13 Dezembro 2023
Quase dois anos após declarar estado de exceção, o presidente de El Salvador Nayib Bukele afasta-se do cargo durante seis meses para se dedicar em tempo pleno à campanha eleitoral, embora a reeleição ainda não seja permitida no seu país. A sua presidência marcou a vida da população salvadorenha, com mais sombras do que luzes no respeito aos direitos humanos.
A entrevista é de Susana Albarrán Méndez, publicada por El Salto, 10-12-2023. A tradução é do Cepat.
A caminho de um novo mandato presidencial, Nayib Bukele dribla os obstáculos para se reeleger, chegando a dar passos que vão contra a Constituição. Ele não controla apenas a Assembleia, mas também o Ministério Público e o Judiciário. No dia 1º de dezembro, afastou-se de suas funções, nomeando, para ficar no seu lugar, uma pessoa escolhida a dedo, e deixando no comando, não sua vice-presidente, mas Claudia Juana Rodríguez, sua secretária particular e presidente do conselho de administração da Direção Nacional de Obras Municipais (DOM), que era administrada pelos 262 prefeitos de El Salvador, mas que o governo Bukele decidiu centralizar sob uma única administração.
Um mandato marcado pelo estado de exceção desde fevereiro de 2022, quando foi rompido o pacto com as gangues, que nada mais fez do que legitimar a mão dura do presidente em todos os aspectos da vida dos salvadorenhos e que viram seus direitos humanos mais básicos violados. Governar sob a política do medo permitiu a Bukele eliminar em grande parte a violência nas ruas ao custo da implosão do Estado de Direito, eliminando assim as garantias legais e sociais para, à margem da Constituição, garantir um segundo mandato, embora em El Salvador a reeleição, pelo menos até agora, não seja permitida.
No dia 7 de junho de 2023, a Assembleia Legislativa de El Salvador, com maioria do partido da situação, aprovou a redução das cadeiras naquela casa de 84 para 60, decisão que se concretizará nas eleições gerais de 2024. Com isso, Nayib Bukele busca eliminar a oposição – já enfraquecida – e conquistar a maioria das cadeiras, se mantiver o atual nível de aceitação entre a população salvadorenha. Algumas de suas decisões mais polêmicas, como as milhares de prisões arbitrárias, a construção da maior prisão do continente americano e seu compromisso com uma economia baseada no Bitcoin, estão começando a passar a fatura.
Para saber como é viver sob o estado de exceção e a insegurança social e econômica El Salto conversou com Miguel Montenegro, diretor da Comissão de Direitos Humanos de El Salvador (CDHES), durante uma visita que faz a várias cidades espanholas, com o apoio dos Comitês Óscar Romero do Estado espanhol.
El Salvador vive, há 20 meses, um estado de exceção. O que esta situação significa para os direitos humanos no país?
Atualmente, é um regime em que os direitos humanos mais fundamentais, como a liberdade ou a integridade física e moral dos detidos, são totalmente violados. Desde março de 2022 há mais de 76.000 pessoas detidas e 7.000 que foram libertadas porque foi provado que são inocentes. No entanto, presumimos que há muito mais pessoas inocentes. Também é possível garantir que quase a maioria da população detida sofreu maus-tratos, tortura e até morte, além da falta de cuidados médicos. Tudo isto aconteceu em decorrência do estado de exceção.
A isto devemos acrescentar a atitude do governo e das entidades que têm o dever de defender os direitos humanos. Estamos falando da Procuradoria-Geral da Defesa dos Direitos Humanos, que, em vez de documentar e denunciar as graves violações dos direitos humanos e, claro, fazer recomendações ao governo central, está simplesmente abonando este tipo de violações. Digamos que está validando a política que Nayib Bukele está usando nesta situação. O fato é que a segurança dos cidadãos salvadorenhos deve ser garantida pelo Estado.
No entanto, os métodos utilizados são incorretos, não são adequados quando as garantias constitucionais são suspensas e se viola o Direito e os direitos humanos. Acredito que foram mais longe com a morte de mais de 150 pessoas sem dar uma resposta concreta aos familiares sobre as razões pelas quais morreram e sem reconhecer compensações financeiras pelas torturas ou maus-tratos que as pessoas sofreram durante as detenções ou dentro das prisões.
Apesar das recomendações feitas pelas Nações Unidas, pela Comissão Interamericana e por organizações como a Anistia Internacional ou a Federação Internacional dos Direitos Humanos e a nossa, o governo fez-se de surdo. O Comitê dos Direitos contra a Tortura pediu ao Estado salvadorenho que ratificasse o Protocolo Facultativo contra a Tortura, porque é um instrumento tão valioso que permitiria uma missão, tanto das Nações Unidas como das organizações da sociedade civil e da Procuradoria-Geral da República, fizesse visitas às prisões, verificando assim a situação dos detidos.
Mas o governo não quer permitir isso, um instrumento que os países democráticos usam para investigar o que acontece dentro das prisões. Devemos acrescentar também que diante das acusações que as organizações locais têm feito, o governo nos acusa de sermos a favor das gangues e dos criminosos. É um discurso de ódio que leva a população a condenar as denúncias ou as sugestões que temos feito em resposta a esta situação.
O governo Bukele significou também o desmantelamento de outros instrumentos do Estado, como a Comissão Internacional contra a Impunidade e a Procuradoria-Geral da República, que não foram extintas, mas que utiliza como sua validadora para justificar sua mão dura. Esse desmonte do Estado também é preocupante, não?
Claro, a preocupação existe entre aqueles que defendem os direitos humanos, existe dentro de um grande setor da população e, evidentemente, existe dentro da comunidade internacional. O governo de Nayib Bukele, a partir do momento em que assumiu o poder como presidente de El Salvador em 2019, começou a marcar sua posição em relação à democracia em nosso país. Uma das atitudes de Bukele foi começar a dar ordens à Assembleia Legislativa para destituir o Procurador-Geral da República na Câmara Constitucional.
O partido de Bukele, Nuevas Ideas, obtém maioria na Assembleia Legislativa, então ele opta pela destituição. Estamos falando de um golpe de Estado na Câmara Constitucional. Começa a fazer decretos que ameaçam a democracia, entre os quais está um que obriga todos os juízes com mais de 60 anos a renunciarem aos seus cargos de juristas e juízes, e a dar lugar a uma nova geração sem experiência e obediente aos seus interesses. Uma Procuradoria nomeada e questionada – em anos anteriores – nas mãos da procuradora Raquel Caballero que já foi apontada pelas suas atitudes de nepotismo e por um procurador que vem e obedece aos seus interesses. É preciso dizer que o governo cooptou totalmente as instituições do Estado e as colocou a serviço da sua política individual.
Nayib Bukele ordena e manda, e ele disse desde o início: eu vou governar pelo telefone, mandando o que têm que ser feito e pronto. E o fez através do Twitter. A partir desta situação nos vemos enfraquecidos. A democracia está totalmente enfraquecida, para não dizer totalmente acabada, porque ainda temos esperança de que possa ser resgatada. Digo esperança porque não devemos perdê-la em nenhum momento. Durante 12 anos de guerra, que foi uma situação muito difícil, tivemos esperança com os Acordos de Paz, que, aliás, Bukele decretou não celebrar, dizendo que todo o processo de negociação foi uma farsa.
É bastante difícil para nós conseguirmos aceitar esta situação, vivendo o que estamos vivendo porque o regime de exceção continua. Quantas pessoas vão continuar a prender? Porque o ministro da Segurança Pública disse que vão continuar a prender o máximo que puderem, mas é também um instrumento de propaganda para continuarem a ter o apoio popular agora e frente às próximas eleições.
Mas onde está o sistema de Justiça? Onde está a população ou os familiares que perderam os seus entes queridos? Onde estão os casos dos desaparecidos do passado e o caso dos desaparecidos ou mortos de hoje, que são da responsabilidade do Estado bem como de investigar e apurar responsabilidades, embora haja também uma parte de responsabilidade que recai sobre as autoridades locais? A situação é grave, mas estas coisas devem continuar a ser monitoradas e apontadas. É o papel que nós, como organização de direitos humanos, temos diante destas realidades do nosso país.
Várias organizações de direitos humanos, e vocês também, apresentaram a Lei de Reparação à Assembleia Legislativa na tentativa de reconhecer que o conflito foi uma realidade e que teve as suas consequências e as suas vítimas. Houve avanços?
Quando os Acordos de Paz foram alcançados, nomeou-se a Comissão da Verdade, que teve seis meses para realizar uma investigação e produzir resultados: grande parte das violações cometidas durante a guerra, entre 80-85%, são de responsabilidade do Estado e o outro percentual da FMLN. Entre as suas recomendações, pede especificamente justiça para a vítima, o que não ocorre com a aprovação da Lei da Anistia, três dias após a divulgação do relatório da Comissão da Verdade.
Aí se fecham essas possibilidades de fazer justiça, de acertar responsabilidades, até que em 2016 a nova Câmara Constitucional decreta que a Lei da Anistia é inconstitucional, abrindo esperança para fazer justiça. A mesma Câmara pede à Assembleia Legislativa que faça uma lei de justiça transicional tendo em conta as vítimas das violações dos direitos humanos e as organizações de direitos humanos, algo que a Assembleia Legislativa da época não assumiu. Pelo contrário, estão começando os trabalhos sobre uma lei de justiça transicional adaptada com a ideia de garantir a impunidade e não deter pessoas responsáveis por graves violações dos direitos humanos.
Mesmo assim, a Assembleia aprova a lei, mas Nayib Bukele veta-a porque não concorda com ela. Não é que seja a favor das vítimas, mas porque há muitos aspectos que considera que não lhe convêm e pede que seja feita novamente uma lei de justiça transicional. Apresentamos a nossa lei sob a direção do vice-presidente Félix Ulloa, na qual muitos dos elementos contidos são produto das organizações de direitos humanos e das vítimas que representamos. Estamos falando de coisas de praticamente três anos atrás e nada prosperou. Isso ficou parado, a lei não foi aprovada e não somos ouvidos, não nos dão espaço.
Quando quisemos fazer pedidos à Assembleia Legislativa, dirigimo-nos basicamente ao Nuevas Ideas, partido de Nayib Bukele, mas eles nos ignoram e não nos ouvem. Entretanto, nos acusam de não irmos ao seu encontro, mas quando vamos não nos atendem. Então a questão é: o que estamos fazendo? As vítimas não importam para o presidente, apesar das ofertas que fez no começo. Neste momento não quer abrir os arquivos das Forças Armadas do processo do massacre de El Mozote nem abrir outros arquivos; pelo contrário, faz acusações às organizações de direitos humanos e de familiares. E, no entanto, segue-se protegendo os perpetradores.
Em todo este contexto, em que condições vocês trabalham com este estado de exceção?
O estado de exceção é um aspecto que aprofundou mais ainda a crise, porém antes da sua aprovação, em março de 2022, as organizações de direitos humanos, os meios de comunicação, as organizações sociais, os sindicatos que questionavam a atitude de Bukele já estavam sendo criminalizadas. Eles lançaram uma campanha de divulgação nas redes sociais onde nos criminalizam ou dizem que somos a favor da atuação das gangues. Diante disso, grande parte da população, especialmente aqueles que estão estreitamente alinhados, incluindo a mídia e as redes sociais, têm desempenhado o papel de desinformação e de ataque às organizações.
Devido a este controle, alguns meios de comunicação foram obrigados a abandonar o país, que é o caso do jornal El Faro, por exemplo, e claro, a liberdade de expressão não está garantida. Há medo e ansiedade por parte de diversas organizações de direitos humanos e de pessoas que se sentem perseguidas ou que a qualquer momento possam ser alvo de um ataque. É uma situação que não está descartada em nenhum momento e isso pode ser validado com as eleições de 2024, quando Nayib Bukele poderá ter mais força para tomar ações muito mais repressivas contra as organizações.
Eu, sinceramente, gostaria de estar errado, mas do jeito que as coisas estão duvido, porque ainda existem leis que estão esperando para garantir mais poder ao presidente. Não há, digamos, relatórios de gastos, não há transparência de todo o trabalho do governo, então isso pode acontecer.
Quero destacar que Nayib sofreu, até certo ponto, um nível de aprovação menor e acho que deve estar preocupado. Um dos fatores que influenciaram esta queda foi o fracasso na aprovação do Bitcoin, um investimento milionário para o qual não foi fornecido nenhum relatório de despesas, e isso levou a população a começar a reagir.
O regime de exceção é outro elemento que fez diminuir o nível de aprovação, embora ainda a mantenha, mas não os seus deputados, que tiveram uma diminuição muito significativa. Isto o preocupa, porque quem faz as leis, quem as aprova está na Assembleia Legislativa e é lá que procuram uma forma de fazer desaparecer a oposição, mas neste momento não estão obtendo os números. Isso já o deixa um pouco nervoso porque pode chegar o momento em que os seus deputados não se reelejam. Sem dúvida, a próxima campanha eleitoral será liderada pelo nome de Nayib Bukele, e ele terá muita influência para garantir que Nuevas Ideas obtenha os deputados necessários. Acredito que é isso que está acontecendo no momento.
Na situação atual, El Salvador está expulsando os seus cidadãos, razão pela qual vive um momento importante de migração, para os Estados Unidos, quem têm familiares por lá, mas também para a Espanha. O que a Comissão tem a dizer sobre esta questão?
A questão da migração dos salvadorenhos é uma realidade que nos preocupa, porque se está chegando a dois milhões de compatriotas que estão fora do país. Só os Estados Unidos têm cerca de 1.500.000 de salvadorenhos. Uma questão muito difícil por um aspecto: a segurança econômica, porque muitas famílias têm de vender as suas propriedades, contrair empréstimos para poder pagar alguém que as leve para os Estados Unidos ou pagar uma passagem de avião. Isso, além do aspecto econômico, é um risco, porque a maioria tem de atravessar toda a região se for para os Estados Unidos via México. Há muitos salvadorenhos desaparecidos e seus familiares se organizaram para buscar apoio do Estado.
A migração é uma situação que não desacelera. Por mais que os Estados Unidos tentem encontrar projetos e programas para impedir a entrada da população do chamado Triângulo Norte da América Central (Guatemala, Honduras e El Salvador). O problema tem sido a corrupção desses governos, que expulsa a população. As remessas enviadas às famílias em El Salvador representam 25% do PIB do nosso país.
Agora, mais do que nunca, as pessoas tentam sair do país devido à situação econômica e à insegurança. Antes era por causa das gangues e agora devido à insegurança do governo e ao estado de exceção. Muitas famílias tiveram de retirar os seus filhos, temendo que pudessem ser presos e levados para a prisão como suspeitos. A migração em El Salvador, na América Central e na América Latina é, infelizmente, uma realidade, e não apenas na América Latina, são situações em que a população arrisca a sua segurança, a sua vida e perde tudo.
Mesmo nesse contexto entendemos que a sociedade civil não está parada, porque pensa em como sair dessa situação, em como se defender. Você poderia nos dar um retrato esperançoso em termos do que a sociedade civil salvadorenha está fazendo?
Na situação atual continuamos a ter esperança, mas a esperança também se constrói e é isso que temos feito. Acredito que os programas e processos de formação são vitais para dar esperança à população. O povo salvadorenho continua trabalhando, mesmo que com dificuldades, mas esperando que em algum momento tenha uma resposta para a crise econômica, para a situação social e política, porque é o que nos mantém de pé neste momento.
Estes são tempos novos, mas temos que continuar acreditando em alguma coisa, e essa coisa é que em algum momento as coisas podem melhorar. Devemos combater a tirania formando as pessoas contra as atitudes antidemocráticas que sofremos neste momento e ver como continuar trabalhando para que as novas gerações possam ter um futuro melhor. É isso que nos faz continuar.
E o que esperam da comunidade internacional?
Para nós, a comunidade internacional – governos, sociedade civil ou organizações – significa aquele apoio solidário que temos há muito tempo. Aqui [na Espanha] temos o caso do Comitê Óscar Romero, que sempre demonstrou solidariedade com os povos da América Latina e, especificamente com El Salvador. Isto nos permite, por exemplo, fazer estas visitas para expressar as nossas preocupações e procurar solidariedade. É muito importante não perder esse apoio.
Quero salientar que quando se discutiu em nosso país a lei sobre “agentes estrangeiros” que o governo Bukele queria implementar, houve uma oposição da comunidade internacional, especialmente dos governos que têm cooperado. Isto significou que a lei que iria acabar completamente com a cooperação internacional com organizações sociais e de direitos humanos não foi aprovada. Portanto, é vital comunicar aqui o que está acontecendo em El Salvador.
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El Salvador. “As pessoas estão tentando sair do país por causa da situação econômica e da insegurança”. Entrevista com Miguel Montenegro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU