"É difícil imaginar o que vai acontecer na Nicarágua, mas a atual situação é insustentável a curto prazo. Ortega atira a qualquer lado, esquerda ou direita, basta sentir o cheiro de oposição e contestação, ou identificar uma possível ameaça. Ortega tem levado à prisão gente considerada de esquerda e de direita, isso não importa para ele. Nas prisões do regime tem passado professores universitários, poetas, escritores, camponês, trabalhadores, empresários, jornalistas, padres e pastores, assim como antigos sandinistas que lutaram contra Somoza, como mencionei antes".
O artigo é de William Gómez, nicaraguense, doutor em sociologia pela UFRGS e professor do Instituto de Filosofia, sociologia e política da UFPel.
"De aquellos polvos, estos lodos”
Começo com umas perguntas: como é possível que na Nicarágua haja uma ditadura se os revolucionários sandinistas voltaram ao poder depois de ser derrotados nas urnas em 1990? Um governo que consideramos de esquerda pode violar os direitos humanos e cometer crimes de lesa humanidade? Qual deve ser nossa postura diante as violações aos direitos humanos cometidos por um governo que consideramos de esquerda? Ao criticar e denunciar esses crimes cometidos por governos que pensamos que são de esquerda estamos fazendo o jogo dos inimigos do povo e do imperialismo? Por fim, nosso silêncio não é aproveitado pela ultradireita e as forças mais reacionárias?
Para tratar da atual situação Nicarágua existem algumas dificuldades. Esse pequeno país, dependente, subdesenvolvido, considerado o segundo país mais pobre da América Latina e com uma estrutura predominante agrícola, está localizado na América Central, numa região praticamente invisível para a maioria dos brasileiros em termos históricos, culturais e políticos; é certo de que para militantes de esquerda e ativistas sociais, o nome da Nicarágua está relacionado com a grande epopeia de um povo que, com as armas nas mãos, derrubou a ditadura de Somoza; essa imagem e representação, própria das classes médias, têm criado uma espécie de “mistificação” da revolução, que tem limitado as análises do processo histórico, isto é, das contradições, avanços e retrocessos; portanto, os analistas prisioneiros dessa mistificação, não conseguem ver as metamorfoses do sandinismo no poder; outra dificuldade que posso apontar é que os estudos dos cientistas sociais sobre regimes ditatoriais centram-se nas ditaduras do passado, esses estudos são importantes porque têm a pretensão justa de evitar a repetição desses regimes autoritários, porém, surgem, como é o caso da Nicarágua, novos autoritarismos que merecem ser estudados.
O caso da Nicarágua difere de outros, como o da Venezuela e o de El Salvador, pelo fato que a situação política atual do País está em relação direta com a revolução sandinista de 1979. Vale a pena lembrar que a revolução sandinista de julho daquele ano foi a última do século XX que seguiu o estilo leninista, isto é, uma insurreição de massas dirigida por uma vanguarda. Não é possível afirmar que há uma continuidade linear entre aquela revolução, que destruiu o “Estado burguês”, e o fenômeno que hoje conhecemos como orteguismo. Entre um e outro momento houve determinantes e contradições históricas, como a revolta armada, de base camponesa, contra o governo sandinista, o bloqueio econômico, a crise econômica, a escassez de alimentos e produtos básicos, o verticalismo político da “vanguarda”, o serviço militar obrigatório e a agressão militar do imperialismo. Todos esses fatores resultaram na derrota eleitoral do sandinismo em fevereiro de 1990.
Na formação do sandinismo convergiram um leque amplo de influências diversas, além do seu distanciamento da política de coexistência pacífica da União Soviética que prevaleceu no contexto da guerra fria, e que defendiam os partidos comunistas na América Latina. Vale lembrar que Nicarágua é um pequeno país cuja história está marcada pela intervenção direta dos Estados Unidos desde o século XIX, e durante o século seguinte, com a excepção de alguns breves períodos de estabilidade, a invasão de tropas do exército dos Estados Unidos foi uma constante. A origem do sandinismo está na reação dos nicaraguenses frente às violações da soberania de parte de uma potência estrangeira. Não vou me estender neste ponto porque é conhecida a história de Augusto Cesar Sandino que junto com um pequeno “exército louco” formado por camponeses, como o chamou Gregorio Selser [1], lutou nas montanhas da Nicarágua contra os “marines, durante seis anos (1927 a 1933), até derrota-los. Como mencionei, o sandinismo reúne diversas influências e além da luta pela soberania nacional de Sandino, há que mencionar o impacto da revolução cubana de 1959 na América Latina. A revolução cubana se tornou um modelo para muitos jovens latino-americanos, por outro lado, o sandinismo se propus sintetizar as lutas anticolonialistas dos vietnamitas, chineses e a guerrilha do Che Guevara na Bolívia.
Imediatamente após a tomada do poder se iniciou à reconstrução do Estado, o que implicou a organização de um exército regular e o desarmamento das milícias populares espontâneas que se haviam formado durante a insurreição. Ou seja, logo depois da derrubada da ditadura se iniciou, como não poderia ser de outro modo, a institucionalização de uma nova ordem para assim, implementar o projeto sandinista baseado na economia mista e o pluralismo político. Se sabe que este matiz do projeto é devedor dos conselhos de Fidel Castro, para evitar que Nicarágua se tornasse “uma nova Cuba” isolada e bloqueada, condição que até hoje vive Cuba.
Durante a década dos anos oitenta, os sandinistas tentaram se equilibrar nadando nas contradições até sucumbir pelo voto popular nas eleições de fevereiro de 1992. O desgaste da economia, as altas taxas de inflação, o desabastecimento de produtos alimentícios, e sobretudo os altos custos da guerra não só em termos materiais, mas principalmente em vidas cobrou seu preço. Lembre-se que o governo sandinista teve que implementar o serviço militar obrigatório para fazer frente aos chamados “contras”. Milhares de jovens eram recrutados, o que contrastava com o recrutamento que faziam os contras. Tem algumas pesquisas que tratam deste ponto, mostrando como os jovens camponeses que, recrutados pela “contra”, não perdiam seu contato com suas famílias, o que não ocorria com os recrutados pela Lei do Estado sandinista.
Dito isto, numa síntese apertada, mas que espero ter dado uma ideia dos antecedentes e do significado da revolução sandinista de 1979, me focarei no que está acontecendo hoje na Nicarágua. Ortega voltou ao poder, com sua esposa, Rosario Murillo como Vice-presidente, em 2007 como uma “segunda etapa da revolução”, sedo isto, apenas “discurso ideológico”, para ocultar a metamorfose ocorrida, mesmo tendo compactuado com a Igreja, com a proibição do aborto terapêutico, e estabelecido uma aliança com a empresa privada. Para chegar de novo ao poder em 2006 a FSLN teve que passar por profundas mutações.
Essa ordem política durou onze anos (2007 a 2018) até que ocorreram os protestos populares em abril de 2018. Essas mobilizações se iniciaram em Manágua com a participação de jovens, estudantes e o povo da periferia solidarizando-se com os aposentados que, protestando contra a reforma da previdência, foram reprimidos por forças armadas do orteguismo. Uma característica dessas mobilizações é que surgiram por fora dos partidos políticos. Ortega respondeu de forma brutal, organizando grupos armados que juntamente com a polícia reprimiram as manifestações. Como resultado se contabilizaram mais de 355 mortos e milhares de feridos. Todos esses atos repressivos estão documentados. Nunca se viu na capital Managua tamanha repressão e impunidade nem na época do ditador Somoza. Não vou descrever aqui todos os fatos, que são muitos, que mostram o processo de consolidação de um novo tipo de autoritarismo, mas certamente o ano de 2018 marca o início dessa virada. A partir desse momento o governo de Ortega se dedicou a acabar (literalmente) com qualquer tipo de oposição e qualquer espaço de autonomia e de livre expressão política. Criminalizou as redes sociais e milhares saíram para o exílio, centenas foram feitos prisioneiros, se chegou ao absurdo de Ortega capturar os candidatos da oposição das eleições de novembro 2021. Todos os partidos políticos foram eliminados. Nessas condições de repressão é que Ortega “venceu” as eleições de novembro.
Recentemente confiscou a Universidade Centro-americana (UCA) e outras universidades privadas, fechou mais de 150 ONGs e fez prisioneiros a religiosos, num ataque direto à igreja. Em fevereiro de 2024, Ortega liberou 222 presos políticos, mas os expulsou do País, além disso lhes tirou a cidadania e seus bens foram confiscados. Essas liberações de prisioneiros políticos são resultado de negociações diretas com os Estados Unidos. Em 5 de setembro, Ortega libertou 135 prisioneiros políticos, e os expulsou para Guatemala, dois dias depois foram despojados de sua cidadania e seus bens confiscados.
Nicarágua é uma grande prisão. Há um ambiente de terror, qualquer like nas redes sociais é motivo de prisão como ocorreu com meu amigo Freddy Quezada, professor de sociologia que, por solidarizar-se com os estudantes, foi demitido da universidade. Em 28 de novembro do ano passado foi sequestrado, tirado de sua casa, permaneceu dez meses numa prisão do regime sem direito a visita de seus familiares. Em 5 de setembro, foi libertado e expulso, junto com 134 prisioneiros, para Guatemala.
É difícil imaginar qual será o desenlace da atual situação na Nicarágua. Existe um medo que inclusive tem contaminado as próprias fileiras do ortreguismo. Alguns analistas vaticinam uma espécie de implosão do regime que conta principalmente com o poder das armas (exército, polícia e grupos de paramilitares) mas também do funcionalismo público que vive em medo permanente de ser demitido ou alcançado pela onda repressiva. Tudo que seja considerado perigoso para o regime é eliminado, não escapou nem sequer o irmão do Daniel Ortega. Humberto Ortega, antigo chefe do exército sandinista e principal estratega da vitória militar sandinista em julho de 1979. Ele foi feito prisioneiro por ter manifestado seu descontentamento sobre os rumos do país e sugerindo uma saída negociada. Os próprios sandinistas históricos críticos do orteguismo têm sido vítimas do terrorismo do Estado. É o caso de Hugo Torres, um herói da revolução, que morreu no ano passado nos careceres da ditadura orteguista, depois de permanecer vários meses preso. Dora Maria Téllez, outra heroína da insurreição popular, foi presa e desterrada, hoje vive no exílio, seus bens foram confiscados e ela é uma nova apátrida. Assim, posso listar os numerosos fatos, denunciados por organizações de direitos humanos e da livre expressão que mostram o objetivo do regime de eliminar qualquer tipo de oposição, ou do que ele considera “conspiração” contra um “governo popular” que é, segundo a Ortega continuação da revolução e das lutas de Sandino contra os “marines”.
A rebelião popular de abril de 2018 revelou que havia se acumulado um descontentamento silencioso contra o governo de Ortega. Esses protestos populares não são uma tentativa de “golpe de Estado”, como quer parecer o discurso do orteguismo. Esse discurso faz parte de um imaginário produzido pelo poder e assumido por alguns setores da esquerda na América Latina. Dessa forma, Ortega quer deslegitimar e descaracterizar o movimento social. Entre 2015 e 2017 existiam diversos movimentos sociais, principalmente um movimento de camponeses que lutavam contra os impactos sociais e ambientais do projeto de construção do canal interoceânico do governo de Ortega. As manifestações que se iniciaram com os protestos dos aposentados e a solidariedade que se espalhou por todo o país foram a centelha de um levantamento massivo contra o poderio oretguista. A hegemonia do orteguismo era apenas aparente e ocultava a insatisfação popular que emergia à margem dos partidos políticos tradicionais.
O orteguismo é um novo tipo de autoritarismo, mas ao mesmo tempo é síntese e continuação de velhas tradições autoritárias, messiânicas e caudillistas da sociedade nicaraguense. Em determinados momentos históricos representadas pelo liberalismo, em outros, pelo conservadorismo das elites empresariais e latifundiárias. Também podemos mencionar que o orteguismo também contém uma antiga vertente política (modo de fazer política) que poderia se denominar como “stalinismo tropical”, uma adaptação ou recriação de um autoritarismo que persiste no “campo da esquerda”.
Para alguns setores da esquerda latino-americana e europeia Ortega representa uma tendência progressista nacionalista que está em confronto com o imperialismo e, portanto, merece seu apoio. Só que esse apoio ao regime de Ortega se expressa de forma incondicional, isto é, não importa os atos ilegais e as violações aos direitos humanos cometidas pelo orteguismo. Justificar essas violações aos direitos humanos é uma questão ética.
É difícil imaginar o que vai acontecer na Nicarágua, mas a atual situação é insustentável a curto prazo. Ortega atira a qualquer lado, esquerda ou direita, basta sentir o cheiro de oposição e contestação, ou identificar uma possível ameaça. Ortega tem levado à prisão gente considerada de esquerda e de direita, isso não importa para ele. Nas prisões do regime tem passado professores universitários, poetas, escritores, camponês, trabalhadores, empresários, jornalistas, padres e pastores, assim como antigos sandinistas que lutaram contra Somoza, como mencionei antes.
O círculo de poder de Ortega está se fechando. Ortega desconfia de tudo e de todos. O filho [2] de Carlos Fonseca, o fundador da Frente sandinista, atualmente está preso por organizar um grupo de WhatsApp denominado “La comuna”. Ninguém escapa da mão de ferro do orteguismo e toda crítica é castigada.
De forma sigilosa Ortega tem negociado diretamente com o governo dos Estados Unidos para a libertação de prisioneiros políticos a troca de diminuir as pressões internacionais, mas a perseguição política continua. Até 2023 se calcula que 271.740 nicaraguense têm solicitado asilo político em diversos países, principalmente Costa Rica, Panamá, Estados Unidos, Espanha e México. Além disso, mais de 300 nicaraguenses perderam sua cidadania como efeito da ação arbitrária do orteguismo o que é uma clara violação aos direitos mais elementares e ao direito internacional que proíbe a privação da nacionalidade por motivos raciais, étnicos, religiosos ou políticos ou ainda, pelo exercício da liberdade de expressão e de organização.
Qualquer mudança virá de arriba para abaixo, incluindo possíveis negociações com os Estados Unidos, resta saber o tipo de mudanças, mas dadas as condições atuais de inexistência de uma oposição política organizada o mais provável é que seguindo [Giuseppe Tomasi di] Lampedusa [3] de mudar algo para que tudo continue como está. Por agora não há indícios de mudança de rumo na situação política da Nicarágua, e Ortega continua sua estratégia repressiva, indo ainda mais longe, em 6 de setembro promulgou uma lei que permite julgar a quem cometa ações contra o governo no exterior [4].
É difícil sabê-lo exatamente, mas outro governo já teria caído com menos do que tem feito Ortega até agora. O regime eliminou todos os espaços de livre expressão e autonomia, como as universidades, as igrejas, as organizações não-governamentais [5], os jornais e meios de comunicação. Além disso, Ortega controla os poderes do Estado e tem legalizado a repressão, assim pode atuar com impunidade. Nicaraguenses são sequestrados de suas casas, sem direito a defesa nem visitas familiares por longos períodos.
A nível internacional Ortega conta com o apoio explícito de Venezuela, China, Cuba e Rússia, o que é um elemento relevante a ser tomando em conta para compreender a atual situação. Por agora, as sanções internacionais a pessoas chave do governo de Ortega não têm provocado o afrouxamento das medidas repressivas, porém são mecanismos para viabilizar a saída “suave” por meio de eleições. Só não se sabe de que tipo seriam essas eleições nem em que condições se realizariam.
As ações de repressão do orteguismo longe de representar fortaleza e consolidação do regime, são sinais da crise e da fragilidade do governo de Ortega. Levando a alguns observadores a apostar numa saída pela implosão, isto é, uma autodestruição ou uma destruição desde o interior de suas “bases sociais”. Ortega vê conspirações e ameaças por todos os lados, inclusive de seus próximos, chegando, como mencionei, a encarcerar seu próprio irmão, um personagem relevante na história do sandinismo.
O mais recente episódio que reforça a hipótese da implosão é a prisão de Steadman Fagoth Müller, que era assessor do governo de Ortega, de políticas públicas para os povos originários da Costa Atlântica da Nicarágua, especificamente na Região Autónoma da Costa Caribe Norte [6]. Ele foi feito prisioneiro, em 15 de setembro de 2024, após denunciar a destruição das florestas e o massacre dos povos tradicionais da região de parte dos colonos e as empresas estrangeiras de minério (extração de ouro), todas sob o incentivo do regime. O depoimento de Fagoth confirma as denúncias que têm feito os próprios indígenas e organismos de defesa de direitos humanos. Cabe mencionar que esse processo de destruição das florestas e das populações indígenas não é novo, mas é o regime de Ortega quem tem feito mais concessões às empresas mineiras estrangeiras. Fagoth denunciou que, de seguir as invasões dos colonos na Reserva Biológica de Bosawas, as populações mayangna e miskita desaparecerão em menos de duas décadas. A situação nessa região é crítica e é o elo mais fraco do regime. Entre os presos políticos [7] que ainda ficam nos cárceres do regime estão líderes miskitos e guardas florestais da etnia mayangna, encarcerados por defender os territórios indígenas invadidos pelas empresas mineiras, madeireiras e pelos “colonos”.
Como mencionei, há uma ambiguidade no apoio a Ortega de parte do que podemos denominar como “campo das esquerdas”, por um lado há quem o apoia incondicionalmente partindo da premissa que o regime orteguista é um governo de esquerda, socialista e, portanto, em luta contra o imperialismo norte-americano. Desta forma, é justificada “ideologicamente” qualquer ação repressiva para acabar com as tentativas de “golpe de Estado ou conspiração contra o “governo popular”. Apesar disso, algumas vozes de esquerda têm denunciado os crimes de Ortega.
Será que faz diferença caracterizar um governo como sendo de esquerda ou de direita quando ele comete as piores violações aos direitos humanos.? Obviamente que desde a perspectiva das vítimas do terrorismo do Estado não faz diferença. Mas para alguns ditos progressistas faz diferença e é inconcebível para eles que um governo que consideram dos seus, seja denunciado por seus crimes. No caso da Nicarágua há uma certa mistificação da revolução de 1979 e uma visão anti-dialética de alguns intelectuais progressistas que não apreende as contradições do processo histórico para compreender as condições que fizeram surgir uma ditadura de uma revolução.
Por outro lado, também consideram equivocadamente que quem critica a um governo de “esquerda” se situa no “campo da direita”. Então qual é o papel da crítica e da denúncia se não corrigir os equívocos e punir os criminosos que utilizam o poder do Estado?
Por agora há um evidente declínio do movimento social que teve seu ponto mais alto em abril de 2018 e que fez estremecer o governo de Ortega, mas não há perspectivas claras ou indícios da construção de uma nova ordem social e política, porém o movimento social em ascensão deixou aberta as possibilidades de transformação. Isso explica a violência extrema de parte do orteguismo para destruir os protestos com uma estratégia combinada de eliminação física direta, disparando às manifestações populares, encarcerando aos ativistas, sometidos a torturas físicas e psicológicas, intimidando às famílias, expatriando, criando um numeroso grupo de nicaraguenses apátridas, etc., em suma, implantando um regime de terror.
Os movimentos sociais são como as ondas do mar, com momentos de ascenso e refluxos. Agora há um refluxo e não se sabe quando e como virá a próxima onda. O movimento de contrapoder tem sido neutralizado pela repressão.
Por fim, a ditadura de Ortega é uma variedade de “Estado de exceção” onde o regime não precisa promulgar leis para exercer o poder, mas que pode fazê-lo porque controla todos os poderes, como disse Agamben em outro contexto, para destruir as “vidas sem valor” ou “indignas de ser vivida”, sem valor jurídico. O medo e a impunidade que hoje prevalece no País é resultado de uma concepção de poder onde a vida não tem valor jurídico, ninguém está a salvo das forças repressivas. Para Ortega, tudo vale para manter o poder, é uma questão de vida ou morte. Como afirma um analista [8] o custo marginal da repressão é muito baixo se comparado com o custo real de conservar o poder. O poder, que pode ser visto como algo abstrato, se materializa em Ortega e sua família, (a esposa dele é vice-presidente) e um círculo próximo constituído pelo alto mando do exército e da polícia, os tecnocratas, juízes, deputados, os empresários privados, os banqueiros e um grupo, cada vez mais reduzido, de radicais [9] do orteguismo (paramilitares) que nada tem a ver com o sandinismo histórico, mas que defendem ao governo a qualquer custo. Todos esses atores são peças chave para a continuidade do poder de Ortega, qualquer tipo de abertura democrática [10] colocará em perigo esses círculos concêntricos, ainda que pode considerar a possibilidade de realização de eleições em 2026, como uma estratégia que permita o respiro da ditadura, e evitar a constituição de um contrapoder ao mesmo tempo que negociará com o grande capital para superar a crise atual, porém no contexto de um refluxo dos movimentos sociais. Apesar do refluxo e a o terrorismo de Estado, a população não apoia o regime de Ortega e é possível que a crise econômica gere novos movimentos.
[1] SELSER, Gregorio. El pequeño ejército loco. Fondo de Cultura Económica, 2020.
[2] Disponível aqui.
[3] Giupe Tomasi di Lampedusa
[4] Disponível aqui.
[5] Calcula-se que mais de cinco mil Ongs foram proibidas.
[6] Formada por oito municípios, entre eles o chamado Triângulo Mineiro, composto por Rosita, Bonanza e Siuna, a Região tem uma população de 530 mil habitantes (dados de 2022)
[7] Disponível aqui.
[8] Disponível aqui.
[9] idem
[10] Disponível aqui.