhum direito diante da hierarquia: os seminaristas ainda dependem totalmente dos seus superiores para o seu futuro. De acordo com a lei canônica, os seminaristas têm muito menos direitos na Igreja do que os padres e outros clérigos. Isso significa que, do ponto de vista de um seminarista, o seminário pode facilmente se tornar – e muitas vezes se torna – uma instituição que exerce uma espécie de poder totalitário sobre as suas vidas. Seu isolamento quase monástico do resto da sociedade e a mediocridade de muitos programas de formação tornaram-se mais um problema hoje do que há quatro ou cinco séculos, quando havia menos escrutínio público da cultura clerical. A cultura anacrônica e insalubre dos seminários fez deles um lugar onde as vocações frequentemente vão morrer.
A paróquia tornou-se a estrutura básica da Igreja local na Europa por volta do século XIII. No início do período moderno e ao longo dele, o catolicismo passou pela chamada “paroquialização” – em que o ministério paroquial diocesano tornou-se o modelo paradigmático do ministério ordenado, para a diminuição de outras formas de ministério (por exemplo, as ordens religiosas monásticas e mendicantes e as confrarias). Isso fazia parte do esforço do Concílio de Trento para colocar todos os elementos da Igreja sob o controle hierárquico dos bispos, um esforço que surgia a partir de uma compreensão territorial da Igreja.
Foram em grande parte os bispos que limparam a Igreja nos séculos XVI e XVII – homens como Carlos Borromeu em Milão – ao implementar as reformas de cima para baixo do Concílio de Trento. Agora, no século XXI, resta saber se essa abordagem episcopalista pós-Trento e pós-Vaticano II em relação à reforma da Igreja ainda é possível em uma Igreja que sofre com a crise dos abusos sexuais, uma crise agravada pela negligência episcopal e pela prevaricação.
Os outros protagonistas principais da reforma católica – os governantes católicos e as ordens religiosas – não estão mais em condições de ajudar os bispos. Quanto ao papado, que o Concílio de Trento considerava como o principal agente e garantidor da reforma, sua própria credibilidade foi minada pelo fracasso dos bispos de uma maneira que não ocorreria antes de Trento. Isso porque, nos séculos entre Trento e o Vaticano II, o papado foi bem-sucedido ao exigir das Igrejas locais e das autoridades políticas um controle quase ilimitado sobre a nomeação dos bispos, algo novo na história da Igreja.
Agora, quando um bispo erra, isso reflete mal sobre o julgamento dos papas que o nomearam ou o promoveram. Até o século XVIII, pelo menos, a nomeação dos bispos tinha sido um esforço conjunto do papado, dos reis e príncipes e das elites locais. Isso tornou outros poderes além do papado parcialmente responsáveis pela reforma da Igreja, mas também pela corrupção da Igreja, que agora é algo que os bispos parecem possuir inteiramente, quer essa percepção seja justa ou não (e, às vezes, não é: bispos e padres muitas vezes não estavam sozinhos ao ignorar ou encobrir o abuso sexual).
Historicamente, quando a Igreja tinha que corrigir os abusos e a corrupção dentro de suas próprias fileiras, a hierarquia podia recorrer à ajuda dos leigos. Mas, naquela época, “o laicato” significava as elites católicas e os príncipes católicos: não é isso o que ele significa hoje.
Os leigos de hoje diferem não apenas dos leigos do período pós-Trento, mas também da ideia de laicato que se tinha até o Vaticano II. A participação dos leigos no governo da Igreja era simplesmente inconcebível. Os leigos tinham o direito de ser governados; eles não tinham o direito de governar. Esse paternalismo em relação ao laicato – segundo o qual, por exemplo, os leigos poderiam ser “teólogos” apenas em uma mediação entre fé e cultura, mas os teólogos leigos não podiam substituir, de modo algum, os teólogos ordenados – desapareceu. O crescente escrutínio hoje da liderança clerical da Igreja pelos meios de comunicação seculares e a crescente desfiliação dos católicos da Igreja institucional estão completamente fora de sintonia com o modo como a Igreja compreendia o laicato entre Trento e o Vaticano II.
Essa nova fase da crise dos abusos sexuais clericais é mais uma crise da Igreja tridentina do que da Igreja do Vaticano II, porque a Igreja na qual esse abuso ocorreu é, em termos da sua estrutura institucional, ainda essencialmente tridentina. O esforço para reformar a Igreja à luz do que sabemos agora sobre os abusos sexuais e os abusos de poder deve olhar mais para trás do Concílio Vaticano II, que não abriu tanto uma nova era, mas começou a fechar uma era antiga cujos remanescentes ainda estão entre nós.
De um ponto de vista institucional, a Igreja do Vaticano II, uma Igreja comprometida com o sacerdócio de todos os fiéis, ainda está em um estágio muito inicial de construção. Algumas das inovações institucionais do Vaticano II – por exemplo, os conselhos pastorais em nível paroquial e diocesano – ainda não são muito populares nem entre o clero nem entre os leigos. Muitos católicos ainda se contentam em deixar que o padre cuide de tudo ou simplesmente desistiram da esperança de uma Igreja cogovernada pelos leigos.
Até mesmo voltar à letra do Concílio de Trento poderia ajudar a tornar a Igreja mais responsável. Por exemplo, Trento propôs inovações institucionais – como a celebração frequente dos sínodos diocesanos e dos conselhos provinciais – que logo foram arquivadas quando a Igreja da Contrarreforma tornou-se cada vez mais centralizada.
Enfrentar os fracassos que tornaram possível a crise dos abusos sexuais envolverá muitas mudanças – mudanças na relação da Igreja com as autoridades civis e a justiça criminal, mudanças culturais e espirituais, mas também mudanças na estrutura da própria instituição. Finalmente, é hora de revisitar os modelos básicos de organização eclesial que o Concílio de Trento impôs à Igreja Católica.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A longa sombra de Trento: a crise dos abusos, dos seminários, das dioceses e do laicato. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU