23 Mai 2022
“Nosso mundo do futuro não tem motivo para ser um em que a geopolítica se imponha a tudo e os países (ou blocos regionais) reduzam suas interações econômicas. Se esse cenário distópico se tornar realidade, não será por causa de forças sistêmicas fora de nosso controle. Assim como a hiperglobalização, será porque não soubemos tomar as decisões corretas”, escreve Dani Rodrik, economista turco e professor da Fundação Ford de Economia Política Internacional, na Escola de Governo John F. Kennedy, da Universidade Harvard, em artigo publicado pelo grupo editorial espanhol Política Exterior, 19-05-2022. A tradução é do Cepat.
Hoje, há consenso de que a era de hiperglobalização posterior aos anos 1990 chegou a seu fim. A pandemia de Covid-19 e a guerra da Rússia contra a Ucrânia relegaram os mercados globais a um nível secundário e, na melhor das hipóteses, a um papel de apoio aos objetivos nacionais, em particular a saúde pública e a segurança nacional. Mas todo o debate em torno da desglobalização não deveria nos cegar para a possibilidade de que a crise atual possa, de fato, produzir uma globalização melhor.
A verdade é que a hiperglobalização já estava em retrocesso desde a crise financeira global de 2007-08. A participação do comércio no PIB mundial começou a cair após 2007, quando a proporção das exportações em relação ao PIB da China caiu notáveis 16 pontos percentuais. As cadeias de valor globais pararam de se expandir. Os fluxos internacionais de capital nunca recuperaram seus níveis anteriores a 2007. E nas economias avançadas, os populistas abertamente hostis à globalização se tornaram muito mais influentes.
A hiperglobalização começou a se fragmentar devido às suas próprias contradições. A primeira foi a tensão entre os ganhos derivados da especialização e os derivados da diversificação produtiva. O princípio da vantagem competitiva sustentava que os países deveriam se especializar naquilo que produziam bem. Mas uma longa linha de pensamento desenvolvimentista sugeria que, em vez disso, os governos deveriam estimular suas economias a produzir o que os países mais ricos produziam. O resultado foi um conflito entre as políticas intervencionistas dos países mais bem-sucedidos, com destaque para a China, e os princípios “liberais” consagrados no sistema de comércio mundial.
A segunda tensão é que a hiperglobalização exacerbou os problemas de distribuição em muitas economias. O reverso inevitável dos ganhos derivados do comércio foi a redistribuição da renda dos perdedores para os vencedores. E, conforme a globalização se aprofundava, essa redistribuição crescia cada vez mais em relação aos ganhos líquidos. Economistas e tecnocratas que menosprezavam a lógica central de suas disciplinas acabaram minando a confiança pública nelas.
Em terceiro lugar, a hiperglobalização afetou negativamente a prestação de contas dos servidores públicos a seus eleitores. Os chamados a reformular as regras da globalização receberam como resposta que ela é imutável e irresistível, “o equivalente a uma força da natureza, como o vento ou a água”, nas palavras do presidente estadunidense Bill Clinton. Aos que questionavam o sistema então predominante, o primeiro-ministro britânico Tony Blair respondia que “seria equivalente a debater se o outono vem depois do verão”.
Quarto, a lógica de soma zero da segurança nacional e da concorrência geopolítica demonstrou ser incompatível com a lógica de soma positiva da cooperação econômica internacional. Com a ascensão da China como rival geopolítica dos Estados Unidos e a invasão russa da Ucrânia, a concorrência estratégica se reafirmou sobre a economia.
Após o colapso da hiperglobalização, há uma ampla gama de cenários possíveis para a economia mundial. O pior, que lembra os anos 1930, seria a retirada de países (ou grupos de países) à autarquia. Uma possibilidade menos ruim, mas ainda pouco desejável, é que a supremacia da geopolítica faça com que as guerras comerciais e as sanções econômicas se tornem traços permanentes do comércio e as finanças internacionais. O primeiro cenário parece improvável – a economia mundial está mais interdependente do que nunca e os custos econômicos seriam imensos –, mas não se pode descartar completamente o segundo.
No entanto, também é possível vislumbrar um bom cenário em que alcancemos um equilíbrio melhor entre as prerrogativas do Estado-nação e as precondições de uma economia aberta. Um reequilíbrio assim poderia possibilitar uma prosperidade inclusiva dentro dos países, e paz e segurança no exterior.
O primeiro passo nessa direção é que as autoridades reparem os danos infligidos às economias e sociedades pela hiperglobalização, juntamente com outras políticas de priorização do mercado. Para isso, será necessário ressuscitar o espírito da era Bretton Woods, quando a economia global servia aos objetivos econômicos e sociais das nações, não o contrário. Sob a hiperglobalização, as autoridades inverteram essa lógica, tornando a economia global o fim e as sociedades nacionais o meio. A integração internacional levou, então, à desintegração interna.
Alguns poderiam ficar preocupados que a ênfase nos objetivos socioeconômicos internos afete negativamente a abertura econômica. Na realidade, a prosperidade comum torna as sociedades mais seguras e mais propensas a promover a abertura ao mundo. Uma lição fundamental da teoria econômica é que o comércio beneficia um país como um todo, mas apenas se paralelamente ocorre um processo distributivo. Ser abertos beneficia aos países bem administrados e ordenados. Essa é também a lição do sistema de Bretton Woods, sob o qual aumentaram significativamente o comércio e o investimento de longo prazo.
Uma segunda precondição importante para o bom cenário é que os países não transformem sua busca legítima de segurança nacional em agressão a outros. É possível que a Rússia tenha tido preocupações razoáveis acerca da ampliação da OTAN, mas sua guerra contra a Ucrânia é uma resposta completamente desproporcional, que possivelmente a deixe menos segura e menos próspera a longo prazo.
Para as grandes potências, e os Estados Unidos em particular, isso significa reconhecer a multipolaridade e abandonar sua busca pela supremacia mundial. Os Estados Unidos tendem a ver seu domínio em assuntos internacionais como o estado natural das coisas. Deste ponto de vista, os avanços tecnológicos e econômicos da China constituem uma ameaça óbvia e inerente, motivo pelo qual a relação bilateral fica reduzida a um jogo de soma zero.
Deixando de lado a questão de se os Estados Unidos podem realmente evitar a ascensão relativa da China, essa maneira de ver as coisas é tanto perigosa como improdutiva. Por um lado, exacerba o dilema da segurança: é provável que as medidas estadunidenses destinadas a minar empresas chinesas como a Huawei façam com que a China se sinta ameaçada e responda de maneira que confirmem os temores estadunidenses em relação ao expansionismo chinês. Uma perspectiva de soma zero como essa também dificulta os ganhos comuns da cooperação em áreas como as mudanças climáticas e a saúde pública global, ao mesmo tempo em que assume que necessariamente competição haverá concorrência em muitos outros âmbitos.
Em suma, nosso mundo do futuro não tem motivo para ser um em que a geopolítica se imponha a tudo e os países (ou blocos regionais) reduzam suas interações econômicas. Se esse cenário distópico se tornar realidade, não será por causa de forças sistêmicas fora de nosso controle. Assim como a hiperglobalização, será porque não soubemos tomar as decisões corretas.
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Das cinzas da hiperglobalização pode surgir uma globalização melhor. Artigo de Dani Rodrik - Instituto Humanitas Unisinos - IHU