Da Ucrânia a Gaza. Não existe guerra limpa. Artigo de Mario Giro

Imagem: Alessandro Armignacco | Unsplash

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17 Fevereiro 2024

"Devemos ter cuidado para não nos intoxicarmos já agora com racismos, egoísmos e preconceitos diversos que degradam mentes e corações, preparando-os para o conflito. (...) Contra qualquer resignação, é sempre tempo de procurar uma 'paz criativa', como pede o Papa Francisco, antes que aconteça o irreparável".

O comentário é de Mario Giro, professor de Relações Internacionais na Universidade para Estrangeiros de Perúgia, na Itália, em artigo publicado por Domani, 14-02-2024. A tradução de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

“Uma guerra limpa não existe e nunca existiu” afirma o teólogo Severino Dianich que atravessou o drama da Ístria durante e após a última guerra, incluindo os foibe e a fuga dos julianos-dálmatas. “Não consigo conter a minha indignação – acrescenta – quando ouço pessoas deplorando as bestiais crueldades que o ‘inimigo’ está cometendo. Na minha opinião, uma forma ignóbil de propagar a ideia de que exista uma guerra aceitável”.

A guerra é sempre uma bestialidade que deturpa quem a trava, mesmo se agredido ou em estado de legítima defesa. Como se pode justificá-la? Essa é a preocupação de muitos humanistas, leigos e crentes. A guerra como "meio inaceitável" tornou-se uma constante no magistério papal desde Bento XV, que criticou o “massacre inútil” da Primeira Guerra Mundial e não foi compreendido pelas igrejas católicas nacionais de sua época.

Para a Igreja de Roma todo conflito assume a característica de uma guerra civil: irmãos que matam irmãos. O valor da vida e da pessoa é considerado superior até de valores civis respeitáveis, como o amor à pátria ou à proteção da nação. É uma questão que levantaram e continuam a levantar os católicos diante dos conflitos de agressão ou legítima defesa.

Por outro lado, e de uma forma completamente diferente, é a mesma tensão que o judaísmo democrático está vivendo hoje: como permanecer ligados à identidade judaica de Israel sem trair os ideais democráticos e pluralistas e sem optar pelo Estado étnico? Na Accademia dei Lincei o Cardeal Pietro Parolin declarou com autoridade que para a Santa Sé: “A guerra não é mais um instrumento lícito de ação internacional".

Gaza e Ucrânia

Uma afirmação nem sempre aceita dentro da Igreja Católica (e menos ainda nas igrejas orientais), mas que está progressivamente abrindo espaço na consciência de muitos: a guerra não é lícita porque representa uma engrenagem obsoleta e inútil que agrava os problemas em vez de resolvê-los. Como resolver esse dilema resistindo à tentação das paixões?

Edgar Morin fala de “resistência do espírito”. “Saber resistir – escreve – à intimidação de todas as mentiras e ao contágio de todas as embriaguezes coletivas. Não ceder ao delírio da responsabilidade coletiva de um povo ou de uma etnia”. O escritor israelense Etgar Keret faz-lhe eco: “Nenhuma das nossas batalhas leva a um resultado decisivo: as guerras não se vencem mais. E nos encontramos novamente todos perdedores”.

O que vemos com os atuais conflitos na Ucrânia ou em Gaza (mas também em África) é um total esvaziamento do espírito humano quando é tomado pelas emoções belicitas, uma excitação que turva a mente e enfraquece o pensamento.

O sofrimento não tem nacionalidade

Consequentemente, não parece haver uma solução razoável para os conflitos e, no final, todos assumem o vitimismo como linguagem, dizendo sempre a mesma coisa: “Foi o inimigo que quis a guerra, ele é o único responsável, nós fomos forçados”. Tanto o agressor quanto o agredido afirmam isso, numa contínua troca de papéis permitida pelo enevoamento da razão e na mais total confusão dos valores humanos.

Como escreveu Pavel Florenskij em 1937: “No homem há uma carga de fúria, de ira, de instintos destrutivos, de ódio e raiva, e essa carga tende a se derramar sobre as pessoas ao redor. Nas guerras o homem se deixa dominar pela fúria pela pura brutalidade”. Somente tocando pessoalmente a carne humana ensanguentada pela crueldade do combate é possível entender que o sofrimento não tem nacionalidade, mas a essa altura já é tarde demais. Significativo é o testemunho de uma ex-combatente da Grande Guerra Patriótica prestada a Svetlana Aleksievic, a Vencedora do Prémio Nobel da Bielorrússia que escreveu muito sobre a guerra: “Eu também tive a minha própria guerra. Eu percorri um longo caminho na companhia de minhas heroínas. Assim como elas, por muito tempo não quis acreditar que a nossa ‘Vitória’ tinha duas faces, uma de grande beleza e a outra deturpada pelas cicatrizes de um horror insuportável”.

“Depois da guerra, a vida humana perdeu todo valor” conta outra testemunha: a alma desfigurada de um povo esmagado pelo conflito tem grande dificuldade para se recuperar, como se estivesse poluída por um veneno que não passa. Toda guerra deixa o ar contaminado por uma epidemia de inimizade.

Devemos ter cuidado para não nos intoxicarmos já agora com racismos, egoísmos e preconceitos diversos que degradam mentes e corações, preparando-os para o conflito. É por isso que precisamos de uma retomada do espírito europeu das origens que parece estar agora enfraquecido: temos de estar conscientes de quanto isso é necessário e indispensável se quisermos garantir um futuro de paz para a próxima geração.

Contra qualquer resignação, é sempre tempo de procurar uma “paz criativa”, como pede o Papa Francisco, antes que aconteça o irreparável.

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