19 Novembro 2024
O historiador e professor da Universidade de Barcelona considera necessário que a esquerda rebata a narrativa ultraconservadora em todos os espaços possíveis, mas insiste em não dar mais peso a um movimento que, afirma, ainda é “residual”.
A reportagem é de Sandra Vicente, publicada por El Diario, 16-11-2024.
A vitória de Donald Trump nas eleições norte-americanas, grupelhos de extrema-direita realizando trabalhos voluntários em Valência e atacando ONGs como a Cruz Vermelha nas redes... Nesses dias, grande parte do debate público está focada na extrema-direita. E ainda mais desde que milhares de usuários e meios de comunicação, como La Vanguardia ou The Guardian, decidiram abandonar o X por considerá-lo um lugar repleto de discursos de ódio.
O historiador especialista em movimentos ultraconservadores Carles Viñas (Barcelona, 1972) reconhece que estamos diante de um ponto de inflexão e insiste que é importante não legitimar a extrema-direita e não abandonar nenhum espaço onde seja possível enfrentá-la. Porém, o também professor da Universidade de Barcelona e autor do livro Rapados (Verso, 2024) ressalta algo que considera essencial: tratar o fenômeno com proporcionalidade e não lhe dar mais protagonismo do que realmente tem.
Após a vitória de Trump nas eleições e observando como os movimentos ultraconservadores tentam capitalizar o desastre em Valência, considera que a extrema-direita está em um momento de apogeu?
É um ponto de inflexão. Mas ainda estamos longe do que ela chegou a ser. Seu grande momento histórico foi no período entre guerras, com o auge do totalitarismo na Europa e partidos de extrema-direita governando ou participando de coalizões em diversos estados. Depois, com a derrota do Eixo, evidentemente, o fascismo entra em declínio e passa a viver ondas, como a que estamos vendo atualmente.
Acredita que o alarme social em torno do avanço do fascismo na Espanha é desproporcional?
Evidentemente, qualquer aumento da extrema-direita deve nos preocupar, mas estamos longe do que vivemos nos anos 1920 do século passado. De fato, o espantalho do “a extrema-direita está chegando” pode ser prejudicial para o próprio objetivo. Se repetimos isso tantas vezes, deixamos de perceber se ela realmente está chegando, quem está chegando e quando.
Temos visto como a extrema-direita tentou capitalizar o ocorrido em Valência organizando grupos de ajuda e distribuição de alimentos. Esse populismo já foi visto antes em movimentos como o Hogar Social Madrid. A extrema-direita se sente confortável em momentos de emergência?
Nem sempre teve um viés social. Até relativamente pouco tempo, era um movimento marginal e sem impacto nos parlamentos. Certamente, se a catástrofe desses dias tivesse ocorrido alguns anos atrás, a extrema-direita não teria estrutura para articular nada. Agora, ela soube como fazer.
A nova extrema-direita se formulou a partir da tentativa de capitalizar crises econômicas e sociais sucessivas, entendendo que parte de seu possível apoio está justamente entre as pessoas que sofrem essas crises. Por isso, têm desenvolvido uma série de ações em âmbitos inéditos para eles, como, por exemplo, a ocupação de edifícios para garantir moradia a pessoas autóctones, como ocorreu na Itália. Algo que o Hogar Social Madrid tentou replicar, mas sem tanto sucesso.
Quando partidos como Aliança Catalã ou a organização Revuelta, vinculada ao Vox, distribuem alimentos, deve-se explicar que é uma estratégia de branqueamento da extrema-direita ou isso os fortalece?
Essa é uma grande questão que temos nos feito há muito tempo. Minha opinião é que devemos sempre tentar marginalizar e ignorar qualquer tipo de ação da extrema-direita porque o que eles buscam é protagonismo, aparecer na mídia e apresentar uma face amigável.
Então, não devemos explicar o que estão fazendo?
Sou historiador, não jornalista, mas acredito que, se algo for noticiado, deve ser feito com conhecimento de causa. Às vezes vejo reportagens ou artigos de opinião que pecam por um excesso de desconhecimento do fenômeno que tentam abordar. Fazem isso com boa intenção, mas a intenção não é tudo. Está se dando um protagonismo excessivo a determinadas formações que são minúsculas, que não têm um número relevante de militantes. O espaço que recebem não corresponde à sua dimensão.
Não digo que não se deva explicar, mas é necessário ter ferramentas para saber contextualizar e, além disso, esclarecer tudo o que há por trás desses movimentos.
Dou um exemplo: uma influencer se queixava outro dia das críticas recebidas por fazer trabalho voluntário com a Revuelta. Os críticos foram chamados de pouco solidários, e a extrema-direita acabou se fazendo de vítima.
Esse é o problema: associações que deveriam estar completamente marginalizadas têm sido branqueadas e legitimadas. E atacá-las sem explicar o contexto pode ser contraproducente, porque a extrema-direita é especialista em explorar o vitimismo.
Outra coisa que vemos é que o clássico lema da esquerda “só o povo salva o povo” tornou-se um slogan antipolítico da extrema-direita. Como chegamos a isso?
Isso não é novo. O nacional-populismo sempre tentou se apresentar como o guardião da soberania popular. É o povo contra a casta, contra os políticos corruptos, etc.
Mas a extrema-direita espanhola, com o Vox à frente, não é tão populista quanto a de outros países europeus. De fato, as pesquisas do CIS mostram que uma parte significativa de seus eleitores pertence às classes altas.
Historicamente, eles não transmitiram a imagem de serem parte do povo. Podemos associá-los a classes mais abastadas, mas, em Valência, vimos como estão reproduzindo um discurso populista que tenta ser transversal, porque sabem que as classes populares são seu nicho mais importante.
Quem conseguiu executar muito bem essa estratégia foi Donald Trump, que venceu as eleições depois de conquistar o voto latino, apesar de a população migrante estar no centro das críticas de quem será novamente presidente.
Ele vende a ideia clássica da extrema-direita de estar fora do sistema, embora ele próprio seja o sistema. Mas funciona para ele dizer que o sistema deixou as classes populares desamparadas e que só ele pode resolvê-lo.
Esse discurso ganhou força durante a crise, que deixou grandes bolsões de pobreza. A falta de um tecido social de assistência nos Estados Unidos deixou milhões de pessoas desamparadas. E Trump percebeu que esse era seu eleitorado. Tanto que se apresenta como a pessoa que vem para consertar o sistema corrupto [“Trump vai consertar isso” foi seu lema de campanha] com as soluções mágicas que o populismo sempre apresenta.
Migrantes, mulheres ou pessoas racializadas estão no centro dos discursos de ódio e, ainda assim, votam na extrema-direita. Durante anos, a autopercepção de classe foi alterada. O mesmo ocorre com a vulnerabilidade?
Bem, o que começou a ser mais valorizado foi a situação econômica, como se viu nas eleições nos Estados Unidos. Latinos for Trump, Blacks for Trump ou Gays for Trump são tipos de eleitores penalizados pelo discurso de Trump, mas que, nessa ocasião, deixaram isso de lado e valorizaram as possíveis soluções econômicas que a chegada de Trump poderia trazer para o dia a dia deles. Não prestam tanta atenção ao discurso grandiloquente, mas às medidas econômicas concretas.
Como em Valência, guardadas as proporções?
Exatamente.
Em ambos os cenários, as redes sociais foram fundamentais para a difusão da desinformação. Antes, o senhor me disse que devemos marginalizar e não amplificar os discursos da extrema-direita. Devemos fazer o mesmo com as fake news?
É complicado, porque é como se a esquerda ignorasse as redes. Isso é um erro, porque, se você não ocupa esse espaço, os outros o ocuparão. E eles já sabem como usar essa ferramenta com certa capacidade de influência para alterar imaginários coletivos que considerávamos inabaláveis anos atrás. Mas, quando se difunde uma mentira mil vezes, há pessoas que acabam acreditando que é verdade.
Porém, acredito que entrar em debates com a extrema-direita nas redes é um mau negócio, porque você está reconhecendo-os como interlocutores válidos.
Então, devemos deixar as fake news circularem?
Não rebater não significa isso. Significa ocupar uma parte das redes para difundir sua própria narrativa, algo que, atualmente, não está sendo feito. A esquerda sempre tem um discurso reativo, sempre na defensiva. Não é propositiva. Deveria explicar as coisas que faz. O problema é que as pessoas que poderiam fazer isso estão, nestes dias, limpando as ruas de Valência.
É possível que já seja tarde e que, após as tarefas de voluntariado da extrema-direita em Valência, a extrema-direita já tenha sido muito branqueada. Mas, claro, não podemos dizer a alguém que recebeu ajuda desses grupos para recusá-la. Embora possamos, sim, contextualizar essa ajuda. Mas, sempre, sem superdimensionar o fenômeno. Porque, insisto: o número de voluntários da extrema-direita não é proporcional à quantidade de reportagens e minutos televisivos que eles receberam.
Na quinta-feira, alguns meios de comunicação, como La Vanguardia ou The Guardian, anunciaram que estavam deixando o X [antes Twitter], assim como milhares de usuários. Você publicou naquela rede social que “os que agora vão embora são os mesmos que, no cerco de Stalingrado, teriam deixado a cidade nas mãos das tropas alemãs”. E encerra dizendo que “os espaços se defendem”. Por que acredita que abandonar essa rede social é um erro?
Todo espaço que não é ocupado pode acabar sendo monopolizado pela extrema-direita. As redes sociais, de fato, foram um dos principais cenários onde essa batalha cultural foi travada e de onde se difundiram constantemente notícias falsas que contribuíram, de forma primordial, para o enraizamento de um determinado imaginário na cidadania.
Portanto, acredito que abandonar espaços como o X não ajuda a impedir a disseminação desse conjunto de ideias, preconceitos e discursos de ódio. Pelo contrário. Pode acentuar sua difusão sem nenhum tipo de contraponto crítico.
Outra consequência de amplificar a mensagem da extrema-direita é transformar em problema algo que, na realidade, não é tão significativo. É o caso da segurança ou das ocupações. Se eles são tão poucos, por que conseguem influenciar tanto a agenda política?
Isso acontece desde os anos 90, mas tem se acelerado recentemente. Eles conseguiram colocar em dúvida alguns consensos sociais que estavam totalmente consolidados. Isso é o que conhecemos como batalha cultural.
Acredita que há margem para enfrentar essa batalha quando partidos de centro também estão comprando discursos ultraconservadores em temas como segurança, por exemplo?
Quando os grandes partidos compram o discurso, há pouco o que fazer. E depois ainda criam cordões sanitários, dos quais sou completamente contra. Primeiro, porque nunca são bem feitos e, segundo, porque permitem que a extrema-direita explore o vitimismo. O que deve ser feito é isolá-los corretamente, mas sem alarde. Não os interpelar, não pactuar com eles, evitar que participem de comissões...
Se os partidos não fizerem isso, pouco a pouco acabarão legitimando as ações e a presença da extrema-direita nos parlamentos. E as pessoas acabarão sentindo que eles são apenas mais uma opção política, sem nenhum problema moral em votar neles.
De acordo com as pesquisas, a população que mais está se radicalizando para a direita são os jovens, enquanto antes isso ocorria em direção à esquerda. Por quê?
Algo que me chama muita atenção é que, para os alunos que recebo na universidade, a ditadura parece ser um evento da pré-história. Muitos nem sequer estudaram esse período na escola. Alguns tiveram um contato superficial, mas não com a profundidade necessária para entender que esse passado determina o presente.
Isso faz com que, quando eles veem nas redes alguém que desinforma ou tem um discurso positivo sobre a ditadura, não tenham mais aquele reflexo de rejeição. Além disso, já estamos em décadas de democracia e normalizamos que a esquerda seja um partido de governo. Não é mais uma opção transgressora, e é isso que os jovens procuram.
Mas ainda há espaço à esquerda do PSOE, do Podemos e do Sumar…
Sim, mas a percepção da esquerda também mudou. Se você tem todos esses influenciadores e meios chamando o governo do PSOE de “regime de Pol Pot” ou Trump rotulando a convenção democrata em Chicago de “reunião do soviete supremo de Kamala Harris”, é claro que há quem acredite que eles são esquerda radical.
O que resta é a ultradireita, que exibe parafernália fascista em manifestações no centro de Madri. Algo que, anos atrás, seria impensável. Além disso, mesmo que a polícia não tenha agido como deveria, qualquer mínima repressão gera vídeos dessas pessoas se vitimizando, o que amplifica ainda mais a mensagem deles.
O que a polícia deveria ter feito?
Oferecer o mesmo tratamento que às manifestações de sinal contrário, no mínimo. Nem mais, nem menos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Carles Viñas, especialista em extrema-direita: “Abandonar agora o X pode acentuar a difusão de discursos de ódio” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU