01 Fevereiro 2023
A morte de Bento XVI marca o fim de uma era. De repente, alguns contestam com mais intensidade a transição para uma Igreja sinodal.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em La Croix International, 26-01-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Alguém facilmente poderia perder a conta de quantos livros foram publicados – ou estão prestes a ser publicados postumamente – por Joseph Ratzinger -Bento XVI. E há os livros daqueles bispos e cardeais que se referem ao falecido papa e ex-chefe doutrinário como suporte a seus pontos de vista sobre as questões que estão no centro do debate eclesial hoje. Sem falar da enxurrada de entrevistas supostamente noticiosas que alguns desses prelados têm concedido. Essa onda de publicações começou com uma velocidade notável logo nas primeiras horas após a morte de Bento XVI, antes mesmo de seu funeral ser celebrado.
Isso indica como a mídia pode dominar os debates intraeclesiais – um ponto que Ratzinger entendeu e enfatizou com frequência, e que seus seguidores deveriam ter recebido e aplicado a si mesmos. Em parte, é tudo marketing. Mas também é tudo política eclesial, vaidade e vingança pessoal, embora não esteja claro o que é mais importante.
A morte de Bento XVI marcou o fim de uma era e foi um “pontapé inicial para o conclave”, embora o Papa Francisco ainda esteja totalmente no comando da governança da Igreja e não dê sinais de desaceleração ou de que está pronto para se afastar, como fez seu antecessor alemão.
O primeiro pós-Vaticano II chegou a um fim definitivo com a morte de Ratzinger. Ela marca outro ponto de transição no contexto do Concílio Vaticano II (1962-1965), convocado por João XXIII. Quando o Papa João morreu em 1963, o papado e o conclave faziam parte de um contexto eclesial mais amplo dominado pelo Concílio. O conclave que elegeu Paulo VI (Giovanni Battista Montini) para suceder o “papa bom” fazia parte da dinâmica conciliar entre primado, conciliaridade e colegialidade-sinodalidade. Em certo sentido, a situação do pontificado do Papa Francisco quase 10 anos depois, que coincide com o início da fase crucial do processo sinodal (2023-2024), é semelhante à da Igreja Católica em 1962-1963 no início do Vaticano II.
Mas há uma grande diferença hoje. Ela tem a ver com o modo como o processo sinodal pode mudar a Igreja. É esse – e não as disputas em torno do legado de Bento XVI – o verdadeiro alvo de algumas das declarações de vários clérigos proeminentes nas últimas semanas. Um exemplo disso foi o artigo do falecido cardeal George Pell no The Spectator, escrito pouco antes de sua morte, no qual ele chamava o Sínodo de “pesadelo tóxico”.
Em um memorando que ele escreveu e pôs para circular sob um pseudônimo em março de 2022, o mesmo cardeal australiano alertava que, “se os sínodos nacionais ou continentais receberem autoridade doutrinal, teremos um novo perigo para a unidade mundial da Igreja” e que, “se não houver nenhuma correção romana de tal heresia, a Igreja se reduzirá a uma frouxa federação de Igrejas locais, sustentando pontos de vista diferentes, provavelmente mais próxima de um modelo anglicano ou protestante do que de um modelo ortodoxo”.
A situação atual não é a mesma que antecede a abertura de um novo concílio como o Vaticano II, o que seria impossível hoje, com mais de 5.000 bispos e superiores de ordens religiosas masculinas com direito a participar. Depois, há o problema sobre até que ponto uma assembleia de bispos e superiores de ordens religiosas masculinas seria representativa para a Igreja de hoje. Mesmo assim, os pré-requisitos para um evento conciliar ou um evento eclesial com consequências conciliares existem, e o que aconteceu até agora nos concílios precede tudo isso.
Mas o “processo sinodal” agora em curso está se desenvolvendo segundo uma preparação completamente diferente daquela que ocorreu entre 1959 e 1962 para preparar o Vaticano II. O processo sinodal é muito mais descentralizado e envolve todo o Povo de Deus – ou seja, aqueles que possam e queiram participar. Esse processo está também ocorrendo em uma Igreja em que, em comparação com os tempos do Vaticano II, a solidão institucional do papa é muito mais evidente: para Bento XVI quando ele renunciou, para o Papa Francisco hoje.
A Igreja Católica hoje precisa de novos caminhos para proclamar o Evangelho de Jesus Cristo. Essa proclamação deverá ser feita cada vez mais pelo Povo de Deus e cada vez menos pelas elites clericais. Aqueles que apelam a Bento XVI estão compreensivelmente assustados com o fato inegável de que a Igreja está tentando encontrar esses novos caminhos e de que isso exigirá uma nova forma para a Igreja. Está claro no próprio título do “documento de trabalho para a etapa continental” que a Secretaria Geral do Sínodo preparou: “Alarga o espaço da tua tenda” (Is 54,2).
Há uma série de questões-chave em jogo: algum tipo de des-hierarquização do governo da Igreja, um papel diferente para o episcopado e a relação entre unidade e diversidade na única Igreja Católica. Uma das questões é que tipo de regulação fará parte dessa nova forma de Igreja, dado o sistema eclesial altamente pluralista como aquele em que estamos e faremos parte.
Certamente, alguns dos movimentos das últimas semanas, por exemplo, o livro-entrevista do cardeal Gerhard Ludwig Müller, ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (2012-2017), fazem parte das tentativas de acelerar e preparar o próximo conclave. Mas ninguém (ou talvez apenas uma pessoa) sabe quando será o próximo conclave. Todos sabemos que o Sínodo está em andamento e entra agora em uma etapa crucial. O cardeal Mario Grech, secretário-geral do Sínodo, disse isso em uma entrevista recente à revista católica italiana Il Regno:
“O Sínodo já começou. De acordo com uma nova experiência. O Santo Padre o abriu em outubro de 2021, e agora há várias etapas. A fase concluída em agosto não foi uma fase preparatória para a celebração do Sínodo, mas já faz parte do processo sinodal.”
O alvo imediato daqueles que estão tentando redefinir a narrativa no catolicismo pós-Ratzinger não é uma questão particular ou outra. O alvo é o próprio Sínodo.
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O catolicismo depois de Ratzinger e o Sínodo sobre a sinodalidade. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU