14 Outubro 2022
"A negociação deve ser colocada no centro das possibilidades e torná-la a oportunidade de última instância", adverte o cientista político italiano Mario Giro, professor de Relações Internacionais na Universidade para Estrangeiros de Perúgia, na Itália, em artigo publicado por Domani, 11-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
As nuvens da guerra nuclear estão se adensando. Fala-se demais e muito despreocupadamente: estamos nos acostumando a essa eventualidade sem entender que o uso de arma atômica nos faria entrar em outro mundo, abriria uma porta que nunca foi aberta depois de Hiroshima. As potências nucleares não pensam em paz e guerra como outros países: para elas não é uma questão de razões ou princípios ou mesmo de vitória, mas de sobrevivência (de uma classe dominante, de um estado) mesmo à custa da destruição total. Isso diz respeito à Europa, que no atual conflito coube-lhe estar no meio.
É a principal razão pela qual estão mudando lentamente de posição em Washington. Joe Biden fala de "armagedom"; o secretário de Estado, Antony Blinken, um dos falcões do governo, pela primeira vez espera negociações.
Mesmo as notícias dadas pela inteligência estadunidense sobre o atentado a Alexandr Dugin, onde sua filha Darya Dugina perdeu a vida, que apontam para responsabilidades ucranianas, são um sinal a ser considerado.
É como se os EUA estivessem dizendo a Volodymyr Zelensky e seus seguidores que existem limites que não devem ser ultrapassados, como ações em solo russo.
Já vemos a reação ao ataque à ponte do Estreito de Kerch.
As eleições de meio de mandato nos Estados Unidos também estão se aproximando, e os democratas não querem ficar vulneráveis se os republicanos retomarem o controle do Senado, como muitos analistas preveem.
Donald Trump declarou repetidamente sua oposição ao conflito e pode-se prognosticar que ele criaria obstáculos a qualquer fornecimento adicional de armas e tecnologia militar a Kiev. Os EUA estão paradoxalmente convergindo com os chineses e indianos que manifestaram aos russos sua contrariedade durante a cúpula do grupo de Xangai em Samarcanda. Após o sucesso do acordo do trigo, a Turquia também está pressionando por novas negociações.
Em Praga, durante a primeira reunião da comunidade política europeia, o presidente Zelensky pediu aos 44 chefes de governo europeus que "punissem a Rússia". Em outra oportunidade, ele havia sugerido um ataque preventivo para parar o poderio nuclear de Moscou. É demais e a Europa se divide sobre isso.
Se todos apoiam a resistência ucraniana, boa parte não acha que a narrativa da vitória seja o caminho certo.
Apenas poloneses, bálticos, nórdicos e britânicos parecem seguir a opção da guerra até o fim. Os outros temem mais o caos de uma Rússia aos pedaços ou de líderes piores do que os atuais. Mas, acima de tudo, não se quer correr o risco de um ataque nuclear. As posições de princípio se fragmentam e avança lentamente a hipótese da negociação.
Ninguém – nem mesmo os estadunidenses – quer ser enredado por uma lógica de guerra sem saída, nem ficar refém de uma situação sem margem de manobra.
Dizer que não se irá negociar, ou que só será feito quando os russos abandonarem os territórios ocupados (mesmo aqueles tomados em 2014? Também a Crimeia?), ou apenas com uma nova liderança russa ou algo parecido, parece mais como uma armadilha autoinfligida.
Alguns pensam que teria sido melhor reagir bem antes com as armas contra esta Rússia: hoje seria menos agressiva.
O inverso também pode ser verdade: uma liderança russa belicosa precisa de conflito para se sustentar. Com a guerra permanente, o Ocidente não a está alimentando? Todas essas são questões legítimas, de um lado ou de outro, mas que, no entanto, se tornam obsoletas diante do risco nuclear. Nesse ponto não faz mais sentido falar do passado, dos erros cometidos ou sofridos, das razões de um ou de outro, de quem atacou primeiro, de quem provocou, dos erros da liderança e assim por diante.
Tampouco faz sentido fazer análises geopolíticas ou comparações com outras crises, ou invocar o princípio da conveniência.
Não: tudo isso realmente não tem nada a ver com guerra atômica porque tudo muda com ela.
Esta é a razão do forte apelo do Papa Francisco pedindo uma trégua e negociações imediatas: evitar a escalada.
O Cardeal Matteo Zuppi reforça: diálogo a todo custo para ter paz. Há quem se oponha: que paz? Adicionando toda uma série de condições de princípio. Podem ser perfeitamente justas, mas agora estão fora de lugar: diante do risco de uma guerra nuclear, não há nenhum princípio justo que segure. Só deve ser evitada antes que a caixa de Pandora se abra.
Só a paz conta: diante da bomba atômica, a única vitória é a paz. Causa raiva que o forte e o prepotente (armados com dispositivos nucleares) prevaleçam? Isso não é novidade na história, mas não há outra saída. No início da crise houve quem dissesse que lutar contra uma potência nuclear é diferente de travar uma guerra convencional, antecipando o atual impasse.
Agora chegamos ao impasse e os russos fizeram questão de informar a sua "doutrina": a arma atômica não apenas como dissuasão (ou seja, para ser usada como equilíbrio contra outra potência nuclear), mas também como arma de última instância. Anton Chekhov dizia que se no primeiro ato de uma peça há uma arma pendurada na parede, no segundo ou terceiro ato certamente disparará.
Ninguém pode nos garantir que a Rússia de Putin não a usará: ninguém pode saber onde passa a linha vermelha que distingue a vitória da derrota, a sobrevivência do regime da derrota. Quanto mais for encurralado para puni-lo, mais se arrisca. Não há vitória nesse tipo de guerra: a única possibilidade é uma paz duramente negociada.
Aqueles que argumentam que a negociação seria uma rendição não sabem o que significa negociar. Uma negociação séria é, antes de tudo, um compromisso, no qual – é óbvio – todos abrem mão de algo. Pode-se chegar à mesa com a intenção de não ceder nada, mas algo acaba sendo cedido. A negociação é a única maneira de segurar uma potência nuclear.
Um dos verdadeiros problemas deste nosso tempo é ter deixado perecer o sistema de acordos de desarmamento nuclear, dos quais apenas um permanece em vigor.
O que mais deveria nos alarmar como europeus é que o Tratado sobre a Eliminação de Mísseis de Médio e Curto Alcance na Europa (INF), assinado em 1987 por Reagan e Gorbachev, foi abandonado por ambas as superpotências. Nenhum governo europeu protestou ou pediu explicações, nem mesmo a Washington.
Reclamar hoje que uma potência nuclear, neste caso a Rússia, nos impõe sua vontade com suas ameaças é um pouco tardio.
No entanto, o mais importante a dizer sobre uma negociação é que ela representa um mundo em si, um terreno desconhecido até pelas partes, e que pode reservar muitas surpresas. Enquanto durante uma guerra as partes dão o pior de si, na negociação tudo muda e o contrário pode acontecer. Não se deve desconfiar da negociação, nem a considerar uma rendição ou deminutio: é mais uma terra prometida para as partes que desperta nelas um desejo de futuro.
Do ponto de vista político, a Rússia hoje quer negociar diretamente com os Estados Unidos, por serem considerados seus pares e recuperar o status que tinha com URSS. Não se deve pensar que isso representa um favor: mais importância também significa mais responsabilidade e, portanto, neste caso, mais concessões possíveis.
Resta dizer como chegar à mesa. A negociação deve ser colocada no centro das possibilidades e torná-la a oportunidade de última instância. Em primeiro lugar, os EUA e a Rússia devem começar a dialogar novamente: difícil depois de tanta desconfiança e fake news, mas é o único caminho e é uma questão de vontade política.
Os temas devem ser a guerra, a estratégia de segurança na Europa e a retomada do desarmamento nuclear.
Em segundo lugar, aqueles que apoiaram a Ucrânia com armas e ajuda devem concentrar os seus esforços em pressionar para que as autoridades ucranianas negociem. Diz-se que a negociação não deve passar por cima deles: é por isso que eles também devem estar presentes.
Haverá concessões (incluindo territoriais) a serem feitas? É possível, mas a diplomacia internacional sabe ser criativa nesses casos, para que ninguém apenas saia perdendo. Tal processo não é impossível: basta sair da ideia de punição, que pode se tornar um terrível bumerangue.
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Porque chegou a hora de negociar. Artigo de Mario Giro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU