29 Março 2022
Olhando para o quadro atual, entende-se o sofrimento do papa: governos agressores e governos agredidos, no entanto, se enquadram em uma lógica que é a da guerra, travada ou pelo menos aceita como um preço pelos seus próprios objetivos, ignorando as reais exigências dos seus respectivos povos.
A opinião é de Giuseppe Savagone, diretor do Escritório para a Pastoral da Cultura da Arquidiocese de Palermo, na Itália. O artigo foi publicado em Settimana News, 27-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O duro posicionamento do Papa Francisco contra os Estados, incluindo a Itália, que, em resposta ao conflito russo-ucraniano, anunciaram a sua intenção de gastar 2% do PIB na compra de armas não foi noticiado em primeira página pela maioria dos grandes jornais italianos, provavelmente porque o acharam embaraçoso.
“Eu senti vergonha quando li que um grupo de Estados se comprometeram a gastar dois por cento, creio eu, ou dois por mil do PIB na aquisição de armas, como resposta ao que está ocorrendo agora. Loucura!”, disse o pontífice, recebendo em audiência os participantes de um congresso do Centro Feminino Italiano.
“A verdadeira resposta não são mais armas, mais sanções, mais alianças político-militares, mas outra abordagem. Estou falando de um modo diferente de governar o mundo, não mostrando os dentes.”
Um modo, especificou, que não seja “fruto da velha lógica de poder que ainda domina a chamada geopolítica” – que é o “poder econômico-tecnocrático-militar” –, com base no qual “o mundo continua sendo governado como um ‘tabuleiro’, em que os poderosos estudam os movimentos para estender o seu predomínio em detrimento dos outros”.
Palavras decisivamente contra a corrente, em comparação com a linha da maioria dos Estados, incluindo o italiano.
Há poucos dias, a Câmara italiana aprovou com grande maioria a agenda proposta pela Liga que obriga o governo a elevar os gastos militares de 1,5% para 2% do PIB (ou seja, de 25 bilhões para 38 bilhões de euros por ano) até 2024. Palavras que certamente não correspondem aos cânones do “politicamente correto”, mas, talvez, justamente por isso, nos obrigam a nos fazer algumas perguntas, em um momento em que parece que a corrida a “mostrar os dentes”, como diz o papa, não ofereça mais tempo para fazer isso.
O ponto de vista de Francisco é melhor compreendido à luz do que ele disse, há poucos dias, ao falar a uma associação de voluntariado que atua para combater a sede no mundo, especialmente na África:
“Por que não unir as nossas forças e os nossos recursos para combater juntos as verdadeiras batalhas da civilização: a luta contra a fome e contra a sede, a luta contra as doenças e as epidemias, a luta contra a pobreza e a escravidão de hoje? Por quê? Certas escolhas não são neutras: destinar grande parte dos recursos às armas significa tirá-los de outras coisas, o que significa continuar tirando-os, mais uma vez, de quem não tem o necessário (...). Quanto se gasta em armas! É terrível! (…). Gastar com armas suja a alma, suja o coração, suja a humanidade.”
Não se trata, aqui, de colocar todos no mesmo patamar, mantendo uma absurda equidistância entre quem desencadeia a guerra e quem a sofre por ser agredido, como gostaria um certo pacifismo hoje bastante difundido. Também não se trata de pôr em discussão o direito da Ucrânia de se defender de uma invasão que ameaça a sua liberdade e que está provocando ao seu povo imensos sofrimentos humanos e espantosas destruições materiais.
Não parece que o papa, no telefonema de solidariedade a Zelensky alguns dias atrás, tenha pedido que ele se rendesse aos russos. Além disso, as palavras do pontífice nem sequer diziam respeito à conveniência ou não de enviar armas ao governo ucraniano, para permitir-lhe resistir – como está fazendo – a um exército inimigo numericamente superior.
A rejeição explícita de Francisco à ideia de uma “guerra justa” – “uma guerra sempre, sempre é a derrota da humanidade. Não existem guerras justas, não existem” – também deve ser sopesada com o seu pedido à comunidade internacional para intervir para impedir o massacre de civis no Iraque e na Síria, em 2014: “Onde houver uma agressão injusta, eu só posso dizer que é lícito frear o agressor injusto – sublinho o verbo, digo ‘parar’, não bombardear ou fazer guerra”.
E reiterou: “Frear a agressão injusta é lícito. Mas devemos ter memória também: quantas vezes, sob essa desculpa de frear o agressor injusto, as potências se apossaram dos povos e travaram uma grande guerra de conquista?”. Onde parece se manifestar a exigência de uma intervenção, que não haja, porém, uma nova guerra de conquista mascarada.
Também vai nesse sentido a declaração do secretário de Estado, o cardeal Parolin, que (supostamente sem querer contradizer a linha do papa), em uma entrevista recente ao semanário católico espanhol Vida Nueva, ao ser questionado sobre a legitimidade do envio de armas à Ucrânia, respondeu: “O uso das armas nunca é algo desejável. No entanto, o direito a defender a própria vida, o próprio povo e o próprio país também envolve, às vezes, o triste recurso às armas”.
No entanto, estamos no terreno das hipóteses. À espera de mais elementos sobre esse ponto, devemos, no entanto, lidar com a crítica radical e explícita do Papa Francisco à guerra como método de resolução dos conflitos internacionais e à corrida armamentista em curso como uma inevitável consequência dessa abordagem.
É evidente que o destinatário final dessa crítica é o governo russo, que desencadeou o conflito. No entanto, ela se dirige imediatamente à resposta dada pelo mundo ocidental a essa provocação, uma resposta que não se inspirou na rejeição decisiva da guerra, mas, pelo contrário, está apostando no reforço dos arsenais.
É difícil negar que há elementos que dão razão a Francisco. Porque, mesmo sem diminuir em uma vírgula a preponderante responsabilidade de Putin, os outros países também não são totalmente inocentes.
Em primeiro lugar, não são inocentes os países da Otan – em primeiro lugar os Estados Unidos –, que obstinadamente se recusaram a dar ao chefe do Kremlin a garantia de que a Ucrânia não passaria a fazer parte da Aliança Atlântica.
Alguém objetará que isso significaria prevaricar do direito de um país livre de fazer as suas escolhas diplomáticas e militares. Mas, em 1962 – após a fracassada invasão da Baía dos Porcos, ocorrida no ano anterior –, quando Cuba pediu à URSS que a equipasse com mísseis nucleares para defender a sua independência, e o presidente dos Estados Unidos, J. F. Kennedy, impôs um bloqueio naval para impedir a chegada desses armamentos, que ele considerava uma ameaça, o primeiro-ministro russo, N. Khrushchev, aceitou fazer com que os seus navios retornassem, sob a garantia de que a tentativa de invasão da ilha não se repetiria.
Quando o destino do mundo está em jogo, é preciso negociar. Foi isso que o presidente Biden não fez diante da ameaça russa, apesar de ser o único absolutamente certo de que a guerra, na ausência de um compromisso seu com a neutralidade da Ucrânia (equivalente à renúncia de Khrushchev de armar Cuba com mísseis), iria inevitavelmente explodir.
Por que ele não fez nada para impedir? Pode-se argumentar também que Putin não teria desistido da invasão por causa disso, movido pelo sonho de reconstituir o antigo sistema de poder da Rússia soviética. Mas os Estados Unidos fariam o possível para evitá-lo. Em vez disso, não levantaram um dedo.
Voltam à mente as palavras de Francisco sobre a política gerida pelos grandes como um grande jogo de xadrez para afirmar seu próprio predomínio. Talvez agitando a bandeira de grandes valores éticos a serem defendidos...
A linha do presidente Zelensky também não está a salvo de perplexidades legítimas. Ninguém pode questionar a sua coragem e a sua capacidade de se colocar como símbolo e porta-voz, em nível internacional, do seu povo martirizado.
Mas, nesses seus dois anos de presidência, é inegável a sua tolerância com as formações neonazistas, das quais, por exemplo, o batalhão Azov é uma expressão, e que têm amplas infiltrações também no Exército regular.
Assim como foi inegável a política de repressão das províncias russófonas do Donbass, segundo algumas fontes confiada precisamente a esses nacionalistas extremistas. Sobre tudo isso, talvez tivesse sido oportuno pedir a Zelensky que desse garantias, ainda antes da eclosão do conflito, mas também depois, em vez de apoiá-lo incondicionalmente, sustentando a sua capacidade de se impor, como ator consumado, no palco dos parlamentos ocidentais.
Ainda em relação ao presidente ucraniano, também não é tranquilizadora a sua contínua insistência ao pedir um compromisso cada vez maior da Otan, incluindo uma no-fly zone, que, como repetidamente tentou se explicar, envolveria o sério risco de uma terceira guerra mundial. Mas Zelensky dá a impressão de que considera essa hipótese um “dano colateral” aceitável, a fim de vencer a sua guerra.
Porque ele falou repetidamente de vitória, e talvez não apenas para elevar a moral dos seus soldados, se é verdade que algumas das suas propostas de negociação também foram formuladas misturando-as com ameaças inoportunas contra a Rússia, que as fizeram parecer um pouco como provocações e que certamente não eram adequadas para criar o clima certo para um encontro.
Tudo isso não diminui em nada a responsabilidade fundamental de Putin: os erros e as limitações dos outros não podem nos fazer esquecer que foi ele quem quis esta guerra. Tampouco podemos perder de vista o drama de três milhões de ucranianos forçados a fugir e reduzidos ao desespero pelos sonhos de grandeza do ditador russo.
Mas, olhando para o quadro que traçamos, entende-se o sofrimento do papa: governos agressores e governos agredidos, no entanto, se enquadram em uma lógica que é a da guerra, travada ou pelo menos aceita como um preço pelos seus próprios objetivos, ignorando as reais exigências dos seus respectivos povos.
E os de uma humanidade sofredora, que precisaria de outras coisas bem diferentes, e não de conflitos e da corrida a obter armas para combatê-los.
Mas essa é uma mensagem que ninguém quer ouvir e que, por isso, não foi posta nas primeiras páginas.
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Francisco e a corrida armamentista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU