11 Janeiro 2022
A experiência fundamental sobre a qual o filme “Não olhe para cima” se desenrola é a descoberta da iminência da morte e a reação diante dela. Assim como a cultura é o espelho da nossa realidade humana, é ainda mais importante tentar nos olharmos nesse espelho.
O comentário é de Giuseppe Savagone, diretor do Escritório para a Pastoral da Cultura da Arquidiocese de Palermo, na Itália. O artigo foi publicado originalmente no sítio da arquidiocese e republicado por Settimana News, 09-01-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nos últimos anos, não me lembro de que se tenha falado tanto de uma obra cinematográfica, nos nossos jornais e na internet, quanto do recentíssimo “Não olhe para cima”, do diretor Adam McKay, considerado por muitos como “o filme do ano”. É significativo que isso ocorra bem no meio de uma pandemia, na qual pareceria haver outras coisas em que pensar.
Pode ser interessante se perguntar o porquê desse curioso fenômeno cultural. Mas, assim como a cultura é o espelho da nossa realidade humana, é ainda mais importante tentar nos olharmos nesse espelho. Sem falar do fim, que deixo à descoberta de quem ainda não viu o filme, relembro aqui a trama brevemente.
Uma jovem doutoranda, Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence), que trabalha em um observatório astronômico de Michigan com o Prof. Randall Mindy (Leonardo DiCaprio), descobre no telescópio um cometa que, pelos cálculos, está se dirigindo para a Terra e, dentro de cerca de seis meses, o atingirá, causando a destruição da humanidade inteira.
Os dois cientistas correm para dar a notícia às autoridades. Mas, quando, finalmente, são recebidos na Casa Branca, a presidente, Janie Orlean (Meryl Streep), os despede rapidamente, absorta por um escândalo sexual que a envolve e pelas suas repercussões sobre as eleições de meio de mandato.
O Prof. Mindy e Kate, então, para alertar o mundo, se voltam para os meios de comunicação, participando de um programa televisivo de entretenimento muito assistido, cujos apresentadores e cujo público, porém, se revelam muito mais interessados, durante a transmissão, na tempestade sentimental entre uma famosa cantora e um DJ.
Enquanto isso, porém, a presidente, para distrair a opinião pública do seu escândalo privado, tem a ideia de relançar e divulgar a notícia. Um projeto é elaborado para desviar o cometa, atingindo-o com uma frota de mísseis nucleares.
A operação, porém, é cancelada no último minuto, quando o empresário Peter Isherwell (Mark Rylance) – bilionário fundador e diretor de uma empresa de alta tecnologia e um dos principais financiadores da presidente –, descobre que o núcleo do cometa é riquíssimo em materiais raros e preciosos. Daí sua proposta, imediatamente aceita por Orlean, de seguir outra estratégia, estilhaçando o corpo celeste e fazendo com que seus fragmentos caiam sobre a Terra para explorá-los. As perplexidades do Prof. Mindy e dos outros cientistas são ignoradas, e as objeções são rapidamente silenciadas.
Agora que foi informada pelos meios de comunicação, a opinião pública se divide entre negacionistas, que consideram o cometa como uma invenção do poder, utilitaristas que olham com esperança para as vantagens econômicas prospectadas por Isherwell, e políticos, como a presidente e sua comitiva, que se interessam apenas pelos efeitos midiáticos e eleitorais da operação.
Nessa frenética onda de reações, ninguém parece se preocupar com o perigo mortal que paira sobre a humanidade. Prefere-se não pensar. Fazem-se negócios, tecem-se relações sexuais, fazem-se planos, como se nada estivesse acontecendo. O cometa já está agora tão perto a ponto de ser visível a olho nu, belíssimo e assustador, mas o slogan é o de “não olhar para cima”.
Paro por aqui. Afinal, essa rápida síntese é suficiente para dar uma ideia do conteúdo do filme e para tentar responder às perguntas a partir das quais começamos: por que ele está tendo tanta ressonância neste momento? E em que sentido ele pode refletir a nossa situação atual?
As interpretações que foram dadas ao filme são diferentes. “Uma comédia do absurdo para falar da pandemia e das mudanças climáticas” é o subtítulo de uma resenha online assinada por Letizia Rogouno. Segundo essa leitura, “McKay constrói uma comédia do absurdo sob a insígnia do black humour, para sublinhar as fragilidades do governo estadunidense em situações de emergência”, colocando na berlinda “quem sempre negou a existência da Covid durante esta pandemia ou que ignora o desastre das mudanças climáticas em curso”.
“‘Não olhe para cima’, o anticapitalismo que desperta as consciências” é o título da resenha de Alice Franchi no jornal Il Fatto Quotidiano. Segundo a autora, “o inimigo no filme, de fato, é um só: o capitalismo”, em particular pelas suas responsabilidades na crise ambiental e climática. Uma leitura que também tem amplo espaço em muitos outros comentários, segundo a qual o verdadeiro objetivo do diretor é a denúncia dessa crise.
“‘Não olhe para cima’, um filme que enfrenta o negacionismo da ciência” é o título de uma resenha de Rebecca Oppenheimer na revista Le Scienze, segundo a qual o objetivo da sátira corrosiva do filme seria “o modo pelo qual muitas vezes os resultados científicos e os cientistas que os descobrem são rejeitados”. Trata-se de uma tese que parece ser confirmada pelo próprio Leonardo DiCaprio, que também fala de uma crítica “ao modo como os resultados científicos e os cientistas que os descobrem são muitas vezes rejeitados”.
Por sua vez, outras pessoas viram no filme a dificuldade dos cientistas de encontrarem uma linguagem verdadeiramente comunicativa, ressaltando o constrangimento do Prof. Mindy e o excessivo nervosismo de Kate, quando, na sala de televisão que os hospeda, têm de informar o grande público sobre o problema, fracassando miseravelmente na sua tentativa de sensibilizar os telespectadores.
Todas essas leituras, sem dúvida, têm um certo fundamento e devem ser levadas em consideração em uma visão de conjunto. Em particular, aquelas que se referem ao negacionismo e à relação da opinião pública com a ciência certamente interceptam problemas muito atuais em tempos de pandemia.
No entanto, nessas interpretações, falta a referência à experiência fundamental sobre a qual o filme se desenrola, que é a descoberta da iminência da morte e a reação diante dela. E, além disso, se “Não olhe para cima” fosse apenas uma crítica à sociedade estadunidense, à política e à economia capitalistas, ao estilo dos meios de comunicação, teriam razão os críticos – pelo menos tão numerosos quanto os admiradores – que sublinham a falta de originalidade e o caráter genérico de uma denúncia já feita várias vezes pelo cinema. Sem falar que um filme pelo qual os dois protagonistas receberam respectivamente 30 milhões de dólares (Di Caprio) e 25 milhões de dólares (Lawrence) teria muito pouca credibilidade como crítica social.
A questão é que talvez o diretor – consciente ou inconscientemente (as obras muitas vezes contêm mais do que o que os seus criadores pretendiam dizer) – evidenciou justamente a relatividade de todo esse conjunto de fatores particulares da vida, sublinhando a sua futilidade diante da perspectiva de um fim que irá arrastá-los inexoravelmente ao nada. E é precisamente essa relatividade que os personagens do filme – políticos, apresentadores de televisão, financistas, homens e mulheres comuns – não querem ver.
Por isso, negam a iminência da catástrofe, ou minimizam os seus efeitos, ou tentam encaixá-la nos seus esquemas, calculando as suas possíveis vantagens estratégicas e econômicas. Por isso, tentam se entorpecer com sexo ou drogas, ou simplesmente se envolver com seus pequenos problemas cotidianos. No navio que afunda, preferem se concentrar na manutenção dos serviços de bordo.
O sentido do filme não é tanto uma crítica da sociedade, mas sim uma reflexão existencial. Desviar o olhar do cometa, manter o olhar bem fixo nas “coisas da vida”, deixando-se absorver pela rotina diária como se não se fosse morrer é a condição para escapar do absurdo da “vida” que afunda no nada. Para exorcizar o medo.
Talvez isso explique por que, em um tempo como o nosso, em que a crise climática, mas sobretudo a pandemia, ameaça a sobrevivência de todos e de cada um, o filme foi percebido na sua extrema atualidade.
Na realidade, o problema não surge apenas hoje. Há alguns séculos, um pensador muito perspicaz, Blaise Pascal, identificou na “diversão” (do latim de-verere, “voltar a atenção para outro lugar”) a reação dos seres humanos diante do problema da morte. “O homem quer ser feliz (…). Para fazer isso bem, deveria se tornar imortal; mas, como não pode, decidiu não pensar nisso”.
Daí, diz Pascal, a corrida frenética com que – já naquele tempo! – as pessoas se esforçam para exorcizar a única certeza da sua vida, isto é, a de que morrerão. “Assim se explica por que o jogo, a conversa das mulheres, a guerra, os grandes cargos são tão procurados. Não que haja efetivamente felicidade nessas coisas, nem que se pense que a verdadeira bem-aventurança consiste em possuir o dinheiro que se pode ganhar no jogo, ou na caça de uma lebre; se essas coisas nos fossem oferecidas, não as quereríamos”.
O nosso problema é fugir do pensamento da morte: “Nós – escreve o filósofo francês – não buscamos nem o gozo (...), nem os perigos da guerra, nem a preocupação dos cargos, mas buscamos justamente o tumulto que nos desvia de pensar nisso e nos distrai. Essa é a razão pela qual se desfruta mais da caça do que da presa”.
Os personagens do filme de McKay estão todos em busca de algo que os distraia do cometa, seja ela a metáfora do desastre ecológico ou, mais imediatamente, da pandemia. Não querem levantar o olhar “para cima”, para além do nível dos pequenos problemas e dos pequenos interesses da sua cotidianidade, porque isso os deixaria expostos ao medo da morte.
E talvez um indício dessa “fuga” também seja o fato de que a esmagadora maioria dos comentários a “Não olhe para cima” se concentrou na sua denúncia dos desserviços a bordo do navio e não focou a essência da mensagem, ou seja, que o navio estava afundando.
No entanto, justamente elevando os olhos, se poderia descobrir que a nossa finitude, finalmente compreendida e aceita, abre espaço para Algo ou Alguém que a supera.
Quem já viu o filme sabe que essa perspectiva está presente no fim. E que precisamente a partir dela também pode surgir uma relação mais autêntica entre as pessoas. É um sinal de esperança frágil, mas autêntico, para quem é capaz de elevar o olhar.
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“Não olhe para cima”, um filme que talvez seja um espelho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU