22 Mai 2023
"Sobre a paz, o papado, precisamente por seu caráter universalista, é mais avançado do que as igrejas nacionais. Menos espanto ainda se as desaprovações vierem das igrejas ortodoxas que, como se sabe, são particularmente influenciáveis pelos nacionalismos. A posição do Papa Francisco é baseada também em um fato objetivo: nenhuma guerra dos últimos trinta anos serviu para alguma coisa, resolveu o problema pelo qual havia sido iniciada ou levou a situações de paz estáveis", escreve o cientista político italiano Mario Giro, professor de Relações Internacionais na Universidade para Estrangeiros de Perugia, na Itália, em artigo publicado por Domani, 19-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Canais de amizade e gestos de humanidade: com essas ferramentas, o Papa Francisco mantém aberto o caminho do diálogo e da negociação entre Rússia e Ucrânia. É convicção do Papa que no final terão que se sentar à mesa para negociar: por isso é melhor apressar e favorecer esse momento.
Como seus predecessores, Francisco também acredita que as armas não levam a lugar nenhum, aliás, pioram a situação, cavando um sulco cada vez mais profundo entre os contendores. É a razão pela qual tradicionalmente a igreja católica não condena (neste caso não condena os russos) e não assume lado: como em tantas outras situações de conflito semelhantes, a igreja permanece na posição de "imparcialidade ativa" que escolheu há mais de um século.
Quem vê nisso uma ruptura ou uma novidade (talvez a atribuindo a razões políticas ou ideológicas) não conhece a história: Bento XV já havia se manifestado contra a Primeira Guerra Mundial, denunciando-a como um "massacre inútil". Os arcebispos católicos de Paris e Viena tentaram trazer o pontífice cada um para o seu lado (condenando o outro), mas para a igreja de Roma aquele conflito, como qualquer outro, era efetivamente uma guerra civil, uma guerra entre irmãos: um terreno impossível para a igreja universal. Em nenhum caso se tratava de abençoar as bandeiras de guerra ou as armas das nações.
Todos os papas subsequentes aprofundaram essa teologia da paz, nenhum excluído. João XXIII foi o autor da primeira encíclica sobre a paz (Pacem in Terris): além de intervir na crise dos mísseis de Cuba, recebeu a filha de Kruschev no Vaticano, atraindo também muitas críticas.
João Paulo II se opôs à guerra no Iraque e foi o artífice de transições pacíficas (basta pensar ao Chile de Pinochet), bem como da queda do comunismo por dentro, ou seja, sem guerra por meio do diálogo político.
O Papa Francisco definiu a guerra como "sacrílega", sem fazer distinções sobre a qualidade do conflito. Consequentemente, as críticas à paz não geram surpresas nos papas, mesmo que venham de dentro da própria Igreja Católica: isso vem acontecendo há mais de um século.
Sobre a paz, o papado, precisamente por seu caráter universalista, é mais avançado do que as igrejas nacionais. Menos espanto ainda se as desaprovações vierem das igrejas ortodoxas que, como se sabe, são particularmente influenciáveis pelos nacionalismos. A posição do Papa Francisco é baseada também em um fato objetivo: nenhuma guerra dos últimos trinta anos serviu para alguma coisa, resolveu o problema pelo qual havia sido iniciada ou levou a situações de paz estáveis.
No Vaticano, amadureceu a ideia de que a guerra tenha se tornado um instrumento obsoleto e inadequado para resolver as crises ou as disputas internacionais: o instrumento militar nunca pode "fazer justiça" nem criar uma "paz justa" de forma alguma, como ensina a história.
Ciente de tais posições, o presidente Volodymyr Zelensky quis se confrontar de cara aberta com o papa, trazendo suas motivações: a legítima defesa e a tentativa de recuperar todos os seus territórios. O papa não é unilateral diante dos sofrimentos do povo ucraniano nem coloca os dois países do mesmo plano: tem repetidamente declarado em público a sua proximidade ao “martirizado povo ucraniano”, mas não evita se dirigir também ao “povo russo” para pedir o fim da guerra.
Para ele, isso é manter os canais abertos enquanto se espera a oportunidade certa.
Segundo Francisco, a trégua não seria de forma alguma uma rendição, mas o início do espaço de diálogo para uma paz mais duradoura. O papa já está olhando além, para depois da guerra, quando não só será preciso reconstruir, mas sobretudo atuar pela reconciliação e pela convivência.
É claro que nem ucranianos nem russos atualmente querem falar sobre isso - ambos ainda estão na modalidade "guerra pela vitória". Mas segundo o Papa Francisco essa fase vai passar, virá o momento do reencontro e quer que nos preparemos. É o próprio pensamento democrático que indica isso: não se limitar a vencer, mas pensar no amanhã.
O que caracteriza as democracias, diferenciando-as dos regimes autoritários, é justamente o fato de que a democracia não persegue a vitória (sempre efêmera ou provisória), mas olha para o amanhã, para como será possível viver (ou voltar a viver) juntos, para reconstruir uma arquitetura de segurança que permita evitar novas guerras. Há quem defenda que sem uma vitória sobre a atual Rússia nunca haverá paz: os instrumentos diplomáticos serviriam apenas para adiar a recorrência da agressão. Isso não leva em consideração o fato de que não se pode decidir pelos outros: não podemos ter a Rússia que queremos, devemos levar em conta a Rússia real.
A verdadeira mudança democrática na Rússia - que todos almejam - só acontecerá de dentro e não forçando do exterior, como acontece com todos os países. A igreja tem uma experiência histórica grande demais para não ter aprendido essa lição.
Imparcialidade ativa também significa empenhar-se muito para ajudar a Ucrânia agredida: desde fevereiro de 2022 a Igreja Católica tem sido muito ativa do ponto de vista humanitário com ajudas de todos os tipos (para as quais Santo Egídio contribuiu muito na Itália), trocas de prisioneiros e hoje o empenho - reiterado a Zelensky - de trazer de volta para casa as crianças sequestradas na Rússia. Ao mesmo tempo, a Igreja faz a sua parte, buscando o caminho para um novo entendimento: não acredita na guerra infinita nem no ódio ilimitado e perpétuo.
A Europa já experimentou essas obsessões muitas vezes e ainda hoje está às voltas com elas: como reação, o Papa Francisco não abençoa os nacionalismos, mas reza e atua pela unidade da humanidade.
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Imparcialidade ativa. É assim que funciona a estratégia do Vaticano. Artigo de Mario Giro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU