18 Mai 2024
Para o fim basta que as coisas continuem como estão. Quanto à salvação, ela “vem dos judeus”. Mas como isso é compatível com o genocídio em Gaza?
O artigo é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em resposta à pergunta tema da conferência "Missione Oggi" realizada na Brescia, 11-05-2024. A tradução é de Luísa Rabolini.
Acompanhando a linguagem sempre vívida do Papa Francisco, não estamos numa época de mudança, mas numa mudança de época. Segundo o Padre Balducci, com a Guerra do Golfo em 1991, havia acabado “a era moderna que começou há quinhentos anos com o genocídio dos índios no distante Ocidente”; ou seja, havia acabado aquela época marcada pela hegemonia deste Ocidente. Portanto, não estamos falando de acontecimentos soltos, como a guerra na Ucrânia ou o genocídio em Gaza, mas de uma nova condição do mundo que afeta todo o curso histórico: isso significa, de fato, a transição de uma época para outra. Se isso for verdade, a leitura do que está acontecendo não pode ser feita apenas com as categorias da política e das ciências, mas deve envolver também uma teologia da história. Ou seja, deve dar conta daquela tempestade que sopra do Paraíso e, como diz Walter Benjamin, se enreda nas asas do Anjo da história, derrubando a seus pés ruínas sobre ruínas e empurrando-o irresistivelmente para o futuro.
A pergunta é para onde o mundo está indo nesta era. E a resposta depende naturalmente do caminho que se toma hoje.
De fato, o mundo chegou a uma encruzilhada: ou vai para a destruição e para o fim, ou vai para a salvação e para o futuro. Não sei qual dos dois destinos a história nos reserva. Não sou profeta nem filho de profeta, diria Amós, que era boiadeiro e cultivava sicômoros (Am. 7,14). Mas sou jornalista, filho de jornalistas, e sempre pensei que a função do jornalista é ver as coisas, compreender as causas, um minuto antes dos outros a quem se tem que as contar; e a partir do que descobriu e do que aconteceu, tentar olhar para o amanhã.
A hipótese do fim. Agora é muito fácil imaginar como poderia ocorrer a primeira das duas possibilidades, aquela do fim. Na verdade, basta que o que acontece hoje continue, que o curso das coisas presentes não mude. Não é como durante a Guerra Fria, quando os cientistas gradualmente moviam os ponteiros do relógio para a meia-noite, para significar a aproximação do fim, e ele nunca chegou. Na verdade, o fim era imaginado como decorrente de uma única causa, a eventual loucura de uma guerra atômica, mas ninguém a queria: como diziam os líderes, raciocinando segundo a lógica militar, uma guerra assim não poderia ser vencida e, portanto, não devia ser combatida. Mas hoje esse tabu caiu, fala-se do conflito nuclear como uma possibilidade comum, mas não se dá nenhuma importância; e ao abrigo dessa indiferença, são travadas todas as guerras convencionais do caso, depois que a guerra foi recuperada como livre para o exercício com a Guerra do Golfo em 1991 e a sua imponente exaltação mediática. E as próprias guerras convencionais não são como aquelas do passado, que eram consideradas tão óbvias que eram rodeadas de respeitosas cautelas, contidas nas Convenções de Genebra, no chamado direito humanitário de guerra, e em costumes dados como certos, de forma que os crimes de guerra eram considerados uma exceção e devidamente sancionados. Hoje a guerra é em si um crime, saiu do direito com a Carta das Nações Unidas, e de acordo com a Convenção sobre o Genocídio toda guerra é um genocídio, porque visa "destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico , racial ou religioso" como tal, seja um povo ou mesmo apenas o seu exército; e pior ainda, a execução desse crime internacional, como se viu no genocídio dos palestinos em Gaza, é separada dos seus responsáveis e autores, e confiada à Inteligência Artificial, que com os seus algoritmos decide os “objetivos”, ou seja, quantos devem ser mortos, bem como os meios da ofensiva, sejam mísseis, drones ou a fome, e faz isso por atacado, não um por um. Tudo isso pode realmente nos levar ao fim.
A guerra como último juiz dos povos. E não há apenas a guerra travada nesse ou naquele cenário, seja na Europa, no Médio Oriente ou na África, há a guerra concebida como modalidade e juiz último das relações mundiais; tal é a cultura que vigora no Ocidente pelo menos desde Heráclito (“a guerra como pai e rei de todas as coisas, revela uns como deuses, outros como homens, torna uns escravos, outros livres”); e é com base na presunção de que a guerra é um fato da natureza que o atual governo estadunidense vê "o futuro da ordem internacional" como fruto de uma "competição estratégica" pela dominação do mundo, que os Estados Unidos devem vencer armando-se como nenhum outro Estado na Terra (dez vezes mais que a Rússia), tirando em primeiro lugar a Rússia do jogo, a ser reduzida, segundo Biden, à condição de “pária”, e chegando ao desafio final com a China.
E para propiciar o fim há também o fato que a obra da guerra desvia toda política e todo recurso da providência para a salvaguarda do planeta, do controle climático, da contenção das águas, do avanço dos desertos e da destruição das espécies.
E o homo sapiens não é sábio o suficiente para salvaguardar em primeiro lugar a si mesmo.
Essa é a primeira hipótese, a hipótese mais iminente, aquela do fim. No entanto, temos a fé para nos impedir de acreditar nela. Esperamos que o próprio Deus venha nos salvar.
A hipótese da salvação. A outra hipótese é aquela da salvação. Mas como conceber a salvação como historicamente possível? É um discurso difícil. A questão é: por que a salvação não chegou, por que demora, por que não conseguimos vê-la? Para nós, cristãos, trata-se de uma promessa feita ao mundo da forma mais formal. Todo o Evangelho diz isso. E Jesus a previu, não apenas prometeu, no poço de Jacó, falando com a mulher samaritana. O Evangelho de João conta-o, e deveria dizer algo não só a nós, mas a todos, se for verdade, como todos dizem, mesmo os não crentes, que a nossa é uma identidade judaico-cristã. O que Jesus disse à mulher samaritana? Ele disse: “A salvação vem dos judeus”: e também disse quando e como essa salvação está destinada a vir: naquela “hora em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai...”, mas “a hora vem – e agora é – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade: de fato, porque o Pai procura a atais que assim o adorem" (Jo 4, 5-42). Trata-se de uma revelação que tem duas singularidades, a de chamar uma mulher como testemunha, e ainda por cima estrangeira, numa época em que as mulheres não eram consideradas críveis, e a de dar como presente um acontecimento futuro, como faz a Escritura para a qual cada tempo é "o tempo de agora" (2 Cor 7-9; 6, 1-2); assim como é o tempo da história, que nos é sempre contemporânea, mesmo aquela passada, porque em cada momento da história se concentra toda a história.
No entanto, trata-se de uma palavra sobre a salvação que vem dos judeus, que justamente hoje parece difícil de acreditar, quando dos judeus de Israel vem tudo menos a salvação, mas sim uma guerra impiedosa que visa explicitamente a aniquilação de um povo inteiro, e que, nas palavras do primeiro-ministro em exercício em Tel Aviv, não deve terminar “até que o trabalho esteja concluído”; objetivo aterrador porque pressupõe que o que alguns fazem hoje a um povo sob o olhar e a inércia da comunidade internacional, outros poderão fazer amanhã a qualquer outro povo, o que significa precisamente não a salvação e o futuro, mas a destruição e o fim.
E o “trabalho” é o pior que pode acontecer: em Gaza, onde se registam dezenas de milhares de mortos, em grande parte crianças, e mais de 75 mil feridos; numa “faixa de Gaza” que nem sequer se pode dizer que tenha sido transformada num deserto, porque um deserto não está coberto de escombros, espargido de sangue e repleto de multidões famintas e encurraladas; e na Cisjordânia, onde a mesma violência domina, mesmo que ali “não tenha o Hamas” – como escreveu Moni Ovadia – enquanto era quebrada em pedaços por 750.000 colonos “armados até os dentes, que cospem nas crianças, saqueiam os vilarejos palestinos, queimam as oliveiras”; e no tormento está o próprio Israel, onde a censura foi instituída, a apagar as TVs estrangeiras, começando pela Al Jazeera, e onde foi ignorado o protesto de uma imponente minoria do povo, que se manifestou contra as reformas na justiça durante 52 sábados, e foram ignoradas as cem mil pessoas acampadas em frente ao Knesset para pedir o fim do conflito e uma verdadeira negociação para a libertação dos reféns, e foi silenciada aquela parte da sociedade israelense que busca um destino diferente e outra relação com os Palestinos, como fazem os Judeus de B'Tselem, os refusnik, Breaking the Silence, o Comitê Israelense contra as demolições das casas palestinas, o movimento pelo diálogo e pela paz.
Por que tudo isso acontece? Netanyahu não é um monstro, não se pode dizer que é o único responsável por essa espiral de violência, nem que seja o intrépido patriota que disse não até a Biden. Como Gideon Levy escreveu no Haaretz, o principal jornal de Telavive, “atribuir toda a culpa de todas as desgraças de Israel a Netanyahu significa dizer que se não fosse por ele, tudo teria sido diferente. Isso é o que fazem desde seu primeiro dia aqueles que dizem que se não fosse por Netanyahu, Gaza não teria sido uma prisão, os assentamentos não teriam feito Israel apodrecer e o IDF teria sido um exército moral”; consequentemente, com a queda de Netanyahu, que continua a guerra para evitar ser levado a julgamento, tudo estaria resolvido. “Isso não é verdade, obviamente… Parece que Netanyahu tenha agido como fizeram os seus antecessores e como os seus sucessores farão. Todos os primeiros-ministros apoiaram a continuação da ocupação e do cerco a Gaza. Nenhum deles pensou nem por um momento em permitir um verdadeiro Estado palestino, com plenos poderes, um Estado como qualquer outro. Não pensaram em libertar a Faixa de Gaza do cerco sufocante. Se não fosse por todos eles, talvez o Hamas não existisse." E Moni Ovadia disse: “Não acho que Netanyahu seja um tumor crescendo em um corpo saudável. Não, não é isso. Netanyahu é a verdadeira face do sionismo. Não é uma deriva. Digo isso porque a Nakba (a catástrofe palestina) foi levada adiante por Ben Gurion, não por Netanyahu. E a Nakba foi o primeiro ato de limpeza étnica, documentado por estimados historiadores israelenses como Ilan Pappé..”
Interrogar a história judaica e as fontes bíblicas. Portanto, se a causa de tudo não pode ser atribuída ao primeiro-ministro israelense, é preciso compreender de outra forma as motivações e a origem do que está acontecendo. E isso não pode ser feito com base em critérios estranhos ou preconceitos, mas interrogando a história judaica e ouvindo o que os próprios Judeus dizem sobre si mesmos e sobre o processo que levou ao estabelecimento do Estado de Israel. E aqui encontramos naturalmente a Bíblia e a leitura que dela se faz; com a advertência, porém, de que existe uma leitura fundamentalista e literal das Escrituras, como disse a Pontifícia Comissão Bíblica, que é “um suicídio do pensamento”.
Uma interpretação literal das Escrituras é, por exemplo, a que seguiram os discípulos de Emaús, no primeiro dia depois do sábado, antes de Jesus, unindo-se a eles, explicar o verdadeiro sentido das promessas messiânicas. Discutindo as notícias sobre o que havia acontecido naqueles dias em Jerusalém, estavam tristes porque tinham esperado que fosse ele, Jesus, o Messias, quem restauraria o reino de Israel, e em vez disso ele acabara condenado e crucificado. E Jesus certamente lhes terá explicado que não se tratava de forma alguma de restaurar um Reino político, como era o antigo Reino de Israel. Jesus terá recordado aos seus discípulos a parábola dos lavradores maus que querem apoderar-se da vinha do Senhor (que não é apenas a terra de Israel, mas a terra de todos) como se fosse só deles, e para conseguir matam o Filho, o único herdeiro, exercendo assim o seu ciúme contra todos os outros povos e apresentando a reivindicação de uma posse exclusiva.
É com essa advertência que, para compreender o que acontece hoje com Israel, é preciso buscar quais são as fontes bíblicas nas quais se baseia a atual figura de Israel como “Estado-Nação do povo judeu”, como é definido na “Lei Fundamental” de 2018. Porque é a essa referência literal às Escrituras que se deve, passados muitos séculos desde aquele encontro de Emaús, a fundação do Estado de Israel, e a sua interpretação fundamentalista, mais ou menos declarada, que inspirou as políticas dos seus governos durante setenta e cinco anos, reivindicou a soberania judaica exclusiva sobre toda a terra, desde o mar até ao Jordão e, apesar da boa vontade de muitos dos protagonistas de ambos os lados, impediu a convivência entre israelenses e palestinos e ainda mais a solução de dois povos em dois Estados, até à tragédia descontrolada de Gaza. E se for esse o caso, pode-se dizer que o recurso ao uso literal das Escrituras também pode ser o suicídio de um Estado.
Por essa razão, uma importante tradição do judaísmo rabínico tem defendido que uma realização política das promessas messiânicas não deveria ser tentada. O messianismo – "essa ideia que o povo judeu doou ao mundo e pela qual teve que pagar o preço", como escreveu Gershom Scholem, um estudioso do messianismo sabatiano – pressupõe uma realização histórica, mas por obra de Deus, não por obra do homem: não se devia “pressionar o Messias”, diziam os rabinos, por isso a redenção, a “Geulah”, não podia traduzir-se na instituição de um Estado, como é concebido hoje. A explicação sobre o nascimento do Estado de Israel que os estudantes estrangeiros de hebraico ouviram do diretor sionista da escola em Jerusalém: “O Messias não veio, então nós viemos”, é inadmissível. E, de fato, uma grande parte dos líderes religiosos e dos sábios de Israel eram contra uma imposição política do messianismo e a criação de um Estado; temia-se uma catástrofe e invocavam-se os "três juramentos" que segundo o Midrash e o Talmud Deus teria feito o povo judeu fazer, entre os quais aquele de "não subir no muro" do exílio e "não forçar o fim". Portanto, Gershom Scholem definiu a vida judaica como uma vida vivida no adiamento, e três Mestres do Talmud disseram: deixe o Messias vir, mas eu não quero vê-lo [1]. Foi o Holocausto que colocou em crise essa ideia do adiamento: podemos lembrar Menachem Begin, o “terrorista” que explodiu a embaixada inglesa em Roma, na Via XX Settembre, e mais tarde se tornou primeiro-ministro de Israel, que disse: “ Nunca mais os Judeus fracos e sem poder."
É por meio desse processo que se chegou à criação do Estado de Israel e da sua forma de ser hoje: não um Estado comunidade, o Estado do povo de Deus, mas um Estado como “homem artificial”, como “Deus mortal” construído por Hobbes, o estado errado da modernidade europeia, cuja soberania consiste no direito de guerra, “ius ad bellum”, e não deveria ter sido assim. É claro que isso não significa que não deva existir um Estado de Israel, muito menos que deva ser abolido, mas deveria ser pensado de forma diferente.
O drama fundador. Portanto, é novamente às Escrituras bíblicas que se deve voltar, e à forma como hoje, como dizia o Papa João, podem ser compreendidas melhor. E antes de mais nada se deve voltar para aquela página fundadora da história do povo eleito, que é a aliança estabelecida entre Deus e Moisés no deserto do Sinai. Porque há aí um drama que marcaria toda a história judaica, um drama ainda maior do que mais tarde seria o Holocausto: há o drama de um Deus que ameaça o seu povo de passar para outra aliança. O grande estudioso judeu Jacob Taubes recorda-o, nas suas conversas do pós-guerra com o jurista alemão Carl Schmitt, comentando "A teologia política de São Paulo", que mais tarde seria tema de um seminário que ele proferiria em Heidelberg de 23 a 27 de fevereiro de 1987 [2]. O drama de que se fala é aquele contado no livro do Êxodo, segundo o qual, ao sair do Egito, Moisés teve um confronto com Deus. Era um Deus zeloso, como Ele mesmo se definiu, aliás, até disse que seu nome era "zeloso". E quando esse povo traiu o seu Deus, construindo o bezerro de ouro e adorando-o como um ídolo, Deus jurou puni-lo escolhendo outro povo a confiar à orientação de Moisés. Mas aqui, diz Taubes, há o drama. Porque o que está em jogo é a fundação e legitimação de um novo povo de Deus, que não é mais aquele que descende de Abraão segundo a carne, não é mais aquele dos Hebreus. Ou seja, retorna o drama que foi a experiência fundamental da Torá, o drama da ameaçada passagem da eleição de Deus dos Hebreus para outros povos: o povo escolhido que não é mais o povo escolhido, enquanto Deus teria feito de Moisés uma outra nação “maior e mais poderosa”. É o dia terrível em que o povo correu o risco de perder o seu maior bem, a predileção e a companhia de Deus; mas Moisés resistiu a essa decisão, recusou a nova investidura e "implorou ao Senhor" que desistisse de sua ira, que não fizesse o mal que havia ameaçado fazer (Ex. 32-34; Num. 14-15). Segundo Taubes, é isso que é revivido nos ritos que os Judeus realizam todos os anos no Dia da Expiação, Jom Kipur, em memória desses acontecimentos, “uma celebração que é atravessada por aquele arrepio”.
Implorado por Moisés, que para punir os rebeldes mandou massacrar três mil pessoas de seu próprio acampamento, Deus desistiu de seu propósito, confirmou a promessa da terra e se empenhou em derrotar os inimigos que impediriam a posse, sejam eles os Amorreus, os Cananeus ou os Jebuseus, mas impôs condições rigorosas para proteger o seu ciúme: o povo de Israel não se prostraria diante de outro deus, se absteria de fazer aliança com os moradores da terra na qual estava prestes a entrar (Ex. 34.14), na verdade deveria destruir os seus altares, derrubar as suas estelas e cortar seus postes sagrados, não deveria tomar suas filhas como esposas de seus filhos, para evitar que eles também se prostituíssem aos seus deuses, não deveria fazer ídolos de metal fundido. E em positivo deveria observar a Festa dos Pães Ázimos, resgatar os primogênitos, observar o sábado (Ex. 32, 11) e muitas outras coisas.
É em decorrência disso que quando Moisés morreu, a ordem passou para um novo “profeta”, Josué, e começou a epopeia das suas conquistas, pela qual Josué erradicou um povo após outro, decretou extermínios e interditos, valeu-se também de uma prostituta como Raabe, que traiu seu povo (Josué. 3,10; 6,21), glorificou-se, segundo o livro que narra os seus feitos, de comportamentos hediondos, puniu com a morte os recalcitrantes do seu próprio povo, e depois distribuiu a terra assim conquistada, a terra que havia sido prometida, entre as doze tribos de Israel.
Josué, um modelo confiável? Mas será que as coisas realmente aconteceram assim? Será essa imagem do Deus zeloso compatível com o que sabemos hoje sobre Deus? É possível que a conquista tenha sido feita de extermínio em extermínio, em Jericó, em Ai, como nas demais cidades cananeias? E se Israel tomou à letra aquelas palavras da Escritura e assumiu aquele “ciúme” de Deus, mostrando-se zeloso da sua eleição, zeloso da terra a não partilhar com mais ninguém, zeloso em relação dos povos cuja existência era percebida como alternativa àquela de Israel, zeloso de Jerusalém, quista como apenas sua e para sempre, não será que Israel entendeu mal o zelo de Deus? Deus tinha ciúme dos falsos deuses, dos ídolos, não tinha ciúme dos outros povos, o zelo de Deus diz “não façam outros altares”, não diz “coloquem-se fora da comunidade dos povos”. Claro, existe a Bíblia que conta a história das origens dessa forma, mas se ainda nos tempos de Paulo, para compreender “os primeiros rudimentos das palavras de Deus”, os fiéis precisavam de “leite, não de alimento sólido”, (Hb 5,12), assim também acontece agora, imaginemos quão difícil deve ter sido essa compreensão então, no alvorecer da história religiosa e da história civil da humanidade.
E não pode ser, portanto, que Israel tenha errado de profeta, tomado como arquétipo Josué como o vingador, em vez de se referir a toda a tradição do messianismo bíblico, aos grandes profetas da comunhão e da paz como Isaías, Miqueias, Jeremias, Ezequiel, Jonas, à sabedoria do rei Salomão? E não será que Israel tomou a terra onde escorre leite e mel como se fosse um feudo de pequenos senhores locais e não como a terra de Deus que se estende até os confins da Terra, dada como um dom a todos os povos, de forma que os colonos para expulsar os "nativos" adotam a ideologia do Velho Oeste estadunidense? E não será que Israel tomou o próprio Deus como o Deus nacional e guerreiro que massacra os inimigos e não como o Deus, que mesmo por apenas dez justos salva Sodoma, o Deus bondoso que pelo amor de cento e vinte mil pessoas e "de uma grande quantidade de animais", salva Nínive, a grande cidade assíria, o Deus que com o profeta Miquéias convida o povo a subir a Jerusalém, "cada um com o seu Deus", como Israel com o seu? E não é esse o monoteísmo bíblico, esse “grande dom” que as religiões monoteístas, anti-idólatras, mas não panteístas e pagãs, deram ao mundo? E não será essa outra leitura do patrimônio bíblico aquela que está em conformidade com a razão e coerente com os instrumentos histórico-críticos e arqueológicos hoje disponíveis?
Na verdade, toda a crítica bíblica, judaica e não judaica, explicou que “os livros históricos” de Josué e das conquistas não são livros históricos, que foram escritos durante o reinado de Josias, mas no mínimo seis séculos depois dos fatos narrados que remontam ao século XIII, que as cidades subjugadas e destruídas não existiam ou não existiam mais no século em que são colocadas, e não há nenhuma notícia e muito menos foram destruídos povos inteiros de que fala aquela história, como os perizeus, os jebuseus, os ferezeus, os heveus, os girgaseus, os amorreus; e talvez o assentamento das tribos de Israel na terra prometida não tenha ocorrido com as armas, como afirma a ideologia da conquista, mas aconteceu de forma gradual e pacífica. Portanto, aquelas páginas bíblicas transmitem mais um mito de fundação, são um grande hino pedagógico ao Deus monoteísta e um grande manifesto anti-idólatra, mas não um grito de guerra e um convite precoce ao genocídio, milênios antes que a palavra “genocídio” fosse inventada.
Claro, houve o Holocausto no meio, que provocou a catástrofe hermenêutica, o trauma que radicaliza a vítima, resultando na morte de Rabin e na instalação de Netanyahu, enquanto Sharon que se retira de Gaza é comparado a Hitler, retratado com uniforme nazista, e por rabinos destituídos de autoridade sobre o exército. Mas não se pode chegar a esse ponto. Netanyahu não pode ser o novo Josué, que elimina o último povo “estrangeiro”, aquele palestino, e impõe a ideologia do descarte. Em vez disso, são os inocentes de Israel que continuam o testemunho do servo sofredor de Javé e do homem justo sacrificado como Rabin: essa deveria ser a conversão de Israel.
Afinal, todas as religiões estão em estado de conversão. Não é justamente o cristianismo que desistiu de distribuir coroas e reinos, deixou de se identificar com Constantino e com o seu Império, está felizmente desprovido do Estado pontifício, e não tem entre seus heróis Ricardo Coração de Leão, mas São Francisco que vai falar com o Sultão? E se o Papa Francisco diz que o Deus do “Dies irae” é mais um Deus que é apenas misericórdia, e que na sua opinião o inferno está vazio, nós não poderíamos dizer, com os Judeus, que Deus não ordenou nenhum extermínio? Na maioria das vezes, Deus protesta contra o seu povo porque, diz ele, fez "coisas que nunca ordenei nem me subiram ao coração" (Jer 7,31), e é insuportável a dor de um Deus que tem horror ao sangue quando vê que “a morte subiu pelas nossas janelas, e entrou em nossos palácios, para exterminar as crianças das ruas e os jovens das praças”, e que “os cadáveres dos homens jazerão como esterco sobre a face do campo, e como gavela atrás do segador, e não há quem a recolha” (Jer, 9, 20-21): como acontece em Gaza, mas também nas valas do Mediterrâneo, nos muros erguidos para deter os migrantes, nas frentes criadas em todo lugar para dividir os povos, não só na Ucrânia.
Isso também nos diz respeito. Tudo isso, portanto, não diz respeito apenas a Israel, como se o caso israelense pudesse ser colocado entre parênteses, enquanto todo o resto estaria bem como está. Ao levar a história a sério, não apenas como uma sucessão de fatos noticiosos, mas na sua dinâmica profunda, sabemos que Israel e o destino da fé judaica têm a ver com o "mundo vindouro", terão um papel especial no futuro, representarão uma virada, não marcarão o fim, mas terão a ver com o fim. Se não fosse assim, toda a nossa cultura da história, as crenças das quais nos alimentamos, o próprio cristianismo, aquela que normalmente chamamos descuidadamente de “história da salvação”, seriam puras fantasias e narrativas míticas. Se a questão é: “para onde vai o mundo”, e essa pergunta tem um sentido, é no futuro de Israel e dos Povos que devemos concentrar a nossa atenção.
Podemos fazê-lo sem abuso, porque não somos estranhos a Israel: os Judeus não são apenas os “nossos irmãos mais velhos”, eles são nós e nós somos eles. Esse é o verdadeiro diálogo judaico-cristão: até Jesus éramos um só, ele era judeu e ao mesmo tempo era Cristo, há uma correspondência entre Sinagoga e Igreja, Templo e Cenáculo, a Arca e a Cruz , o Rabi e o Crucifixo. Talvez hoje possamos compreender melhor, como realidade do presente, o que significa “Tenho outras ovelhas que não são desse aprisco”, hoje sabemos que não é verdade que “extra Ecclesiam” (entendida como a Igreja católica romana) “nulla salus”: o Concílio diz isso, Karl Rahner diz isso no balanço 15 anos depois do Concílio, o documento de Abu Dhabi do Papa Francisco e do Imã Aḥmad al-Ṭayyib diz isso. Compreendemos onde reside o suicídio do pensamento, e isso vale não apenas para o cristianismo, mas para o judaísmo, bem como para o islamismo; e se não compreendermos isso não perdemos uma sinagoga, uma mesquita ou uma igreja, mas perdemos a fé.
Pelo contrário, se partirmos de outra leitura da história bíblica, assoma-se outro futuro: há a leitura que dela fizeram os profetas, a tradição de Isaías e Miqueias com as suas lanças transformadas em foices e o "desaprender" a arte De guerra (Mi 4, 3), as interpretações feitas por Jesus, aquelas de Paulo de Tarso. E é precisamente Paulo o responsável por uma profecia da história que inverte a previsão do fim, estende a promessa a todos os povos e contempla o cumprimento da palavra proferida por Jesus no poço de Jacó sobre a salvação que vem dos Judeus.
A profecia de Paulo. Há uma carta que recebemos como Romanos, São Paulo nos escreveu há dois mil anos, mas é como se tivesse chegado hoje, dada a contemporaneidade das Escrituras. Há uma passagem nessa carta aos Romanos que diz: “Porque não quero, irmãos, que ignoreis este segredo (para que não presumais de vós mesmos): que o endurecimento veio em parte sobre Israel, até que a plenitude dos gentios haja entrado. E assim todo o Israel será salvo, como está escrito: De Sião virá o Libertador, e desviará de Jacó as impiedades. E esta será a minha aliança com eles, quando eu tirar os seus pecados. Assim que, quanto ao evangelho, são inimigos por causa de vós; mas, quanto à eleição, amados por causa dos pais. Porque os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento” (Rm 11, 25-29).
É essa profecia que nos traz de volta àquela “Teologia política de São Paulo” que foi o tema do seminário realizado em Heidelberg por Jacob Taubes em 1987. A sua importância reside no fato de Taubes levar Paulo muito a sério e lê-lo como judeu, dentro da tradição judaica, e mais precisamente na “lógica messiânica”. A tese fundamental de Taubes é que Paulo não é um “convertido” do judaísmo, não é disso que teria se tratado o famoso episódio de Damasco; em vez disso, trata-se de um chamado, de uma vocação, como a de outro grande profeta judeu, Jeremias, que, antes mesmo de nascer, havia sido "santificado profeta das nações" (Jer 1,5); é o próprio Paulo, observa Taubes, que se apresenta como “chamado” a uma tarefa, escolhido por vocação para ser apóstolo (de fato não o era, como os outros doze), “enviado dos judeus aos pagãos”, permanecendo, portanto, judeu.
Ora, segundo Taubes, Paulo se viu confrontado com o mesmo problema de Moisés, quando mais uma vez o povo havia pecado rejeitando o Messias que tinha vindo; mas enquanto Moisés se recusou a formar um novo povo para tomar o lugar daquele de Israel, Paulo concordou em fazê-lo. A sua “vocação” era precisamente um chamado a isso, a passar o testemunho dos Judeus aos pagãos. Porém com uma diferença fundamental. Para Moisés tratava-se de assistir a uma revogação das promessas de Deus e à destruição do povo escolhido.
Para Paulo, ao contrário, a promessa de Deus ao povo de Israel é irrevogável, não se trata de transferir a eleição de um povo para outro, ainda que maior, mas de estender a eleição para todos os povos em virtude não mais da obediência à lei, mas de uma “obediência à fé”; e a dialética interna dessa posição é aquela expressa no capítulo 9 da carta aos Romanos, isto é, aquela de levar os estrangeiros à fé para “enciumar” Israel, e eis que aqui o ciúme adquire finalmente um valor positivo; e quando devido ao "endurecimento" de uma parte de Israel (Rom 11,11) todas as nações terão entrado, então todo Israel (pas Israel) será salvo (Rom 11,25). Lendo esse capítulo da carta aos Romanos chega-se à frase, referida aos judeus: “28 Assim que, quanto ao evangelho, são inimigos por causa de vós; mas, quanto à eleição, amados por causa dos pais. 29 Porque os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento!”. O evento esperado, que nos remete ao futuro, é, portanto, a conversão de Israel, que nunca deixou de ser amado por Deus. Mas será essa conversão possível? Em qualquer caso, se há algo que podemos fazer para favorecê-la, é o diálogo judaico-cristão.
O Ocidente também deve converter-se. Segundo esse anúncio, a salvação dos Judeus seguir-se-á à entrada de todas as Nações. Portanto, isso também nos diz respeito, diz respeito ao mundo inteiro, no momento em que corre o risco de acabar, não só por obra dos Judeus, mas também por obra do Ocidente e de toda a comunidade das Nações que, como Jerusalém, "não entendeu o que beneficia a sua paz."
De fato, o Ocidente também deve converter-se. O Ocidente também deve ser libertado dos “governantes messiânicos”, que, como diz Jacob Taubes, invadiram Israel, arriscando-se a resultar num apocalipse flamejante. O Ocidente também deve libertar-se do falso messianismo, sair do sistema de guerra. Essas são as ênfases messiânicas que passaram de Israel para a Genebra calvinista, como explica Erich Przywara na sua “Ideia de Europa”: “a Genebra construída por Calvino como a própria ‘Cidade de Deus’ em oposição ao ‘Santo Império’. Tratava-se do Estado de um Deus que dá a terra para uso àqueles que são por ele ‘escolhidos e predestinados’ de acordo com a lei e a ordem”. Essa ideia nascida em Genebra, segundo Przywara, “difundiu-se com o puritanismo, conquistando a Inglaterra e a América do Norte que, ainda hoje, são internamente formadas por essa ideia. Resultou o pensamento de uma ‘terra anglo-saxônica racional e divina’ que, de acordo com a lei e a ordem, conduziu e conduz ao modo de funcionamento e aos resultados de um capitalismo fundado no calvinismo”. [3]. Pode-se identificar nessa denúncia o messianismo estadunidense, que no seu viés idólatra defende o modelo de sociedade identificado com “democracia, liberdade e livre iniciativa”, uma ideologia que por meio das guerras humanitárias e da “competição estratégica” os Estados Unidos e os seus aliados pretendem estender para todo o mundo, em nome dos chamados "valores do Ocidente", contribuindo assim para a ameaça do fim.
Chegamos assim ao fim do percurso, onde também se abre o caminho para as soluções políticas da crise. Quanto à estrutura futura do mundo, os Estados Unidos demonstraram que o projeto de eliminar a Rússia e depois competir pelo domínio mundial com a China é uma fanfarrice: os Estados Unidos já teriam intervindo na Europa se quisessem realmente levar até ao fim a “competição estratégica” com a Rússia, se realmente quisessem salvar a Ucrânia em vez de usá-la para seu próprio benefício. Tendo, portanto, evitado a intervenção da OTAN, a guerra Rússia-Ucrânia tornou-se uma guerra tradicional, como as muitas outras travadas até agora, a começar pelas dos Estados Unidos, e é relativamente fácil sair dela pela negociação, se isso não for impedido. Em vez disso, a verdadeira carga explosiva que ameaça a história, e que afeta a continuidade da civilização e da vida na Terra, é a crise israelense, está ali a linha divisória apocalíptica da história de que falava La Pira. Depois de 3.300 anos da primeira Páscoa de libertação da escravidão no Egito, com um genocídio em curso e um arrepio que percorre todo o mundo, a atual mudança de época pode ser aquela decisiva.
A solução política. E é aqui que devemos ficar, primeiro construindo a solução política para a questão palestina, a reconciliação entre os dois povos, a espera pelo momento favorável para a conversão de Israel. O fracasso de Netanyahu porá fim ao genocídio de Gaza, premissa para a reconciliação entre Judeus e Palestinos, para a conversão do Estado de Israel num espaço jurídico garantido e acolhedor para todos, para a realização do sonho de uma comunhão em Jerusalém dos pastores das três religiões monoteístas, para uma eventual entrada dos dois povos fraternos e fratricidas no ordenamento da União Europeia. E por meio dessas duas pazes, na Europa e na Palestina, que será necessário alcançar a construção de uma verdadeira comunidade mundial, inspirada e garantida por um constitucionalismo global, e a renúncia definitiva à ideia de um mundo submetido a um único poder, dilacerados por “competições estratégicas” pelo domínio, inevitavelmente origem de guerras e genocídios.
E esse será o tempo em que a humanidade adorará o Pai em espírito e em verdade. É plausível que se chegue a isso através de uma fase de declínio das confissões tradicionais, mas não para um rebaixamento, mas para uma espiritualidade mais profunda, não identitária e exclusivista, como aquela que os jovens hoje tentam procurar com a sua necessidade de comunicar e o seu extraordinário empenho civil: mobilizam-se por Gaza, que se torna o novo nome universal da dor e da redenção, a Gaza dos Povos. É um empenho que muitas vezes nós não compreendemos e é diferente de tudo o que sabemos até agora sobre a forma como os jovens assumem o controle das suas vidas e da sua história. É um processo que começou com o nome de secularização, mas que passou, no que diz respeito ao cristianismo, e ao cristianismo romano em particular, pelos grandes eventos do "discurso da lua" do Papa João, do Concílio Vaticano II, do "nunca mais" de Paulo VI na ONU, do anúncio teologicamente revolucionário do Deus do Papa Francisco; e que ainda passa pelas buscas espirituais, bíblicas, comunitárias de base e até pelo tosco pós-teísmo, que no entanto não é ateísmo, como parece, mas é mais um pós-veteroteísmo; e por meio desses processos os Povos poderão reunir-se novamente para uma nova fase da história humana, na qual a terra será salva e as dignidades perdidas serão restauradas (as inúmeras "dignidades" que estão enunciadas na Pacem in Terris), e se chegará à concretização daquela profecia de Jesus no poço de Jacó. Assim Israel retornará, pas Israel será salvo. E assim nós e toda a história.
Esse processo, se Deus quiser, começará justamente agora, discretamente, quase sem que ninguém perceba, com essas importantes eleições europeias em que a Europa, e o resto dos justos dos seus povos, terão que responder à pergunta do Papa Francisco: para onde vais Europa?
E, portanto, justamente aqui encontramos a resposta à pergunta se vamos para o fim ou se vamos para a salvação. Estamos indo para a salvação: a crise em que está suspensa a vida do mundo não está na Europa e na Ucrânia, não é dali que virá a catástrofe.
[1] Cf. Aviezer Ravitsky, Prêmio Israel de Pesquisa Filosófica, La fine svelata e lo Stato degli Ebrei; Gershom Scholem, Concetti fondamentali dell’ebraismo (ambas da editora Marietti).
[2] Jacob Taubes, La teologia politica di san Paolo, Milano, Adelphi Edizioni, 1997.
[3] Erich Przywara, L’idea d’Europa, La “crisi” di ogni politica “cristiana”, Il pozzo di Giacobbe, 2013, p. 103.
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Ou a salvação ou o fim. Para onde vai o mundo? Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU