07 Mai 2024
"Como entender a luta? Trata-se realmente de uma luta e de que tipo? De acordo com algumas interpretações, o que acontece no vau do Jaboque é um evento imaginário - um sonho, mais precisamente um pesadelo que surpreende o protagonista exausto pelo cansaço e pela angústia. No entanto, a narrativa está cheia de referências concretas e materiais, a partir da ferida na coxa de Jacó infligida pelo Adversário. Os próprios traços da luta, a extrema dureza, a duração extenuante, a poeira que levanta, levam a pender para uma experiência realmente vivida", escreve Roberto Esposito, filósofo italiano, professor da Escola Normal Superior de Pisa e ex-vice-diretor do Instituto Italiano de Ciências Humanas, em artigo publicado por La Repubblica, 29-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O texto bíblico que talvez tenha exercido o maior fascínio na cultura teológica, filosófica, artística, ocidental, é composto por cerca de dez versículos do Gênesis (32, 23-33). Eles contam a luta noturna do patriarca Jacó com um ser não melhor identificado na margem do rio Jaboque, durante o seu regresso a Canaã querido por Deus. Mas, dentro e além de um único episódio, nos falam de toda luta e, aliás, da Luta como forma inevitável da existência humana. Não está em jogo apenas o confronto com um adversário, mas a própria Adversidade da qual viemos e que nos envolve como um invólucro da qual é impossível escapar. Nunca como nesse caso, apesar da distância intransponível que separa a tradição judaico-cristã daquela grega, se pode perceber um traço que a liga à definição heraclitiana do polemos como o pai de todas as coisas. A luta, entendida como forma da existência, relaciona a violência humana com algo mais originário que a retém, e junto, a revela no seu caráter essencial. Mas essa revelação, no entanto, longe de resolver o enigma, o aumenta, colocando-o no centro desse texto.
Aquilo que, no cruzamento de todas as interpretações, continua há três milênios a atrair olhares, pensamentos, imagens é a tensão antinômica entre homem e Deus, terra e céu, tempo e eternidade. Como entender a luta? Trata-se realmente de uma luta e de que tipo? De acordo com algumas interpretações, o que acontece no vau do Jaboque é um evento imaginário - um sonho, mais precisamente um pesadelo que surpreende o protagonista exausto pelo cansaço e pela angústia. No entanto, a narrativa está cheia de referências concretas e materiais, a partir da ferida na coxa de Jacó infligida pelo Adversário. Os próprios traços da luta, a extrema dureza, a duração extenuante, a poeira que levanta, levam a pender para uma experiência realmente vivida. Mas, supondo que seja real, e não um sonho, é uma verdadeira luta ou outra coisa, menos violenta? Um encontro próximo, um abraço ou até mesmo uma espécie de dança - como sugerem algumas pinturas da Luta? Entre os grandes pintores modernos, se Delacroix, Gauguin e Chagall retratam, em diferentes formas, uma luta, Rembrandt, Redon e Doré pintam algo que mais parece um “cara a cara”. Outros, ainda, como o escultor Jacob Epstein e a pintora Lioba Munz, transformam o combate numa espécie de abraço.
Chegamos assim à questão crucial que sempre perturba a interpretação da Luta, orientando-a em direções diferentes e até opostas. Quem ou o que é o Adversário? A grande maioria da tradição, judaica e cristã, antiga e moderna, vê o Adversário como "alguém". Mas, quem? Um homem, um deus, um anjo, um demônio, o irmão que Jacó enganou, um inimigo nacional ou religioso de Israel? Quase todas as pinturas e as esculturas que se reportam aos versículos do Gênesis, representam Jacó lutando com um anjo. Mas qual anjo? O anjo de Senhor, o anjo das nações ou o anjo caído, o Adversário por excelência? Existe um clichê meio superficial, segundo o qual, para civilizá-lo, se deveria transformar o inimigo em adversário.
Mas acreditar que o termo “adversário” seja menos intenso que o termo “inimigo” não faz sentido. Basta pensar que, se assim fosse, dificilmente uma tradição milenar teria chamado pelo nome de “Adversário”, o diabo.
Além disso, há a interpretação psicanalítica moderna. Se Jacó se espelha no Adversário, isso significa que luta consigo mesmo, com a parte perversa da sua personalidade. Dessa perspectiva o Adversário se manifesta como a sua Sombra, no sentido que Jung conferiu a esse termo.
Lutar, para Jacó, significa tentar se separar definitivamente do seu lado na sombra projetando-a no gêmeo violento. Mas ao fazer isso, ele acaba capturado, submergindo definitivamente a consciência no redemoinho do inconsciente. Somente reconstruindo uma relação dialética com a própria alteridade, o sujeito pode sobreviver aos impulsos que ameaçam engoli-lo.
Por fim, fica a última questão. Qual dos dois lutadores sai vitorioso do confronto? O texto bíblico nos diz que, assim como o Adversário, nem mesmo o patriarca pode ser vencedor. Se um dos dois vencesse, significaria o fim da Luta e, portanto, da própria vida que ela expressa. A tarefa que Deus - ou o destino - atribui a Jacó é antes libertar-se da ansiedade de uma vitória impossível, sem por isso dar-se por vencido. Ele deve apreender e aceitar o fato de que a existência humana está sempre em luta, que a vida nunca poderá vencer a morte. Ou mesmo, como diria Hegel, deve sempre acertar as contas com o negativo. Cujo poder é personificado pelo Adversário. Se ele é o Negativo — a ferida — que atravessa a vida de Jacó, juntamente com a de todos nós, então a Luta, com os outros e com o Outro, mas também, ao mesmo tempo, com nós mesmos, não pode ter fim, porque caracteriza toda vida humana.
Nesse sentido, Carl Schmitt, de sua cela em Nüremberg, escreveu que o inimigo é a personificação do nosso problema. Deixá-lo significaria, junto com o outro, perder também a si mesmo. O outro é necessário para nós. Não só porque, diferindo de mim, me identifica. Mas porque sou eu mesmo, separado em duas entidades que assumem o nome de “eu” e “outro”: “Quem realmente pode colocar-me em conflito? Somente eu mesmo. Ou meu irmão. Efetivamente. O outro é meu irmão. O outro se mostra meu irmão, e meu irmão é meu inimigo."
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A eterna luta de Jacó pela existência. Artigo de Roberto Esposito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU