23 Outubro 2024
“Ele quer encorajar uma Igreja que escuta e oferece respostas de esperança”.
O artigo é de Félix Placer Ugarte, teólogo, publicado por Religión Digital, 22-10-2024.
O nosso mundo em mudança hoje vive “tempos incertos e vidas instáveis”, num momento crítico de insegurança, como mostra o Relatório de Desenvolvimento Humano 2021-2022 da ONU. Os conflitos atuais estão a gerar uma situação que nega qualquer verdadeiro projeto de paz e só considera os armamentos e a guerra como forma de resolver os confrontos geopolíticos. A deterioração imparável do ambiente confronta a sustentabilidade da terra, a sua ecologia e habitabilidade.
As crescentes desigualdades socioeconômicas suprimiram o equilíbrio global. O sentimento de incerteza penetrou nas sociedades que não veem horizontes para um mundo submetido aos interesses egoístas de Estados arrogantes guiados por interesses e ideologias capitalistas. Estamos caminhando para situações distópicas. Consequentemente, a alarmante perda de horizontes utópicos que o nosso mundo está a viver e a ameaçadora insegurança obscurecem cada vez mais a esperança, o coração da espiritualidade.
Este contexto é um terreno fértil na condição humana para a desilusão, o pessimismo e até a angústia; uma profunda desorientação invade a vida cotidiana. Vivemos em “tempos sombrios”, diz Hannah Arendt, tempos “instáveis” e líquidos, segundo Zigmunt Bauman. Espalha-se a impressão de não sabermos para onde vamos e também não é interessante perguntar, porque nos faltam respostas ou as que nos são oferecidas não são fiáveis. A vertigem do niilismo leva à convicção de que a humanidade carece de sentido e só importa o que é imediato, que consiste, para os países pobres, em conseguir sobreviver e, para os ricos, em aumentar a acumulação de bens materiais que lhes permitam usufruir da sua posse e garantir um futuro seguro.
Diante desta situação, uma “civilização artificial” digitalizada, segundo o diagnóstico de José María Lasalle, impulsionada por máquinas computacionais, já pretende oferecer respostas adequadas. Como adverte Yuval Noah Harari, “poderíamos ficar perfeitamente feliz cedendo toda autoridade aos algoritmos e confiando neles para decidir por nós e pelo resto do mundo”. Na verdade, as Tecnologias de Informação e Comunicação colocam ao nosso alcance imediato aquilo que “deveríamos” saber.
Para não nos sentirmos perdidos diante dos inúmeros dados que hoje são gerados, a Inteligência Artificial se encarrega de organizá-los e nos oferece respostas instantâneas às nossas perguntas e dúvidas. Diante dos graves problemas de uma vida saudável, a Biologia Sintética nos promete resultados saudáveis surpreendentes. Dentro de alguns anos, é mesmo anunciada uma 'superinteligência' que, ultrapassando a atual inteligência humana, resolverá todos os nossos problemas e guiar-nos-á pelo caminho 'correto', criando um transumanismo em direção a um pós-humanismo.
Com uma condição, deixamo-nos conduzir pelos metaversos das poderosas plataformas informáticas que hoje controlam todo o mundo digital e nos conduzem ao universo virtual que oferece possibilidades ilimitadas. Não há necessidade de esperar nada; tudo está ao nosso alcance digital; também o futuro. E refiro-me especificamente a uma “sociedade digital” que, promovida pelas plataformas de influência globalizadas das grandes corporações ocidentais (Google, Appel, Facebook, Amazon, Microsoft), com as suas correspondentes empresas rivais chinesas (Alibaba, Tencent, Baidu,... ), está invadindo o mundo, a cultura e a própria condição do ser humano.
Nesta era da digitalidade, coloca-se também a questão, na minha opinião, de como compreender e viver a espiritualidade no 'metaverso' que nos põe no novo paradigma de um mundo virtual dominado pelos interesses das grandes plataformas e pela luta geopolítica entre os EUA e a China pela Inteligência Artificial.
O professor de Humanidades Digitais da Western University no Canadá, Juan Luis Suárez, numa obra clarividente (A condição digital, Trotta, 2023) analisa esta era da digitalidade, dominada pelas plataformas, onde procuram fazer desaparecer todos os atritos numa máquina de simbiose-humano. “Gerou-se a maior crise de identidade que a humanidade já teve… que nos leva a uma mudança civilizacional transumana de natureza tecnológica e militar”, onde se turva a esperança que é a base e o horizonte da humanidade autêntica, porque é desnecessária, e enquadra-nos num “enxame digital” de comportamentos grupais, como já demonstrado pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (In the swarm, Herder, 2014).
