02 Setembro 2024
"As crianças que entram em um hospital pela primeira vez não estão assustadas, pois não conhecem a dor que levam para casa quando saírem. Chamam isso de 'a experiência da dor'. As crianças em Gaza estão todas com medo. Conhecem a dor desde o nascimento. E se repete. Não têm voz para chorar. Seus olhos choram. Aquelas que procuram ao redor pela mãe e por uma razão para ela não estar ali", escreve Federica Iezzi, cirurgiã pediátrica dos Médicos Sem Fronteiras em Gaza, em artigo publicado por Il manifesto, 31-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Eu só quero dormir por uma hora sem ficar aterrorizado”. Muitos nos dizem isso quando chegam aos hospitais ou clínicas onde os Médicos Sem Fronteiras atuam. Esses muitos que vivem entre os escombros de suas casas. Arrastados de norte a sul, depois novamente de sul a norte, de um campo de refugiados a outro.
Nenhum lugar é seguro depois dos implacáveis ataques seletivos na zona humanitária. As temperaturas chegam a 40 graus e não há água para beber. As escolas de Unrwa se tornam novos vilarejos. Jogos para as crianças, pequenas cozinhas improvisadas, adultos fazendo fila com alguns shekels na mão para carregar telefones em um pequeno ponto de fornecimento de energia elétrica. O medo é o mesmo com o barulho do bombardeio ou com o silêncio quando o zumbido perene dos drones se atenua. O som dos gritos, cinzas e sangue é a única coisa que se pode ouvir, ver e cheirar.
Depois de cada bombardeio, se corre entre os feridos, os mortos e as partes do corpo agora de ninguém, esperando sempre não encontrar a filha, a mãe, o pai. Sempre esperando que ninguém de sua família tenha sido despedaçado ou queimado vivo. Os restos dos corpos acabam em sacos plásticos. Uma visão diária de horror. Depois de cada bombardeio, os membros de cada família se separam, uma parte vai para o pronto-socorro e outra para o necrotério para procurar aqueles que desapareceram. Um calvário desumano.
Depois de cada bombardeio, no hospital, muitos corpos permanecem empilhados em frente ao necrotério, esperando que as famílias venham identificá-los. Muitos estão desmembrados. Irreconhecíveis. A poeira não some e o cheiro acre permanece. Anotações diárias são feitas sobre corpos mutilados, pais chorando, gritos de raiva à cabeceira do leito de crianças moribundas e do silêncio do coma.
Médicos e enfermeiros tratam vítimas de trauma e queimaduras no chão dos saguões ou nos corredores, sob luzes de neon que piscam. Não há equipamentos médicos suficientes para o número assustador de pessoas feridas que chegam ao hospital, nem esterilizadores e gaze para enfaixar os ferimentos. Há apenas paracetamol para a dor. Os ferimentos causados por bombas são limpos com água porque não há mais nada. Há cortes de energia de até 12 horas por dia. Só há água durante duas horas por dia.
“Houve uma explosão. Olhei para mim mesmo e descobri que tinha estilhaços no peito, nas costas e nos pés. E estava sangrando.” É Abdel, tem oito anos de idade. Não é um número. É uma criança.
Quem trabalha com crianças em hospitais sabe disso. As crianças que entram em um hospital pela primeira vez não estão assustadas, pois não conhecem a dor que levam para casa quando saírem. Chamam isso de “a experiência da dor”. As crianças em Gaza estão todas com medo. Conhecem a dor desde o nascimento. E se repete. Não têm voz para chorar. Seus olhos choram. Aquelas que procuram ao redor pela mãe e por uma razão para ela não estar ali. São amputadas em hospitais superlotados, onde dezenas de milhares de palestinos deslocados buscam refúgio, e em salas operatórias escuras, sem eletricidade, com analgésicos, antibióticos e suprimentos esterilizados dosados com conta-gotas. E também não existe um depois. Não há próteses. “Recuperação total” em Gaza significa uma vida de incapacidade grave e permanente. “Todos os dias não consigo dormir por causa do barulho dos bombardeios”, nos repetem todas as crianças, ”e eu quero dormir porque minha perna está doendo”. Mas a perna não existe mais.
O silêncio acompanha muitas passagens. Acompanha os olhares. Os gritos sufocados. O medo de morrer. O de viver. Acompanha as brincadeiras de crianças que não existem mais. Mesmo que o som do bombardeio traga todos de volta ao aqui e agora.
Essa máquina de guerra está destruindo tudo. Homens, prédios, árvores, pedras, terras agrícolas. E algo ainda mais importante: as memórias e o passado. Porque demolir uma casa não significa simplesmente derrubar suas paredes, significa apagar a memória de todas as fases de uma vida inteira: infância, estudos, diplomas, casamentos. Nada mais fica. Nada mais de fotos de quando se era criança, fotos da turma na escola, fotos dos pais quando eram jovens. Nada mais chaves. Tudo desapareceu.
Os laços das famílias em tempos de guerra se tornam como uma teia de aranha, existem, mas são frágeis. As lembranças se perdem, os nomes das ruas se perdem.
Gaza está afundado na miséria e na destruição total. Casas desmembradas. Olhar através desses muros desmoronadas, que não protegem mais nada, é como ser um sinistro espectador da vida alheia. Mesas, cadeiras, camas, roupas, brinquedos. Costumava haver vidas ali dentro, que acordavam de manhã para trabalhar, que iam para a escola, que jogavam futebol, que pescavam.
E agora sabe-se lá onde estão.
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A guerra das crianças em Gaza. Artigo de Federica Iezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU