O menino que vem para reencantar o mundo. Artigo de Faustino Teixeira

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05 Dezembro 2025

"Ele é a 'criança eterna' que está sempre a nos acompanhar: que nos dá uma de suas mãos e com a outra nos oferece tudo o que existe", escreve Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Eis o artigo.

Em 26 de novembro de 2025 veio publicada a carta apostólica de Leão XIV, In unitate fidei, que celebra 1700 anos do Concílio de Nicéia. Como indicou o papa, o evento de Nicéia buscou responder à grande questão colocada por Jesus aos discípulos em Cesaréia: “Quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15). Nicéia foi, na verdade, um grande Sínodo, com a presença de “218 Padres”, sob a presidência do Imperador Constantino, e realizado em seu palácio de verão. O maior número dos Padres do Concílio veio do Oriente, e somente cinco do Ocidente.

Dentre os frutos de Niceia, um credo que professa a crença num só Deus, Pai onipotente e protagonista de todas as coisas visíveis. Como indicou Leão XIV em sua carta, “os Padres confessaram que Jesus é o Filho de Deus na medida em que é ´da substância` (ousia) do Pai (...) gerado, não criado, da mesma substância (hommooúsios) do Pai`” [1].

A definição professada em Nicéia indicava a radical rejeição da tese de Ário, que era padre de Alexandria, e que propunha a igualdade na divindade do Filho de Deus com o Pai. Na visão deste padre, o Filho de Deus vem gerado (gennètos) pelo Pai, num sentido bem específico, de “feito”, “criado”. Em tal perspectiva, defendida pelo padre de Alexandria, o Filho de Deus não era nem verdadeiro Deus, nem igual a Deus, e nem mesmo homem, na medida em que a carne em que o Verbo (logos) vem unido não significava uma verdadeira e completa humanidade[2]. Em contraste com a perspectiva aberta por Ario, o Concílio de Nicéia afirma com clareza que em Jesus Cristo, o Filho de Deus não só se fez “carne”, mas também “homem” (enanthròpèsas). Garantia-se, assim, na linha de santo Atanásio, a salvação da humanidade em Jesus Cristo, considerado verdadeiro homem e verdadeiro Deus.

Os termos ousia e homooúsios, respectivamente substância e consubustancial, não são termos provenientes da Escritura, mas da filosofia grega. Foram termos adotados pelo Concílio de Niceia para afirmar a fé bíblica contra a cristologia reducionista de Ário, a do logos-sarx, que acabava não traduzindo o mistério revelado de Jesus Cristo. A perspectiva ariana, em verdade, era tipicamente helenizante. Em contraponto a tal visão, o Concílio de Nicéia busca resguardar o significado bíblico, mas mantém acesa a terminologia ontológica e helenística, como bem acentuou o teólogo Jacques Dupuis em sua reflexão cristológica [3].

Sem desconhecer a importância dos concílios cristológicos, há que admitir que o cristianismo não superou uma tendência recorrente e bem problemática que é o Monofisismo, que se traduz pela tendência de absorver a humanidade de Jesus na divindade de Deus. Teólogos fundamentais, como Rahner e Schillebeeckx, chamaram a nossa atenção contra esse risco. De fato, “a ´humanização` de Deus não significa a assimilação de sua humanidade na divindade” [4]. Na verdade, o que precisa ser salvaguardado é a humanidade de Jesus, como precisou depois o Concílio de Calcedônia. Na visão de Karl Rahner, “Cristo é homem na maneira mais radical e a sua humanidade é a mais autônoma, a mais livre”, sobretudo por ser uma “humanidade aceita e disposta como automanifestação de Deus”[5].

Em artigos publicados aqui no Instituto Humanitas Unisinos - IHU sobre o evento de Nicéia, Eduardo Hoornaert e Marcelo Barros nos chamam a atenção para os desdobramentos que ocorreram na vida da Igreja Católica [6]. Nicéia significou, em verdade, um caminho de definição da fé em “expressão dogmática” e metafísica. A partir dali, o “Jesus pé-no-chão” perdeu um pouco de sua cidadania. Dificuldades específicas obstruíram a consideração do Jesus histórico. Tudo ficou mais complexo: O Jesus histórico acabou sendo dogmatizado e definido metafisicamente. Dali em diante, como indicou Hoornaert, instaurou-se um “imperialismo cognitivo” marcado por arrogância e prepotência teológica. A igreja firma-se mais como um “sociedade de corte”.

No campo da teologia do pluralismo religioso, John Hick pontuou que a doutrina da encarnação e da divindade de Jesus, adotadas oficialmente em Nicéia, veio acompanhada por efeitos colaterais problemáticos. Foi a primeira vez que a comunidade eclesial adotou oficialmente, da cultura grega, o conceito não bíblico de ousia. A partir de então, o Filho de Deus metafórico transforma-se no Deus Filho metafísico, segunda pessoa da Trindade. Tudo envolvido por uma textura política bem evidenciada: o imperador cristão passa a ganhar o “status de vice-rei de Deus na terra” [7].

