12 Abril 2022
O conflito já está tomando um rumo diferente, expandindo-se para além dos dois protagonistas iniciais – Rússia e Ucrânia – e se transformando em um confronto mundial mascarado. A “nova ordem mundial”, assim, corre o risco de ser a do ódio e do medo.
O comentário é de Giuseppe Savagone, diretor do Escritório para a Pastoral da Cultura da Arquidiocese de Palermo, na Itália. O artigo foi publicado originalmente no sítio da arquidiocese e republicado por Settimana News, 11-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A notícia de que a Assembleia Geral da ONU suspendeu a Rússia do Conselho dos Direitos Humanos soma-se às tantas notícias que estão registrando nestes dias o crescente isolamento internacional desse país (assim como a da exclusão do governo de Moscou do Conselho da Europa ou a da proposta de expulsar a Rússia do G20).
Biden expressou a sua satisfação com uma decisão que demonstra “como a guerra de Putin tornou a Rússia um pária (…). Continuaremos trabalhando com as nações para fazer a Rússia responder pelas atrocidades cometidas e para aumentar a pressão sobre a economia russa e isolar a Rússia do cenário internacional”.
A decisão foi tomada por grande maioria. No entanto, não a ponto de ser totalmente unânime: 93 países se pronunciaram a favor, enquanto 24 se opuseram, e 58 se abstiveram.
Entre os contrários, muitos aliados históricos de Moscou, como China, Cuba, Bielorrússia, Síria e Vietnã, e outros que se tornaram recentemente graças às ajudas militares recebidas do Kremlin, como Mali, Gabão e Zimbábue. Na lista dos que se abstiveram, figuram, entre outros, Índia, Brasil, Egito, Emirados Árabes Unidos, Indonésia, Jordânia, Iraque, México, Nigéria, Catar e África do Sul.
O posicionamento da China é particularmente significativo: “O diálogo e a negociação são a única saída para a crise na Ucrânia”, disse o embaixador chinês na ONU, Zhang Jun, após a votação. “Esta resolução”, acrescentou, “agrava as divisões entre os Estados membros, joga lenha na fogueira e não ajuda as negociações de paz.”
Estávamos falando sobre o isolamento da Rússia. À luz desses dados, talvez fosse mais correto falar – como fizeram tanto os ministros das Relações Exteriores da Rússia e da China quanto o presidente dos Estados Unidos – da emergência de “uma nova ordem mundial” (se é que podemos falar de “ordem”...).
O que parece destinado a caracterizá-la é o fim do diálogo entre as grandes potências, que, apesar de mil dificuldades e incompreensões, tinha marcado o fim da “guerra fria” e que tinha encontrado um incentivo na crise da ideologia comunista. Com base em uma aceitação comum da lógica neocapitalista, o confronto entre Rússia e China, por um lado, e Estados Unidos e Europa ocidental, por outro, havia se transferido cada vez mais para o nível econômico, embora não deixando de se traduzir em tensões locais ocasionais.
Agora, porém, o mundo parece destinado a ser o teatro da radical contraposição entre dois blocos de potências em acirrada luta entre si também no plano político e, potencialmente, no militar. Não é uma perspectiva tranquilizadora. Mas é a que emerge dos últimos acontecimentos.
O que desencadeou a reação em cadeia a que estamos assistindo – não importa o que digam os críticos da Otan e dos Estados Unidos – foi a escolha maluca de Putin de invadir um país vizinho com a pretensão de levá-lo de volta para a órbita russa, como nos “bons velhos tempos” da URSS.
Da mesma forma, é puramente ideológico acusar a Ucrânia de ter se defendido, e os países ocidentais, de a terem ajudado fornecendo-lhe armas para repelir a invasão. Se a paz deve ser autêntica, ela não pode nascer da rendição de um povo à prepotência alheia e da renúncia à própria liberdade. Absolutamente não existe uma guerra justa, o Papa Francisco tem razão, mas dentro daquelas, todas injustas, a que assistimos, é possível distinguir o papel de quem agride e de quem, agredido, defende legitimamente as próprias casas e as próprias famílias.
Esse foi o início. Mas o conflito, como contam os acontecimentos dos últimos dias, já está tomando um rumo diferente, expandindo-se para além dos dois protagonistas iniciais – Rússia e Ucrânia – e se transformando em um confronto mundial mascarado.
Pressionado pelo entusiasmo oratório e diplomático do presidente Zelensky, que obsessivamente o acusou de não fazer o suficiente para apoiar o seu país, o Ocidente tem assumido cada vez mais a atitude de protagonista direto do confronto. Ainda não envolveu diretamente as suas tropas, mas o tipo de apoio que ele já dá à Ucrânia não é mais apenas puramente defensivo, como no início.
Nesse contexto, além das palavras, o objetivo dos adversários explícitos e mascarados certamente não é a paz. Não é esse o objetivo de Putin, que depois de ter subestimado descaradamente as capacidades de reação do corajoso povo ucraniano, agora se vê não podendo parar uma guerra, enfrentada até agora pelos comandos militares russos com incrível incompetência e superficialidade, sem justificá-la com algum resultado positivo.
No entanto, também não é o de Zelensky, que habilmente espetacularizou o conflito e que, nos seus pedidos de negociação, sempre manteve uma atitude provocativa bem pouco apta a favorecer o diálogo. Não é o da Otan, que, ao convidar o ministro das Relações Exteriores ucraniano a participar do seu Conselho, certamente não contribui para tranquilizar Putin quanto à futura neutralidade da Ucrânia.
E não é o dos Estados Unidos, que, pela boca do presidente Biden, sistematicamente congelaram toda perspectiva mesmo que tímida de distensão, com declarações tão violentas e agressivas a ponto de fazer a própria diplomacia estadunidense intervir para tentar suavizá-las. O objetivo declarado perseguido tanto com medidas políticas quanto com sanções econômicas, cada vez mais exasperadas, já é o de “isolar a Rússia do cenário internacional”, fazendo-a reconhecer que se reduziu ao papel de “pária”, como disse Biden.
O cerco diplomático e econômico deve, nas intenções, levar os russos a se rebelarem contra o seu primeiro-ministro e a destituí-lo. As declarações de Biden vão nesse sentido, nas quais ele chegou a questionar a legitimidade do governo de Moscou. Vai nesse sentido o pedido de submeter Putin a um processo no Tribunal Penal Internacional (que, aliás, nem a Rússia nem os Estados Unidos jamais reconheceram!), senão até, como Zelensky propôs à ONU, instituindo um novo tribunal semelhante ao de Nuremberg que julgou os crimes nazistas.
Tudo isso, infelizmente, não leva em conta o fato de que um povo atacado e cercado se compacta e se torna mais unido no apoio ao seu líder, como confirmam as pesquisas independentes que indicam, contra as expectativas do Ocidente, um crescente consenso dos russos em relação a Putin. É emblemático o posicionamento no Instagram dos mais populares influenciadores russos contra as sanções e a favor do seu presidente.
De qualquer forma, a história nos ensina inequivocamente que, mesmo que o objetivo da vitória do Ocidente fosse plausível, uma grande nação derrotada e humilhada torna-se extremamente perigosa (veja-se a insurgência do nazismo na Alemanha que saiu com os ossos quebrados da paz de Versalhes...). Especialmente quando dispõe de ogivas nucleares. A “nova ordem mundial”, assim, corre o risco de ser a do ódio e do medo.
Além disso, parece que a Europa também está se preparando para essa perspectiva, e não para a paz, com a retomada de uma frenética corrida armamentista que parecia ter desacelerado nas últimas décadas e que está levando até a Alemanha a se rearmar, despertando antigos fantasmas naqueles que têm um pouco de memória.
Diante desses cenários inquietantes, vêm à mente as palavras do Papa Francisco: “Uma guerra sempre, sempre é a derrota da humanidade”. Esta certamente é. Há quem, como Putin, absolutamente não esconda que quer continuá-la até alcançar os seus objetivos a qualquer preço. Mas mesmo aqueles que dizem que querem o seu fim talvez devam ser mais coerentes em se comportar de acordo. Na esperança de conseguir evitar o nascimento de uma “nova ordem mundial” baseada no ódio.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Uma nova ordem mundial. Artigo de Giuseppe Savagone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU