"As provocações de Niceia permanecem atuais: confessar o Cristo integral, viver a unidade da fé, transmitir com fidelidade e clareza, testemunhar com autenticidade e cultivar a esperança escatológica. Somente assim a juventude poderá encontrar no Evangelho não apenas uma doutrina, mas uma vida nova, um horizonte de sentido e uma esperança que não decepciona".
O artigo é de Valeria Andrade Leal, doutora em teologia pela PUC-Rio e ex-assessora da CNBB na comissão para Juventude.
O cristianismo, desde suas origens, sempre se viu diante do desafio de anunciar a fé em Jesus Cristo de modo que sua verdade se mantivesse íntegra e, ao mesmo tempo, fosse compreensível em contextos culturais diversos. O Concílio de Niceia (325) é um marco nesse processo, pois definiu de modo decisivo a confissão de fé em Cristo como verdadeiro Deus, “consubstancial ao Pai” (homoousios tô Patri), respondendo às reduções arianas que ameaçavam a integridade da fé cristológica. Contudo, a controvérsia ariana não se encerrou em 325: a recepção de Niceia foi lenta e conflituosa, só encontrando estabilidade maior com o Concílio de Constantinopla (381), que completou a profissão trinitária.
Hoje, diante da juventude contemporânea, que vive num ambiente marcado por fragmentação, pluralidade de linguagens, fluidez identitária e uma busca intensa por autenticidade, o desafio se repete sob novas formas. Como falar de Cristo a jovens que se sentem distantes da linguagem tradicional da fé, mas que, ao mesmo tempo, buscam sentido, coerência e esperança?
Diante disso, ao falar das “Linguagens da fé para a juventude: provocações a partir de Niceia”, vamos partir de três eixos complementares:
(1) a fundamentação cristológica como horizonte hermenêutico da fé, conforme desenvolvemos em nossa tese doutoral;
(2) a unidade da fé como fruto e exigência do Concílio de Niceia; e
(3) a transmissão da fé com fidelidade e clareza, como tarefa urgente da Igreja no anúncio do Evangelho às novas gerações.
Mais do que uma formulação doutrinal, a cristologia expressa a convicção de que, no mistério de Jesus de Nazaré, Deus mesmo se revelou e se entregou à humanidade. As discussões de Niceia não nasceram de especulações abstratas, mas da necessidade vital de preservar a integridade da experiência salvífica diante de reduções que ameaçavam esvaziá-la. Nesse horizonte, a definição conciliar de que o Filho é da mesma substância do Pai não é apenas uma resposta a controvérsias arianas, mas a garantia de que a salvação em Cristo atinge a totalidade da existência humana.
Essa definição não pertence apenas ao passado, mas permanece como questão atual: quem é Jesus? A juventude contemporânea, imersa em narrativas fragmentadas e em múltiplas ofertas espirituais, tende a reduzir sua figura a categorias parciais — mestre moral, revolucionário social, mito cultural ou simples curandeiro. Essas interpretações, embora contenham elementos de verdade, tornam-se insuficientes quando desvinculadas da totalidade do mistério cristológico.
O sínodo de 2018 [1], apontou para as diferentes relações e/ou compreensões que o jovem estabelece com Jesus: “Muitos reconhecem-No como Salvador e Filho de Deus e com frequência sentem-se próximos d’Ele através de Maria, sua Mãe, comprometendo-se num caminho de fé. Outros não mantêm uma relação pessoal com Ele, mas consideram-No um homem bom e uma referência ética. Outros ainda encontram-No através duma forte experiência do Espírito. Contrariamente, para outros constitui uma figura do passado, desprovida de relevância existencial ou muito distante da experiência humana”.
O texto reconhece também que a figura de Jesus, para muitos jovens é mais atrativa do que as imagens de “religião”. Na prática, a variedade de cristologias que perpassam as diversas propostas de evangelização juvenil correm o risco de restringir a figura de Jesus a visões estereotipadas ou até mesmo ideológicas, sem apresentar o Cristo total aos jovens. Como alertavam os padres da Igreja, já no século II, quando se perde a visão integral de Cristo, perde-se também a integridade da salvação: “O que não foi assumido não foi redimido” (Gregório Nazianzeno).
Em Niceia a preocupação com a integralidade da compreensão acerca da pessoa de Jesus é bastante evidente. A discussão e a linguagem da época revelam o compromisso da Igreja em compreender para ensinar acerca de Jesus e sua relação com a Trindade, o que é essencial para esclarecer sua identidade de homem-Deus.
Entretanto, em Niceia, a linguagem expressa a racionalidade da fé que fundamenta uma experiência: a do encontro com o Ressuscitado. Experiência hoje é a palavra-chave da evangelização com jovens. O encontro com Jesus é uma experiência. Porém, a experiência sem o equilíbrio da racionalidade, pode transformar-se apenas em uma questão intimista e subjetiva, sem consequências práticas na vida da pessoa, porque superficial, momentânea, fruída e fluída. É grande a tarefa de encontrar um equilíbrio entre fé e razão, subjetividade e objetividade...
Como observa Bento XVI, “a fé cristã não é a adesão a uma teoria, mas a um acontecimento, a uma pessoa” (DCE, 1). A linguagem da fé, portanto, deve preservar esse núcleo cristológico integral: o Cristo total, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, centro da história e da vida humana.
Falar de Jesus aos jovens hoje é mais do que transmitir doutrinas ou repetir fórmulas herdadas; trata-se de apresentar uma pessoa viva, capaz de dialogar com seus sonhos e feridas. O coração do anúncio é a experiência de um Cristo vivo, que não pertence ao passado, mas que caminha no presente, despertando esperança e futuro mesmo em meio a uma cultura imediatista e marcada pelo vazio. Sua ressurreição não é apenas um fato a ser lembrado, mas uma presença que toca as dores humanas e abre horizontes de plenitude.
Ao mesmo tempo, esse Cristo revela um Deus que é Pai, próximo e confiável, que se deixa encontrar e tocar. A fé, portanto, não é um conjunto de normas frias, mas um relacionamento de intimidade que conduz à comunhão e à fraternidade, iluminando a vida cotidiana com uma lógica de amor e solidariedade.
O mistério da Encarnação, por sua vez, mostra que Deus não se manteve distante, mas assumiu a nossa fragilidade em tudo. Para os jovens, significa redescobrir a beleza de sua própria humanidade, chamada à santidade concreta — não uma perfeição inatingível, mas o caminho humilde e real de quem aprende a servir, a cair e levantar, a reconhecer-se barro moldado pelas mãos de Deus.
Finalmente, num tempo marcado por verdades líquidas e discursos conflitantes, a fé cristã ousa proclamar que a Verdade não é um conceito abstrato, mas uma pessoa que liberta. Acolher Cristo como critério e referencial é reencontrar a própria identidade e assumir a responsabilidade de escolhas que dão sentido à vida.
Em síntese, a evangelização juvenil deve apresentar o Cristo total: Ressuscitado, Filho de Deus, Encarnado, Caminho, Verdade e Vida. Essa totalidade é critério de autenticidade e horizonte de plenitude. Ao comunicar Jesus assim, a pastoral possibilita que os jovens se reconheçam nele e sejam atraídos para uma vida de discipulado missionário, fundada no encontro pessoal com o Senhor e sustentada pela vida comunitária e sacramental. Esse discipulado missionário, ao mesmo tempo concretizada na vida e nas relações que se estabelecem não só na Igreja, mas também na família e na sociedade. Trata-se de fazer daquele “verdadeiro Deus e verdadeiro homem, gerado não criado, consubstancial ao Pai” o seu Salvador, um amigo, um irmão, um companheiro de caminhada e critério de escolhas e construção do próprio projeto de vida.
O Concílio de Niceia representa, em sua essência, uma busca pela unidade da fé cristã, que mais do que consenso, está ligada ao discernimento acerca da autenticidade da experiência cristã. Afinal, como alerta Gabino Uríbarri Bilbao: “O Cristo total pertence à Igreja total” (Jesucristo para jóvenes, p. 145). O caminho para esta constatação é a sinodalidade, considerando que assim como em Niceia não foi isento de conflitos, trata-se de uma jornada longa e árida.
Esse horizonte encontra eco direto na evangelização juvenil contemporânea. A realidade juvenil é atravessada por mudanças sociais, culturais e religiosas que exigem constante revisão de métodos e linguagens novas no anúncio do Evangelho. No interno da Igreja, essa pluralidade gera uma gama de propostas de evangelização de jovens, cada uma com cristologias distintas, que, longe de ser uma ameaça, podem ser compreendidas como dom do Espírito. Trata-se daquilo que chamamos “expressões juvenis” que podem ser entendidas como a “riqueza sinfônica” da fé cristã, testemunhada desde os quatro evangelhos, que narram a mesma verdade a partir de perspectivas complementares.
O Papa Francisco reconhece que não há um modelo único de pastoral juvenil válido para todos os contextos (Christus Vivit, 205), e que cada experiência agrega valor à missão da Igreja, como um todo. Entretanto, também é necessário discernimento: nem todas as propostas são igualmente fiéis ao núcleo do Evangelho. Dependendo do equilíbrio (ou desequilíbrio) de seus princípios, há riscos reais de integralismo, elitização, reducionismo ou ideologização, fenômenos que hoje se intensificam pelas dinâmicas das redes sociais. Por isso, a chamada aos elementos cristológicos essenciais na evangelização de jovens.
Niceia nos provoca a enfrentar essa tensão entre pluralidade e unidade. Embora questões mais práticas foram discutidas, com ares de uniformidade - como ficar de pé durante a anáfora ou celebrar a Páscoa na mesma data -, o foco se volta para a compreensão de quem é Cristo, ou seja, daquilo que era essencial para a fé cristã, ou ao menos, é isso o que se torna perene e chega a nós hoje. Fixar os olhos em Jesus Cristo, “iniciador e consumador da fé” (Hb 12,2), impede que as diferenças se tornem obstáculos à comunhão. Ao contrário, em torno do Mistério Pascal e da Trindade, elas se transformam em dons complementares.
Nesse sentido, a unidade da fé não se confunde com uniformidade. O Evangelho mostra como Jesus corrigiu os discípulos que tentavam impedir alguém de agir em seu nome: “Não os impeçais. Pois quem não é contra nós é por nós” (Mc 9,39-40). O Mestre coloca a missão no centro, não o exclusivismo grupal. Sua atitude de acolhida culmina no pedido insistente pela unidade em sua oração sacerdotal: “Que todos sejam um” (Jo 17,21).
Esse é também o horizonte de Evangelii Gaudium, ao ensinar que “a unidade prevalece sobre o conflito” (EG 226-228). A Igreja não nega os conflitos, mas os assume, transformando-os em dinamismos de reconciliação. Tal reconciliação não é sincretismo nem anulação de diferenças, mas um plano superior que integra as polaridades e gera vida nova. Não obstante as condenações e anátemas de Niceia, sua coragem em defender a integridade da fé é convite para o diálogo, mas também para a aceitação do que o “espírito diz às igrejas” (Ap 2,7).
Na Pastoral Juvenil, isso significa viver a lógica do poliedro proposta por Francisco (Evangelii Gaudium, 236): múltiplas faces que não se fundem num todo homogêneo, mas que se enriquecem mutuamente no reconhecimento recíproco.
Por fim, a unidade da fé, iluminada por Niceia e atualizada no desafio da evangelização juvenil, se revela como um dom trinitário e uma tarefa sinodal. É dom porque nasce da comunhão do Pai, do Filho e do Espírito. É tarefa porque exige processos concretos de escuta, discernimento e corresponsabilidade, de modo que as diferenças se tornem sinais de fecundidade missionária. Assim, a Pastoral Juvenil pode testemunhar à Igreja inteira que a pluralidade, longe de ser ameaça, é força de comunhão quando convergida no centro que é Cristo.
Transmissão da fé: fidelidade e clareza
Por fim, chegamos ao tema da transmissão da fé. O Concílio de Niceia foi, em seu tempo, uma forma de transmissão clara e fiel da verdade cristológica, condensada no Símbolo Niceno, que ainda hoje professamos na liturgia. Ele nos ensina que a comunicação da fé exige precisão conceitual e, ao mesmo tempo, linguagem acessível e comunitária, ou seja, que signifique algo para a comunidade de fé, uma experiência e seu sentido compartilhado.
Na contemporaneidade, a transmissão da fé encontra grandes desafios: a multiplicidade de linguagens culturais, a suspeita contra instituições, chagas históricas, mudanças rápidas de valores e instrumentos levam à dificuldade de dialogar com jovens que buscam sentido em ambientes seculares.
A transmissão da fé, que historicamente ocorria de forma quase natural em sociedades cristãs, sofreu rupturas profundas devido à secularização, pluralidade e mudanças culturais. As novas gerações não crescem mais em um ambiente eminentemente cristão, o que compromete a socialização religiosa básica e o sentido de pertença à comunidade eclesial. Se “a Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração” (Evangelii Gaudium, 14 – Bento XVI, em Aparecida) da teologia e da pastoral juvenil se exige uma linguagem que seja ao mesmo tempo fiel à verdade revelada e próxima da experiência existencial dos jovens. Hoje, é necessário suscitar experiências vivas de fé, capazes de dialogar com a cultura juvenil e gerar pertença.
O processo de transmissão não é automático; cada geração ressignifica a experiência do encontro com Jesus Cristo, incorporando-a em sua cultura e linguagem próprias. Christoph Theobald (Transmitir o Evangelho de liberdade, p. 12-13) ressalta que a transmissão da fé depende do anúncio: “cada um de nós nasce para uma própria palavra graças à palavra do outro” — o anúncio funciona como elo essencial que torna possível que os seguidores de Jesus se tornem sinais visíveis e críveis da presença divina. Na atualidade, porém, parece ter havido uma ruptura deste processo. Armando Matteo (A primeira geração incrédula) observa que há um desenraizamento religioso, resultado de gerações anteriores em que a mensagem não atingiu o indivíduo em seu íntimo. Assim, muitas novas gerações nasceram estranhas ao cristianismo, com ligação afetiva limitada a ritos eclesiais, mas privadas de consistência de fé, constituindo a primeira geração incrédula da história do Ocidente.
Diante desse cenário, é necessário que a Igreja avance no reconhecimento desta realidade e se coloque em movimento missionário, priorizando a transmissão da verdade revelada e a consistência dos laços sociais que unem as pessoas. A pastoral deve dialogar com a vida concreta, gerando impacto real nas escolhas e projetos de vida dos jovens, sem pretender restaurar a hegemonia cultural da Igreja, mas promovendo uma fé consciente, convicta e encarnada no cotidiano.
Assim, de modo análogo a Niceia, a Igreja hoje é chamada a traduzir o tesouro da fé em linguagens simbólicas, narrativas e comunitárias, capazes de tocar o coração juvenil sem perder a clareza do conteúdo.
A fidelidade e a clareza são, portanto, critérios fundamentais. A fidelidade assegura que não traiamos o núcleo da fé, reduzindo Cristo a uma imagem parcial. A clareza garante que a mensagem seja compreensível e significativa.
Além disso, a transmissão da fé às novas gerações passa pelo testemunho. O Concílio de Niceia não foi apenas um evento de formulação doutrinal, mas um verdadeiro testemunho de fé diante de tensões políticas, sociais e eclesiais. Muitos dos bispos presentes haviam sofrido perseguições e até mutilações por professarem o nome de Cristo. Essa dimensão é decisiva também para a evangelização juvenil. Diversos estudos apontam que os jovens de hoje não se deixam convencer apenas por fórmulas ou discursos, mas buscam autenticidade. A fé, quando se apresenta como um sistema abstrato ou distante da vida, não encontra eco em seus corações. É a clareza que brota do testemunho que se torna credível. Como lembra Paulo VI na Evangelii Nuntiandi, “o homem contemporâneo escuta mais as testemunhas do que os mestres; e se escuta os mestres, é porque são testemunhas” (EN 41).
O testemunho, no entanto, não substitui a formulação da fé. Niceia recorda que o conteúdo e a vida não podem ser separados: sem clareza doutrinal, corre-se o risco de diluir o Evangelho; sem testemunho, as fórmulas se tornam vazias. Para a pastoral juvenil, trata-se de formar cristãos capazes de unir ortodoxia e ortopráxis, em quem a fé seja inteligível e visível. Esse equilíbrio constitui uma provocação tanto para os agentes pastorais quanto para a própria teologia, que deve ser sempre servidora da vida cristã.
Em síntese, o Concílio de Niceia continua a nos provocar hoje. Ao afirmar o Cristo como consubstancial ao Pai, ele garantiu a integridade da fé cristológica, fundamento da nossa salvação. Essa mesma integridade é exigida hoje no anúncio às novas gerações, para que não recebam um Cristo fragmentado, mas o Cristo total, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.
Niceia também nos recorda que a fé é força de unidade. Numa época marcada por divisões e polarizações, a confissão comum do Credo pode ser testemunho eloquente de comunhão para os jovens, que anseiam por pertença e fraternidade.
Por fim, o concílio nos ensina que a transmissão da fé requer fidelidade e clareza. Assim como a Igreja do século IV precisou formular sua fé com precisão para não se perder, também nós precisamos encontrar hoje linguagens novas e autênticas, capazes de comunicar a beleza do Evangelho de modo compreensível e atrativo para os jovens.
Assim, as provocações de Niceia permanecem atuais: confessar o Cristo integral, viver a unidade da fé, transmitir com fidelidade e clareza, testemunhar com autenticidade e cultivar a esperança escatológica. Somente assim a juventude poderá encontrar no Evangelho não apenas uma doutrina, mas uma vida nova, um horizonte de sentido e uma esperança que não decepciona.
[1] DF 50.