As afirmações cristológicas, como bem mostrou Edward Schillebeeckx, não podem ser vistas como afirmações absolutas e universais, mas como “afirmações de fé” de uma comunidade cristã. Seria um equívoco considerá-las objetivantes ou constatantes, sob o risco de obstruírem um diálogo salutar com outras tradições religiosas ou espirituais. Como indica Schillebeeckx, a confissão de Jesus como o Cristo, e que nele se encontra a revelação “definitiva” de Deus é “uma afirmação de fé, afirmação que absolutamente não é constatante e, em consequência, não verificável fora da própria fé” [8]. É correto dizer, teologicamente, que Deus jamais absolutiza uma particularidade histórica, nem mesmo a Jesus de Nazaré. E em razão dessa particularidade e relatividade presente em Jesus, podemos com serenidade reconhecer que Deus pode igualmente ser encontrado “fora de Jesus, a saber, em nossa história mundana e nas muitas religiões que nela surgiram. Inclusive o Jesus ressuscitado aponta para além de si rumo ao próprio Deus” [9].

O dado humano de Jesus veio celebrado como essencial em toda a reflexão teológica latino-americana. Jesus emerge para nós como um profeta do reino de Deus, um buscador de Deus, um poeta da compaixão [10]. Alguém tocado profundamente pela presença e influência de Deus, pela consciência de Deus que 'encarna' de forma singular [11]. Jesus é alguém muito especial, onde tudo o que é autenticamente humano brilha com singularidade em sua pessoa. Como sinalizou Leonardo Boff, em sua clássica obra de cristologia, Jesus foi um ser extraordinário. Os relatos evangélicos evidenciam que ele estava movido por sentimentos humanos profundos: “Conhece a afetividade natural que devotamos às crianças que ele abraça (Mt 9,36), impõe as mãos e abençoa (Mc 10,13-16)” [12]. Em proximidade filial com Deus, Jesus vem tomado por um amor compassivo e generoso, gratuito e hospitaleiro.

O grande projeto de Deus, como mostrou Boff, foi “fazer-se homem”. O que a narrativa evangélica nos evidencia é que o Jesus-homem foi uma exemplar comunicação de Deus na história: “Grande coisa deve ser o homem para que Deus quisesse ser um deles” [13]. A igreja primitiva soube reconhecer isso com muita clareza, ou seja, a percepção de que Deus se fazia presente num homem simples do povo. E, “quanto mais homem se apresenta Jesus, tanto mais se manifesta aí Deus”. Humano assim, como lembrou Boff – retomando uma reflexão de Fernando Pessoa –, “só pode ser Deus mesmo” [14].

E aqui encontramos um ponto fundamental, que a poesia de Fernando Pessoa, na voz de seu heterônimo, Alberto Caeiro, mostrou com grandiosidade. Trata-se de um bonito sonho revelado pelo poeta. O Jesus menino tinha fugido do céu, porque ali todo mundo tinha que ficar muito sério. Aproveitando um momento em que Deus estava a dormir, e o Espírito Santo voava longe, o menino decidiu descer no primeiro raio. Veio habitar em nossa aldeia. E o que ele era? Era “uma criança bonita de riso natural”, que limpava o nariz com os braços, que colhia flores, roubava frutos nos pomares e fugia dos cães bravios [15]. Foi essa criança que nos ensinou o canto das coisas. É uma criança que habita onde nós também vivemos. Ele é a “criança eterna” que está sempre a nos acompanhar: que nos dá uma de suas mãos e com a outra nos oferece tudo o que existe.

Penso que é essa criança que deve animar os nossos corações e inspirar as nossas ações. O cristianismo tem sua raiz na vida e no apelo dessa criança, que quando nasceu foi anunciada ao mundo como sinal de grande alegria para todos. Para além das teias metafísicas que os concílios cristológicos se enredaram, temos, sim, que recuperar e fazer brilhar essa criança singela que continua a mostrar sua presença encantadora nos quatro cantos da história.

Referências

[1] Disponível aqui (acesso em 05/12/2025).

[2] Jacques Dupuis. Introduzione alla Cristologia. 3 ed, Casale Monferrato: Piemme, 1996, p. 122-123.

[3] Ibidem, p. 127.

[4] Ibidem, p. 141.

[5] Karl Rahner. Teologia dell´incarnazione. In: Id. Saggi di cristologia e mariologia. Roma: Paoline, 1967, p. 115-116.

[6] Disponível aqui (acesso em 05/12/2025).

[7] John Hick. A metáfora do Deus encarnado. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 66.

[8] Edward Schillebeeckx. História humana, revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994, p. 215.

[9] Ibidem, p. 214.

[10] José Antonio Pagola. Jesus, aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2010.

[11] John Hick. A metáfora do Deus encarnado, p. 26.

[12] Leonardo Boff. Jesus Cristo libertador. Petrópolis: Vozes, 1972, p. 100.

[13] Leonardo Boff. Natal. A humanidade e a jovialidade de nosso Deus. Petrópolis: Vozes, 1976, p. 21.

[14] Leonardo Boff. Jesus Cristo libertador, p. 193.

[15] Fernando Pessoa. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1990, p. 209-210.

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