Neste mundo tecnológico concebido e desenvolvido hoje pelas grandes corporações e plataformas acima mencionadas, que nos rodeia e domina com crescente intensidade e penetração, a esperança e a utopia, que implicam audácia e compromisso libertador, estão a enfraquecer na sociedade; se é que já não desapareceram, sobretudo nas novas gerações, já digitalizadas desde a infância que não frequentam, nem compreendem, nem se interessam pelo discurso da esperança utópica.
Por que esperança e utopia se o smartphone nos fornece instantaneamente tudo o que precisamos saber e podemos transformá-lo em jogos sofisticados? Por que o espírito crítico, quando as soluções já estão previstas? Por que a libertação, quando submetendo-nos a projetos já desenvolvidos, desfrutaremos de um mundo virtual feliz que outros já programaram com algoritmos interessados? A oferta do metaverso das grandes plataformas coloca-nos com meios e incentivos poderosos num paradigma onde não há necessidade de esperar pois tudo está preparado, desenhado, oferecido e facilitado.
É claro que não faltam reações e respostas, pois o que está em jogo é o futuro da humanidade: a sua concepção e o seu futuro. Mulheres e homens pensadores, filósofos, também cientistas, poetas e escritores, teólogos... hoje abordam o problema com preocupação; também com reflexões e propostas abrangentes. Byung-Chul Han, em seu último ensaio, The Spirit of Hope (Herder, 2024), propõe a esperança como modo de vida. É preciso ouvi-los e dialogar com eles. Propõem, claro, não fugir das inovações tecnológicas, mas considerá-las como um avanço positivo, desde que não estejam submetidas aos interesses das plataformas dominantes. Podem abrir caminhos e alimentar atitudes de esperança para a humanidade.
Do ponto de vista cristão destaco as contribuições que abrem novas perspectivas. O Papa Francisco anuncia um jubileu com o lema Peregrinos da Esperança. Apela a “uma reflexão profunda que renove o pensamento e as opções a fazer” a partir do respeito pela “dignidade humana à luz do ensinamento da Sagrada Escritura e da Tradição Cristã”. O Sínodo, na sua última etapa, quer incentivar uma Igreja que escuta e oferece respostas de esperança. Veremos seus resultados e sua aplicação. Seria uma grande decepção se fossem limitadas as mudanças formais e estruturais que, embora necessárias, não respondem às grandes questões da humanidade hoje, como já solicitou a Gaudium et Spes. Podemos anunciar e praticar uma esperança motivadora hoje?
Em nome de teólogos renomados, destaco, entre outras, as reflexões de Juan José Tamayo desenvolvidas em Uma espiritualidade libertadora sobre o “novo paradigma da espiritualidade no horizonte do pluriverso cultural e religioso”. Ele se pergunta se há lugar para isso na era da tecnocracia, dos ditames da Inteligência Artificial treinada pelos interesses do poder e do capitalismo. A sua reflexão teológica, inspirada em Ernst Bloch, J. Moltmann, D. Bonhoeffer, JB Metz e nos teólogos da libertação, é motivada pela motivação evangélica, pelas suas convicções profundamente fundamentadas e pela esperança utópica no compromisso ativo e militante. Como Antonio J. Mialdea muito bem enfatizou em artigo recente, ele define a pessoa humana como “ser-esperança”. Esta perspectiva sintetiza o paradigma de uma espiritualidade que implica o ecofeminismo, a interespiritualidade e o compromisso libertador com um pluriverso cultural e religioso.
Que esperança podemos oferecer? Acredito que a questão decisiva da humanidade hoje seja a filosofia, a ciência, as religiões e, claro, a missão da Igreja, a teologia, se quiserem ter sentido. Não podemos oferecer respostas isoladas, mas sim relacionadas, críticas, híbridas, cooperativas, como propõem, entre outros, Carlos Blanco, Victoria Camps, José Antonio Marina, Daniel Inneraridade em Doze filosofias para um novo mundo (Fundación Santander, 2024), alcançar um consenso ético, político, ecológico e religioso universal plural, como também indica Tamayo; que os tempos estejam abertos a sinais em que as novas tecnologias, sem se submeterem aos metaversos de plataformas poderosas, devam ser consideradas e utilizadas numa busca ética, comum e urgente, uma vez que está em jogo o futuro da humanidade.
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Perto do fim do Sínodo: crise de esperança? Artigo de Félix Placer Ugarte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU