07 Novembro 2024
João Manuel Duque, pró-reitor da Universidade Católica para o Centro Regional de Braga, considera que a ordenação de mulheres "parece um caminho que se tornou relativamente irreversível" na Igreja.
Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, João Manuel Duque, que é doutor em Teologia Fundamental, nota que o assunto ainda não está "devidamente amadurecido", mas sublinha que o Sínodo acentuou "o valor da mulher na Igreja".
A entrevista é de Henrique Cunha, publicada por Renascença, 03-11-2024.
"Dada a insistência do tema e envolvimento das mulheres na vida da Igreja, mesmo ao nível da liderança", a questão não pode "ser adormecida". Ainda assim, o professor diz que o Papa não irá tomar uma decisão solitária sobre o tema da ordenação de mulheres.
“É uma decisão que tem de ser muito bem sustentada em outros organismos, mesmo antes do Papa. E admito que, com a idade que tem, seja algo de difícil decisão para ele", diz.
"Também acredito que ele não queira nem nunca vá tomar uma decisão sozinho", mas sim "muito sustentado por vários organismos”, sublinha Duque.
"Em alguns continentes, a obrigação do celibato dos padres poderia já não existir", salientando os passos dados pelo Sínodo dos Bispos no plano da reorganização e descentralização na Igreja: “É trabalhada com bastante profundidade a proposta de uma reorganização, diríamos, da descentralização. Isso parece-me muito significativo. Aliás, acho que é capaz de ser dos pontos em que mais se avançou."
Nesta entrevista, João Manuel Duque sublinha também o exercício de "democraticidade" na Igreja que o Sínodo proporcionou. "Nunca houve um exercício tão vasto de sinodalidade, podemos chamar mesmo de democraticidade na Igreja como ao longo deste Sínodo, e isso vale já por si”.
O teólogo admite que “a rapidez da nossa cultura exigiria uma decisão mais rápida”, mas rejeita a ideia de que "a montanha pariu um rato" porque “há algumas transformações propostas que são de bastante peso e não se pode esperar que sejam decididas de imediato, sem mais aprofundamento”.
O professor catedrático diz ainda que “Francisco interpretou muito bem o sentimento eclesial” ao decidir assumir as conclusões da Assembleia Sinodal como suas e ao decidir não escrever uma exortação pós-sinodal. João Manuel Duque tem mesmo a expectativa de que “nunca mais depois de um sínodo”, um Papa venha a fazer “um documento diferente daquele que o sínodo produziu”.
Começamos com a questão mais vezes colocada nos últimos dias e que tem a ver com as expectativas que o sínodo poderia despertar. Há razões para que as pessoas se sintam frustradas com o resultado obtido?
Sim e não. E essa é a pergunta eventualmente mais difícil. Também depende muito das expectativas que se colocavam. Os próprios envolvidos muito diretamente no Sínodo manifestam uma parte de desilusão, mas bastante satisfação, apesar de tudo, com o resultado. É claro que, em grande parte, a desilusão se deve a questões muito concretas, em relação às quais haveria, eventualmente, alguma expectativa, mas que, analisando com cuidado o próprio estatuto do Sínodo, não era expectável que tivessem já uma decisão final.
Acontece que grande parte dessas questões, salvaguardando uma delas, da qual poderemos depois falar, ficaram em aberto no final do Sínodo, o que significa que não ficou o caminho vedado, inclusivamente com a criação das comissões para analisar algumas questões muito concretas. Essas questões serão tratadas agora nessas comissões, porque exigem, além de mais, alguma intromissão com o direito canônico, em alguns casos, e também algum amadurecimento, em outros.
O documento como tal tem sido bastante saudado, mesmo pelos grupos mais críticos e que tinham uma expectativa mais elevada, dado o seu teor, considerado melhor mesmo em relação ao Instrumentum Laboris e aos documentos anteriores. Nesse sentido, a maioria dos mais críticos até está bastante satisfeita com o produto final, tanto quanto se pode ser nestas circunstâncias.
Já depois do Sínodo ter terminado, a Agência Ecclesia interpelou o secretário-geral, o cardeal Mário Grech, com a ideia de que "a montanha pariu um rato". O secretário-geral rejeitou a crítica, referindo-se a mudanças em áreas como a transparência ou a corresponsabilidade e a aposta em organismos de participação, à luz da celebre expressão "todos, todos, todos". São mudanças suficientes para avaliar positivamente três anos de trabalho?
Os três anos de trabalho devem ser avaliados em si mesmos. O que significa que o que se fez tem alguma validade já por si. Toda a dinâmica. Nunca houve um Sínodo com um levantamento tão global, tão universal. Também nunca houve, evidentemente, recursos, nomeadamente tecnológicos, que possibilitassem isso como foi agora possível.
Nunca houve um exercício tão vasto de sinodalidade, podemos chamar mesmo de democraticidade na Igreja, como ao longo deste Sínodo, e isso vale já por si. A transformação da linguagem nos documentos é também significativa e implicou este tempo todo. É um documento com uma linguagem que se distancia um pouco de certas linguagens de tradição eclesiástica, num sentido um bocadinho pejorativo do termo, e, portanto, nesse sentido, considero que é também positivo.
Quanto à expressão de "a montanha parir um rato", enfim, há quem utilize a imagem do camelo e do cavalo. Quando se trata de uma comissão para preparar um cavalo e nos sai um camelo, ele anda, como sabemos, muito mais devagar, mas tem a capacidade de atravessar os desertos, o que significa que há algumas transformações propostas que são de bastante peso. Não podemos esperar que sejam decididas de imediato e sem mais aprofundamento. A rapidez da nossa cultura exigiria, eventualmente, uma decisão mais rápida, mas talvez seja prudente não a tomar.
Também é preciso ver que, relativamente aos pontos mais polêmicos, também não houve unanimidade. O caso concreto do lugar da mulher na Igreja foi, de fato, a parte do documento que teve mais votos contra. Ora, um Sínodo, apesar de tudo, tem de levar em conta as diversas sensibilidades, também aquelas que não estão de acordo com uma proposta majoritária.
O documento diz que “não há nenhuma razão para que as mulheres não assumam papéis de liderança na igreja”, mas afirma também que "é necessário um maior discernimento a este respeito”. Não seria de esperar que houvesse algo mais concreto sobre o papel das mulheres?
Sim, há coisas concretas referidas, mas é, evidentemente, dentro do enquadramento atual, diríamos, quer sacramental quer do direito canônico. Ou seja, acentua-se a importância de colocar mulheres em espaços e lugares de liderança, sem ainda vincular a questão com o Sacramento da Ordem. Enquanto os lugares de verdadeira liderança, se quisermos, e de última decisão na igreja estiverem vinculados ao Sacramento da Ordem, a questão da ordenação continua sendo uma questão permanente, ou seja, há certos lugares de decisão aos quais a mulher, só pelo fato de ser mulher, não tem acesso. O cardeal-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, ou Dicastério para a Doutrina da Fé, considera que se poderia separar, eventualmente, a função de liderança e de governo do Sacramento da Ordem, mas isso não parece viável e, possivelmente, nem sequer desejável na Igreja.
Na sua opinião, o Sínodo aponta, de fato, para a possibilidade da ordenação de mulheres?
Não havendo razões para o não impedimento do acesso à Ordem por parte da mulher, os críticos dizem, precisamente, que o importante neste documento é declarar que não há razões, que não há impedimentos, quando anteriormente se referia a existência desses impedimentos e dessas razões. Inclusivamente razões teológicas. Isso já é importante.
Depois, a realização concreta disso passará, em primeiro lugar, pelo diaconato. Quanto a mim, é insuficiente, a não ser que transformemos muito a figura do diaconato permanente. Mas passará por aí e aí terá que trabalhar a comissão. É certo que já há uma comissão que vinha trabalhando nisso. Os resultados, de fato, não foram satisfatórios. Eu acredito que, dada a insistência deste tema e o envolvimento cada vez mais forte das mulheres na vida da igreja, essa questão não vai poder ser adormecida.
Fica essa pista... Há outras questões que ficam abertas, como, por exemplo, a do celibato dos padres. Um primeiro passo não poderia passar pelo desenvolvimento da experiência nas igrejas locais? Por exemplo, alguma ou algumas conferências episcopais poderem avançar...
Exato. Por acaso, o tema em si praticamente é silenciado. Há ali uma referência simpática às igrejas orientais, de rito oriental e a padres celibatários ou casados, o que significa que o assunto é assumido como natural, como perfeitamente normal. Mas, depois, o assunto não é trabalhado. É sim trabalhada com bastante profundidade a proposta de uma reorganização, diríamos, de uma descentralização.
Isso aí parece-me muito significativo. Aliás, acho que é capaz de ser dos pontos em que mais se avançou, um dos pontos em que, eventualmente, o direito canônico será chamado a fazer alterações significativas. O peso das Conferências Episcopais e, eventualmente, da conjugação das conferências em zonas continentais poderá levar à delegação de certas decisões, nomeadamente as decisões disciplinares e, eventualmente, rituais mais litúrgicas para regiões do Ocidente, não precisando de uma decisão central homogênea da parte de toda a Igreja Latina. Tem sido isso que tem impedido certas decisões, nomeadamente a questão do celibato. Eu penso que a questão do celibato, se fosse abordada regionalmente, pelo menos por continentes, em alguns a obrigação já não existiria como tal. Acredito que essa transformação mais, diríamos, das estruturas globais de governo da Igreja possam vir a permitir decisões parciais que, depois, acabam tendo impacto em outras regiões também.
Esse foi, aliás, um aspecto abordado em coletiva de imprensa, quando se sugeriu a intenção de transformar a linguagem relativamente à ideia de Igreja Universal e à sua relação com as várias comunidades locais. Há neste ponto uma transformação eclesiológica em curso?
Em certo sentido, sim, embora não com novidade total. Em rigor, esse tipo de organização já existe na organização por patriarcados, por exemplo, das igrejas orientais, católicas ou não. Do ponto de vista eclesiológico, diríamos que é mais a exceção, embora tenha durado muitos séculos, a centralização do estilo latino, ou seja, a vinculação a uma Igreja quase global do que propriamente a diversidade de ritos e a diversidade de organização disciplinar, que é até mais tradicional e bastante mais antiga. Nesse sentido, considero que esta transformação eclesiológica é para a recuperação de uma tradição importante, que é a articulação da unidade na diversidade e não na uniformidade.
A confusão da uniformidade foi se desenvolvendo ao longo dos séculos e acabamos identificando a unidade da Igreja muito com a uniformidade e o controle central. É claro que tem algumas vantagens, evita alguma fragmentação, que nomeadamente os nossos irmãos das igrejas não católicas, protestantes em geral, conhecem e às vezes têm dificuldade de lidar com essa fragmentação. Mas há um preço muito grande a pagar, que é a centralização e, mesmo num processo sinodal, a dificuldade de chegar a consensos mínimos relativamente a alguns pontos que só serão solúveis com uma reorganização mais descentralizada da Igreja.
O Papa Francisco assumiu as conclusões da Assembleia Sinodal como suas, com o Magistério Pontifício, e decidiu não escrever uma exortação pós-sinodal e enviar o texto votado pelos participantes no Sínodo à Igreja em todo o mundo. O que é que diz este gesto do Ministério Petrino?
É um gesto inédito, tanto quanto sei, e é um gesto muito significativo. Em rigor, corresponde a um exercício do Ministério, do Magistério, neste caso, mas do próprio Ministério Papal, cuja infalibilidade é uma infalibilidade a partir de baixo, a partir de toda a população. Na prática, a partir dos census fidelium, eventualmente consensos, mesmo que não seja total, de todos os fiéis. Nesse sentido, tem uma base teológica muito forte, pode ter até um impacto no próprio paradigma da noção de poder e até de governo, que não é propriamente hierárquico, de cima para baixo, mas é constituído por delegação e em alguns casos nem sequer por delegação, ou seja, de forma muito sinodal, de baixo para cima, o que dá ao povo de Deus um estatuto de Magistério e não a um grupo de especialistas, muito menos de especialistas ordenados. Não reserva a esse grupo esse estatuto. Não é um poder magisterial direto, é um poder magisterial confirmado pela figura da Unidade, pela figura do Papa, mas essa confirmação, em rigor, assume a conclusão do processo sinodal. A própria Igreja, nos contextos em que vivemos hoje, já se sentia relativamente mal com o fato de reunir, sobretudo bispos, os representantes de todo o povo de Deus, que fazem um documento, ou uma proposta de documento para, depois o documento ser exarado a partir de uma espécie de poder absoluto papal.
Acho que o Papa Francisco interpretou muito bem o sentimento eclesial e esse gesto é um gesto claro de superação de uma matriz que, em rigor, já não se adequava, não digo aos nossos tempos, mas mesmo à nossa forma eclesial de ver as coisas.
Pessoalmente, espero que o gesto se mantenha: que nunca mais depois de um sínodo, um Papa vai fazer um documento diferente daquele que o sínodo produziu.
Uma ideia que praticamente todos os participantes quiseram passar foi a de que o sínodo começa agora. Será que os crentes vão entender esta mensagem, a mensagem, como alguém também já disse, segundo a qual acabou o sínodo e começa a sinodalidade?
Isso é verdade. Já começou um pouco antes, na prática, mas todo o documento é orientado para isso, é orientado para uma nova forma de vivermos a Igreja.
Não podemos esconder uma coisa: isso vai depender muito das lideranças eclesiais, quer queiramos quer não. Se as lideranças eclesiais não derem corpo a todas as propostas, sugestões, indicações, e algumas quase de caráter obrigatório, tudo poderá estar, dentro de algum tempo, completamente esquecido e uma nova tentativa de sinodalidade não vai ter o efeito que teve esta. É preciso dar corpo a questões como prestar contas, questões de controle, questões de transparência, precisamente para evitar abusos de poder... Se as lideranças eclesiais não derem corpo a isto... Mas eu acredito firmemente que as diversas lideranças eclesiais vão dar corpo a isto, de forma até institucionalizada, porque o que vai ficar para o futuro não é a mera boa vontade de alguns, será aquilo que vamos conseguir fazer passar para estruturas institucionalizadas e que salvaguardem a justiça e a participação de todos os fiéis.
A recepção das conclusões do Concílio Vaticano II permanece em processo, 60 anos depois. O que é que podemos esperar do acolhimento das decisões de três anos deste processo sinodal, que resulta num documento muito aberto, desafiando a reflexão em cada comunidade local?
Os tempos são outros, apesar de tudo. Eu acho que o tempo de recepção e aplicação será mais breve. O estilo do documento também é um pouco diferente, é muito orientado para certos pontos da dinâmica das comunidades eclesiais e, nesse sentido, até de mais fácil aplicação.
Temos um exemplo no Concílio Vaticano II: o documento de mais fácil aplicação, até certo ponto, pelo menos, era o documento sobre a Liturgia. E, de fato, teve a aplicação quase imediata. As transformações foram notórias logo em seguida, com todas as dinâmicas mais radicais ou menos radicais. Eu acredito que o impulso sinodal vai continuar e, portanto, a recepção nas comunidades vai ser sem interrupção. E os pontos que ficaram em estudo vão ser reclamados. Nisso acredito, claramente.
Uma proposta, uma sugestão para a Igreja Católica em Portugal, a partir deste trabalho sinodal e deste documento final?
Há questões muito concretas: a questão da transparência e a questão da prestação de contas, das paróquias às dioceses, é algo que tem que entrar na nossa dinâmica cotidiana. A questão da organização justa, mesmo das instituições eclesiais, nomeadamente daquelas que têm empregados. Nós temos muitos centros sociais, nós temos escolas, temos várias coisas. O controle da justiça relativamente a todos os que trabalham na Igreja é algo que tem que ser implementado de imediato e com muito cuidado. Depois, os órgãos de consulta, de ajuda na decisão, de participação na decisão, quer a nível diocesano, onde já estão mais ou menos implementados, mas sobretudo a nível paroquial, concretamente os conselhos pastorais paroquiais, é algo que tem de ser imediatamente implementado.
Eventualmente, transformar a Conferência Episcopal Portuguesa, se for esse o caso, num órgão com capacidade de decisão para as diversas dioceses em Portugal, com um mais impacto prático na vida dessas dioceses, na medida em que, em última instância, cada diocese faz o que quer relativamente às decisões da Conferência Episcopal. Esse também é outro aspecto. Mas aí até pode haver alterações no Direito Canônico relativamente ao estatuto, até legislativo da própria Conferência Episcopal.
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Ordenação de mulheres “parece um caminho que se tornou relativamente irreversível”. Entrevista com João Manuel Duque - Instituto Humanitas Unisinos - IHU