16 Novembro 2024
Donald Trump simulou fazer uma felação em um microfone, fantasiou colocar uma colega de partido diante de um pelotão de fuzilamento e disse que deveria ter resistido a deixar a Casa Branca após perder as eleições de 2020, cuja derrota ele ainda não reconhece quatro anos depois.
A reportagem é de María Ramírez, publicada por El Salto, 08-11-2024.
O candidato encerrou com um comício em que descreveu seus rivais como "demoníacos" e afirmou que não se importaria se alguém atirasse nos jornalistas à sua frente, que estavam cobrindo sua campanha. Isso veio após uma campanha em que ele insistiu na mentira de que migrantes haitianos em Ohio comem os animais de estimação dos vizinhos, vangloriou-se de sua intenção de ser um "ditador no primeiro dia", descreveu os Estados Unidos como "um depósito de lixo do mundo" e prometeu continuar perseguindo rivais políticos e críticos, enquanto ele e seus porta-vozes em comícios chamavam Kamala Harris de "retardada mental" e prostituta.
Nesta terça-feira, o candidato republicano venceu as eleições presidenciais com uma margem maior do que em 2016. Faltam ser contados milhões de votos na Califórnia, Nevada, Arizona, Oregon e Washington, além de alguns estados especialmente lentos e populosos, como Nova York. Mas as estimativas indicam que, desta vez, Trump pode vencer a maioria do voto popular, além dos votos do Colégio Eleitoral, ou seja, os que cada estado atribui ao vencedor da maioria naquele território.
Desde 2000 até agora, o Partido Republicano só havia conseguido ganhar a maioria dos votos em uma eleição presidencial: isso ocorreu com o presidente George W. Bush, quando foi reeleito em 2004 contra o democrata John Kerry.
Há oito anos, Trump recebeu quase três milhões de votos a menos do que Hillary Clinton, em mais um exemplo de como o sistema eleitoral poderia beneficiar de forma desproporcional o partido que, na realidade, não tinha a maioria do apoio popular. Daí o marco significativo para os republicanos, caso a vitória de Trump seja confirmada neste aspecto.
Agora será o primeiro presidente condenado por crime grave – no caso do suborno a uma atriz pornô –, sentenciado como responsável por abuso sexual e com outros três julgamentos pendentes, por tentar alterar o resultado das eleições, incitar o assalto ao Capitólio e roubar documentos oficiais. Também será o primeiro a passar por dois impeachment (processo de destituição política), por chantagear o presidente ucraniano, Volodymyr Zelenski, e por incentivar o assalto ao Capitólio.
Durante esta campanha, Trump estava nervoso com a sentença pendente de sua condenação em maio no caso do suborno, prevista para setembro. O candidato confessou que acreditava ser um teste para ver até que ponto os eleitores suportariam algo assim, conforme fontes de seu entorno disseram ao New York Times. No entanto, o juiz do caso em Nova York, Juan Merchan, decidiu adiar a sentença para evitar a aparência de interferência no processo eleitoral. Isso ocorreu após o Supremo Tribunal, controlado pela maioria republicana, endossar parcialmente e de surpresa a imunidade de um presidente.
Diante da retórica de insultos e crueldade – não apenas contra rivais políticos, mas também contra veteranos e pessoas com deficiência – e das promessas de purgas, Kamala Harris, Michelle Obama, Joe Biden e outros democratas repetiram variações da mensagem "isso não é o que somos". Diante da clara vitória de Trump, onipresente na vida pública há três décadas, esse argumento colide com a realidade. Os Estados Unidos sim são, pelo menos em parte, cada vez mais assim.
A tolerância à violência para alcançar objetivos políticos em algumas circunstâncias é um dos indicadores que mudaram enquanto o apoio a Trump permanecia. De fato, a aceitação do assalto ao Capitólio aumentou entre os republicanos desde 2021: 30% dos que se identificam como republicanos aprovam "as ações daqueles que invadiram o Capitólio à força", conforme uma pesquisa da CBS publicada em 6 de janeiro deste ano, enquanto os que rejeitam "fortemente" caiu 20 pontos. O apoio ao golpe entre os que se definem como "MAGA" (ou seja, os mais leais a Trump, que usam o slogan Make America Great Again) sobe para 43%.
Nessa pesquisa de janeiro, a maioria da população em geral, 78%, ainda rejeitava o assalto ao Capitólio. A esmagadora maioria também acreditava que a democracia estava em risco.
Os assessores de campanha de Trump insistiam para que ele não defendesse o assalto, pois isso mobilizava eleitores contrários, mas pouco antes das eleições o candidato voltou a defender o evento, chamando o dia 6 de janeiro de "um dia de amor" e mentindo ao dizer que não houve mortes (sete pessoas morreram, de acordo com o relatório oficial do Congresso, e pelo menos 150 policiais ficaram feridos).
A aceitação da violência com fins políticos também cresceu, especialmente entre os republicanos, o que coincide com o aumento de incidentes como ameaças de morte contra administradores locais de eleições e, nos casos mais graves, atentados contra políticos (embora o tiro contra Trump não tivesse motivação política, conforme informações disponíveis).
Esse risco de violência aumenta em um contexto de divisão pessoal entre eleitores de partidos opostos. "Quando os partidos se tornam socialmente isolados uns dos outros, o conflito entre eles deixa de ser sobre como governar e passa a ser sobre o próprio conflito", escreve a professora Lilliana Mason em Uncivil Agreement, um livro-chave sobre a chamada polarização afetiva, ou seja, a divisão partidária que não está ligada às propostas políticas.
O que mudou fundamentalmente é o Partido Republicano e não apenas por causa de Trump, mas também devido aos líderes no Congresso após a retirada dos mais críticos a ele. A fidelidade de seus seguidores empurrou outros republicanos a recuar.
“Trump tem total controle sobre a base do Partido Republicano, pelo menos entre 70% e 80%, são essas as pessoas que apoiam Trump aconteça o que acontecer", explica a Rylee Boyd, porta-voz do grupo Republicans Against Trump, que realizou dezenas de grupos de estudo com eleitores conservadores, a maioria indecisos, durante a campanha para entender o que ainda sustentava o apoio ao candidato republicano e como influenciar eleitores não convencidos. “Esses eleitores que já o haviam apoiado duas vezes ainda gostavam muito da percepção de que ele era um outsider, alguém que não era um político normal. E é assim que eles ainda o veem. Não o veem como um político, embora já tenha sido presidente... Eles o veem como alguém que oferece um sentido de comunidade e grupo de uma maneira que outros políticos não fazem.”
As afirmações mais duras e os insultos são acompanhados de um discurso renovado para o partido: as promessas de perseguir rivais e romper com o resto do mundo, seja deportando milhões de pessoas, impondo mais tarifas para evitar a entrada de produtos e serviços de outros países, ou saindo da OTAN para não precisar proteger os países europeus de qualquer ataque.
O isolacionismo, populismo e nacionalismo sempre existiram em ambos os partidos ao longo da história dos Estados Unidos, com o último auge há um século, após a Primeira Guerra Mundial e no meio das chegadas de imigrantes italianos e do centro e leste da Europa, com sucessivas ondas de racismo e antisemitismo. Mas ambos os partidos haviam se realinhado nas últimas décadas para evitar os piores instintos xenófobos e isolacionistas.
Agora, o Partido Republicano abraçou essas ideias como um suposto sinônimo da mensagem "anti-sistema". Mesmo que seus membros sejam parte integrante dele. "As elites estão alienadas do país", repete Newt Gingrich, um dos artífices da retórica agressiva de seu partido (nos anos 90, fez até uma lista de insultos desumanizadores contra os rivais), que passou duas décadas no Congresso e se fez multimilionário com sua carreira política.
O partido de Trump agora oferece "uma visão política baseada em agravios", com a qual os eleitores se identificam, mesmo que seus próprios agravios pessoais não sejam os do próximo presidente, preocupado com seus problemas legais e empresariais, muito distantes do preço dos ovos ou da precariedade de distribuir alimentos. No estudo dos eleitores mais fiéis a Trump, Boyd aponta que a mensagem funciona bem para "uma comunidade de eleitores republicanos" que acreditam que a "perseguição" de Trump também é contra eles mesmos.
A política de agravios funciona de maneira pessoal para qualquer eleitor, mesmo para aqueles que não estão em uma posição precária. Em frente a uma escola eleitoral em Mequon, uma pequena cidade acomodada nos arredores de Milwaukee, em um condado conservador de Wisconsin, Nancy, uma empresária aposentada de 76 anos, falava recentemente sobre sua preocupação com a imigração e, especialmente, com a educação. "Com todos os impostos que pagamos, não acho que o governo esteja gastando o dinheiro de maneira razoável... Vejo crianças que não sabem ler, e isso me assusta para o futuro", dizia ela ao elDiario.es, esta eleitora que havia apoiado Trump.
Em outra ponta do Meio-Oeste, em Dearborn, nos arredores de Detroit, em Michigan, um eleitor bem diferente, Tony Aljahmi, de 40 anos e origem iemenita, via Trump como "um homem forte" que seria capaz de acabar com as guerras, o que mais o indignava, devido "ao medo que ele provocava". Ele sequer contemplava que uma nova proibição de entrada de cidadãos do Iêmen, como a que Trump instaurou em 2017 e prometeu voltar a impor, pudesse afetar seus familiares e amigos.
Os discursos genéricos de Trump contra o establishment funcionam muito melhor do que os mais centrados nos valores do antigo Partido Conservador, até mais do que em questões que foram mobilizadoras para uma minoria, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo e o direito ao aborto.
Mas a mensagem funciona, especialmente entre as pessoas com menos educação universitária, a principal lacuna relacionada ao voto atualmente e que está reconfigurando a política do país. Se até agora ambos os partidos olhavam principalmente para a renda e o origem étnico e socioeconômico de seus eleitores, agora o padrão mais notável é o nível de educação.
Em 2008, o democrata Barack Obama conquistou o apoio das pessoas sem diploma universitário, independentemente da raça ou outras variáveis, por sete pontos e, quatro anos depois, o fez por quatro em sua reeleição. Agora, Trump ganhou entre esses eleitores por 14 pontos, consolidando ainda mais sua popularidade entre esse grupo, que já teve em 2016 e 2020.
A reconfiguração em torno de uma mensagem genérica de mudança e queixas transcende as divisões raciais tradicionais, apesar dos insultos do atual Partido Republicano contra as minorias e a ideia de que elas são privilegiadas por algumas políticas de discriminação positiva em universidades e empregos públicos. A mensagem populista contra o “sistema” teve um impacto que erodiu o apoio dos democratas entre eleitores hispânicos e, em menor medida, afro-americanos, enquanto o apoio da população branca mais educada e urbana aumentou.
Trump demonstrou que, com seu estilo, é possível ganhar eleições, mesmo com as reservas de parte de seus eleitores sobre sua personalidade e seu recorde de impopularidade como presidente e candidato. Nas eleições de 2016, o republicano venceu por algumas dezenas de milhares de votos nos três estados decisivos do Meio-Oeste, perdendo o voto popular para Hillary Clinton, uma candidata com grande bagagem política e também impopular. Mas a fidelidade no partido desde então, mesmo após o ataque ao Capitólio e as condenações judiciais, consolidou o que poderia ter sido um parêntese.
“Essencialmente, Trump terminou de mudar fundamentalmente o Partido Republicano. É o partido de Donald Trump. Não é o partido dos valores conservadores ou o partido de John McCain”, explica Boyd. Mesmo quando ele não estiver mais no poder - não pode se candidatar novamente devido ao limite de dois mandatos imposto pela Constituição -, seu domínio da cena política por tantos anos (em princípio, até janeiro de 2029, quando a pessoa que o suceder assumir) terá mudado o partido. “As forças desatadas no Partido Republicano não desaparecerão. Nunca mais será como era antes”, diz Boyd.
Além disso, já haverá uma geração substancial de pessoas que cresceram com uma política onde se comportar como Trump faz parte do normal e do aceitável, e falta a comparação com outros referenciais.
Essa lacuna de uma política diferente também é algo que esse grupo de republicanos críticos notou em sua análise dos eleitores mais jovens, especialmente os homens, um alvo claro da campanha de Trump, que dedicou até três horas a uma entrevista com Joe Rogan, um apresentador de podcast popular entre esse grupo. Isso explica, em parte, a melhoria minoritária, mas notável, do Partido Republicano entre os eleitores mais jovens.
A maioria dos eleitores expressou, antes das eleições, emoções negativas como medo e cansaço. Apesar da mobilização histórica de uma parte do país, a erosão da vontade de votar foi notada nestas eleições cruciais.
No último fim de semana antes das eleições, cerca de 90.000 voluntários democratas bateram em mais de três milhões de portas para incentivar a participação, especialmente na Pensilvânia, segundo a campanha de Harris. Os republicanos, que mal haviam mobilizado suas tradicionais forças de campo e não tinham tantos voluntários, não fizeram esse esforço, mas, visto o resultado, isso não foi necessário.
A participação, segundo as primeiras estimativas, foi alta, mas não recorde. De fato, apesar da implicação das minorias mais ativas e do que estava em jogo, a participação pode acabar sendo um pouco mais baixa do que nas eleições de 2020, um ano de grande mobilização, embora o medo de contágio durante a pandemia tenha imposto um obstáculo adicional para votar pessoalmente.
Faltando a apuração de todos os votos e a certificação dos resultados em dezembro, o New York Times estima que 157,5 milhões de pessoas votaram. Os cálculos da população de cidadãos americanos com mais de idade maior indicam que cerca de 244 milhões de pessoas tinham direito a votar nessas eleições.
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Como Trump mudou o Partido Republicano (e o país) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU