"A guerra é o verdadeiro inimigo: representa a loucura do mal que deve ser detido o mais rápido possível. Mais o conflito dura e mais se colocam as condições para o seguinte, ou seja, do ciclo infinito das vinganças. Cada guerra prolongada cria as condições para a seguinte", escreve o cientista político italiano Mario Giro, professor de Relações Internacionais na Universidade para Estrangeiros de Perúgia, na Itália, em artigo publicado por Scenari – Domani, 24-02-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A guerra na Ucrânia parou definitivamente a globalização. Já questionada especialmente no Ocidente por seus efeitos negativos no mercado de trabalho global e sobre a distribuição das produções e cadeias de suprimentos mundiais, a globalização não pode sobreviver em um contexto em que são as armas que falam.
Sempre se disse que a guerra é ruim para os comércios, mas neste caso ela os interrompe brutalmente, como aconteceu com a nova Rota da Seda construída pela China, pelo menos em sua parte terrestre que atravessa a Europa.
Cadeias produtivas inteiras veem sua existência ameaçada pelo súbito aumento dos custos.
A guerra também coloca o problema do abastecimento de energia: como abrir mão do gás russo e em quanto tempo? Parece que depois de um ano de guerra a Europa tenha encontrado uma maneira para o substituir.
Particularmente na Alemanha e na Itália o debate é muito acalorado: é preciso evitar dar um golpe de graças ao setor industrial já onerado por dois anos de pandemia. A substituição por gás estadunidense, canadense, caucasiano, africano ou do Oriente Médio está em andamento, mas precisa de tempo e, principalmente, custa muito mais, até oito vezes mais.
Enquanto a China tentou interpretar a seu favor todos os instrumentos (e conseguiu em grande parte) da globalização, ampliando seu raio de ação comercial para todo o planeta, os Estados Unidos, já com a presidência de Obama e ainda mais com a de Trump, se mostraram cada vez mais céticos sobre a abertura global, levando em séria consideração as consequências negativas que a última estava tendo em seu país e sobre os seus aliados mais próximos.
Na Europa, a Alemanha foi por muito tempo defensora da globalização sem limites, com uma atitude ao mesmo tempo competitiva e cooperativa com Pequim.
Disso resultam as arestas nas relações entre Berlim e Washington, sobretudo pelo fato de o governo alemão ter também incluído Moscou em sua estratégia expansionista, devido à necessidade de energia para a sua indústria.
Esses atritos ainda persistem. Deve-se ter em mente que para a Rússia nunca pareceu satisfatório ser considerada apenas como um fornecedor de petróleo e gás e perseguiu a busca espasmódica de um papel geopolítico global relevante que a colocasse em uma relação bilateral igualitária com os Estados Unidos que, desde o fim da URSS nunca mais havia sido concedida.
Nesta tensão em torno dos efeitos da globalização, tanto o comércio como o mercado financeiro e das tecnologias tornaram-se cada vez mais "políticas", isto é, sujeitas às tensões geoestratégias existentes.
Sobre a globalização não houve um consenso político de pontos de vista: se para a Rússia (como depois para a China) foi uma oportunidade de se elevar ao patamar do chamado primeiro mundo ocidental, este último não quis reconhecer tal possível igualdade.
Havia válidas razões para isso, especialmente a ideia de que a democracia é o sistema de governo mais eficaz e mais respeitador da dignidade da pessoa e dos direitos humanos.
Porém, isso também escondia uma ideia de superioridade inaceitável para os demais protagonistas. A desglobalização em curso é um dos efeitos desse fracasso que, no entanto, talvez jamais viesse a acontecer.
A etapa atual do processo de desconstrução e encurtamento de cadeias de valor começa com a retomada do protagonismo da política, a começar pela subordinação de cada escolha econômica ao escrutínio da segurança nacional.
Não possuir produções próprias nos setores considerados vitais para a salvaguarda interna causando a repatriação de produções inteiras consideradas sensíveis. A globalização assim progressivamente se transformou daquele mundo plano – flat world – descrito por Thomas Friedman, num campo minado, competitivo e cheio de obstáculos, até se tornar uma verdadeira "máquina de conflitos” segundo a definição de Alessandro Aresu.
No mundo plano tudo deveria ter acontecido sem adversidades: cadeias longas ou curtas dependendo dos preços e facilidade de expedição, nenhuma concentração de produções, extrema volubilidade das escolhas, nenhum stock a favor da gestão imediata das mercadorias, numa palavra a otimização dos custos e da gestão da distribuição.
Essa horizontalidade favoreceu a Ásia e, em particular, a China, que se propôs como "fábrica do mundo". Naquela época, quase ninguém se opusera a ideia de que deixar o monopólio de algumas produções para um país autoritário poderia criar problemas.
No máximo, lamentava-se de concorrência desleal no custo do trabalho. A pandemia mostrou que esse sistema poderia facilmente entrar em crise na primeira emergência real: assistimos à "batalha das máscaras" com a qual até os próprios estados membros da UE se desafiaram a golpes de reservas.
De repente, os países tiveram a sensação de que só podiam contar consigo mesmos: em momentos de emergência a globalização havia subitamente parado de funcionar.
Com a guerra na Ucrânia, a desconfiança em relação a esse sistema cresceu ainda mais: tornou-se evidente que o binômio monopólio-autoritarismo pode ser letal.
Atualmente é generalizado o medo das consequências de concentrações produtivas como, por exemplo, aquela de semicondutores entre Taiwan e Coréia (zonas de risco de conflito) ou aquela de trigo e milho entre Rússia e Ucrânia, da energia e o colapso do sistema de transportes em todos os setores.
A inflação mundial nunca foi tão alta desde o início da década de 1990 e todas as previsões de crescimento pós-pandemia são revistas para baixo.
Calcula-se que as sanções impostas à Rússia por atacar a Ucrânia terão consequências duradouras, reduzindo ainda mais as possibilidades de uma recuperação global. Claro que nem todos os países serão igualmente penalizados: alguns se beneficiarão do encurtamento das cadeias de valor.
O movimento geral tende a uma espécie de reshoring, ou seja, o retorno para casa das produções que haviam sido repassadas para o exterior devido aos menores custos de mão de obra ou das matéria-prima.
De máscaras a semicondutores, muitos países estão tentando voltar a produzir o que haviam delegado para outros lugares. Isso participa do aumento dos preços (o custo do trabalho - como é bem conhecido – não é o mesmo em todos os lugares), mas recoloca em movimento setores que pareciam abandonados.
Também se fala do encurtamento das cadeias de suprimentos por meio de estados amigos ou de mentalidade semelhante, aqueles que pensam da mesma maneira. Assim, os defensores de a "organização das democracias" assumir o lugar da ONU, que não tinham conseguido convencer no início dos anos 1990, agora encontram novos impulsos no desarticulado e frágil quadro multilateral.
Vimos uma amostra disso com a exclusão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos em Genebra.
A competição muda: no quadro da reestruturação da manufatura, por exemplo, em perspectiva a Itália terá que lidar muito menos com a concorrência chinesa ou asiática e muito mais com aquela polonesa, romena ou mexicana.
Mudanças significativas também estão ocorrendo no setor agrícola na Europa, com o retorno dos cultivos da terra, a superação das regras de rotação de culturas sugeridas pela UE e a tentativa de direcionar algumas produções para a África.
Chegamos a uma nova virada histórica que encerra a fase iniciada com a queda do Muro de Berlim. É verdade que naquele período se pensava que a democracia teria sido a consequência da abertura do comércio.
A democracia liberal baseada na economia de mercado foi considerada o único modelo possível: um mundo que havia chegado à "pax capitalista" em que os Estados não teriam interesse em travar guerra entre si.
Mas a tese de Friedman segundo a qual “dois países que têm um McDonald's não entram em guerra entre si”, provou ser falsa, embora grande parte da interconexão forjada durante esses trinta anos continuará.
O que certamente faltará é a confiança incondicional de que o sistema seja capaz de produzir sozinho paz e estabilidade internacional. Já com os ataques de 2001 ficou claro que grande parte do mundo não estava interessada em se deixar absorver pelo sistema globalizado ou, no mínimo, rejeitava as condições político-culturais.
Não havia apenas o islamismo radical a se opor, mas este último encarnava aquela gramática da revolta que já agita muitos povos. Deve-se dizer que numerosas formas de tal islã que nos acostumamos a chamar de jihadista, representam o símbolo generalizado da rejeição de um mundo unipolar e a reação a condições econômicas injustas.
A isso devem ser adicionados outros formatos de rebeldia como os soberanismos, os populismos e todos os modelos de identidades separadas e secessão que ocorrem hoje no mundo.
O que aproxima essas diferentes tentativas é a rejeição pelas elites globais que têm o controle do sistema econômico-financeiro, que muitas vezes não coincidem com as elites políticas.
Com o tempo, o Ocidente ficou perplexo com tais rejeições porque pensava que teria sido suficiente a "vantagem comparativa" concedida (a alto preço) para as outras regiões do mundo: permitir a deslocalização de milhões de empregos em troca de uma redução geral nos custos.
O resto do mundo não aceitou a troca: apropriou-se das produções concedidas e quis muito mais ao construir uma própria identidade política alternativa às democracias liberais, até à pretensão chinesa de alcançar o primeiro lugar global.
O Ocidente não percebeu imediatamente que estava se enfraquecendo em duas frentes: naquela interna porque a deslocalização importou para dentro de seus muros raiva e protesto social; e naquela externa porque, ao conceder oportunidades comerciais, também estava concordando com aquelas políticas.
Assim, abriu-se caminho para modelos alternativos como o nacionalista da Rússia, da Índia ou da Turquia, mas também da Hungria de Orbán ou dos Estados Unidos de Donald Trump.
A atual fase de declínio da globalização se transformou para o Ocidente – e em particular para sua política externa – numa espécie de Jurassic Park, onde súbitas contingências estranhas e caóticas parecem ser geridas por forças brutais e imprevisíveis das quais havia sido perdida toda memória.
Algo antigo voltou à superfície da história, tornando-a anárquica e novamente trágica, como a guerra na Ucrânia demonstra. A "nova ordem mundial", prometida no início dos anos 1990 e na virada do milênio, nunca se concretizou.
O Ocidente progressivamente perdeu peso até se tornar menos relevante. No Oriente Médio agora se impõem Rússia, Irã ou Turquia; na Ásia, a China foi a única potência a usufruir dos efeitos benéficos das liberdades econômicas mostrando cada vez mais assertividade; na África dominam os regimes autoritários e a democracia fracassa, crescem os fluxos migratórios descontrolados e renascem velhos conflitos; na América Latina, o ciclo virtuoso parou.
Esse fracasso fez renascer o populismo nacionalista na Europa, cujos sintomas gerais são medo e fraqueza: erguem-se muros, nos isolamos e reclamamos da perda de poder e prestígio.
Mas tudo isso representa uma mentira, velhas receitas, já fracassadas e perigosas, que só ganham um crescimento da tensão geral que mais cedo ou mais tarde se tornará um bumerangue. Tudo parece lício por medo do declínio. Como se sabe, o medo dá à luz monstros.
Na Europa, a imigração e a crise do islã foram percebidas como sinais de declínio incipiente. A partir disso mais reações de medo e hostilidade, o terror dos europeus de serem "substituídos" por novos povos estrangeiros e agressivos.
Os movimentos populacionais desde sempre deram origem a percepções de "invasão" e de inquietação, em qualquer latitude. Devem ser compreendidos, mas não devem ser incitados ou manipulados.
A incerteza de amanhã não é apenas ocidental: é de todos, como a pandemia confirmou.
A guerra na Ucrânia é uma ameaça para todos, como a penúria alimentar está demonstrando. Em um mundo tão incerto, a maioria dos cidadãos se faz a mesma pergunta: o que será de nós?
Haverá cada vez mais guerras e instabilidade? Novos ataques terroristas? Novos movimentos subversivos? Novas crises econômicas? A insegurança permeia todos os continentes. Um mundo fluido e incerto não é fácil de administrar para sistemas autoritários que são sempre rígidos.
Apesar de nossa percepção, ao contrário, é o terreno certo para as democracias e para políticas como aquela comum europeia. Hoje, as lideranças europeias deveriam ter a coragem de se aventurar no grande problema de paz na Ucrânia, segundo o próprio interesse europeu.
Enquanto isso – camuflada – a guerra ucraniana segue e tenta criar as condições (materiais e psicológicas) para sua continuação, até se tornar permanente. Esta é a ambição máxima: um mundo sempre em guerra, abalado por confrontos, crises ou pelo menos contraposições.
A atenção deve estar voltada para a própria guerra, para sua essência atroz: ela não é apenas um instrumento para afirmar algo (uma ideia, uma política, um plano estratégico justo ou injusto que seja), mas é sobretudo uma engrenagem que se apodera do destino humano, tirando-lhe o livre arbítrio.
Quando se está em guerra, de fato, as escolhas são reduzidas ao osso: lutar ou perecer. Para quem sofre as consequências do conflito a única solução é tentar sobreviver, como acontece hoje em muitos países onerados pela crise energética ou alimentar.
A guerra é o verdadeiro inimigo: representa a loucura do mal que deve ser detido o mais rápido possível. Mais o conflito dura e mais se colocam as condições para o seguinte, ou seja, do ciclo infinito das vinganças. Cada guerra prolongada cria as condições para a seguinte.
Para entender isso, basta um pouco de psicologia humana. Por esse motivo, deve ser abreviada e terminada o mais rápido possível.
Ter interrompido há cerca de vinte anos os processos de desarmamento iniciados na época da distensão, levou a aceitar mais uma vez a guerra como companheira inevitável da história humana.
É hora de voltar à razão do "nunca mais" presente após a segunda guerra mundial e começar de novo a desarmar a todos. Como todas as guerras, a guerra na Ucrânia também cobre atrocidades de todos os tipos (como os terríveis massacres de Irpin e Bucha) e transforma os combatentes no pior.
A guerra deturpa a alma dos povos que a travam ou a sofrem, mesmo aqueles que se defendem.
A experiência ensina que os países que são arrastados para uma guerra saem deteriorados, endurecidos, regredidos e degenerados. Para os cristãos trata-se de um terreno impraticável: a guerra é sempre fratricida, inimiga da vida humana, de todo ser vivo e da natureza: numa palavra de todo o planeta, um mal a ser abreviado o mais rápido possível e a todo custo.
Também os leigos concordam com isso, Kant dizia de forma simples: “A guerra elimina mais homens maus do que aqueles que mata". Se isso não for suficientemente convincente, basta pensar nas guerras feitas nos últimos trinta anos: guerras nos Bálcãs, guerras no Golfo, Afeganistão, Síria, Líbia, etc.
Nenhum delas resolveu nada, nem correspondeu às razões invocadas para iniciá-las, mas apenas piorou as situações, criando mais caos. É uma observação objetiva que não pode ser ignorada. Onde tais conflitos explodiram, hoje não há ordem, nem estabilidade, nem reconciliação, nem democracia, mas apenas ódio, rancor e espírito revanchista.
Quando os conflitos explodem, somos tomados pela miragem da guerra que resolve, da guerra justa, para depois ficar sempre terrivelmente decepcionados. Tomar partido é um impulso compreensível, especialmente quando há uma agressão injustificável como contra a Ucrânia. Imediatamente depois, porém, é preciso pensar lucidamente.
A crescente simpatia pelo povo ucraniano agredido e o respeito por sua resistência são compartilháveis. Mais problemática é a ideia de prolongar a guerra rumo a uma vitória improvável: além de multiplicar o sofrimento dos civis, corre-se o risco de cair nas mãos de quem quer torná-lo perene e manipular o caos.
Esse mecanismo deve ser evitado: não existe nenhum argumento convincente para o prolongamento, nem mesmo aquele da defesa da democracia na Europa. A democracia realmente se defende garantindo as razões (e a razoabilidade) da paz mesmo diante do agressor, contendo e depois extinguindo o seu infundado revanchismo vitimista.
No final, porém, será necessário conviver: não se convive em um estado de conflito constante, mas apenas na paz. Essa é a lição da história europeia e a razão profunda do nascimento da União europeia.
Este texto foi retirado do livro Trame di guerra e intrecci di pace. Il presente tra pandemia e deglobalizzazione, Edizioni SEB27.