16 Fevereiro 2023
Rússia fortaleceu a Otan, sua maior inimiga. Europa tornou-se continente anão, rendido aos EUA. Washington já nada comanda, nem tem estratégia para a ordem multipolar. Não há perspectiva de saída e crescem riscos de nova guerra mundial.
A reportagem é de Rafael Poch, jornalista espanhol, autor de livros sobre o fim da URSS, sobre a Rússia de Putin, sobre a China, y um livro coletivo sobre a Alemanha da eurocrise, publicado por CTXT, 26-01-2023, e reproduzida por Outras Palavras, 16-02-2023. A tradução é de Maurício Ayer.
Em breve terá se passado um ano desde o início da invasão russa na Ucrânia e ainda não está claro para nós quem está ganhando essa guerra. Obviamente, no plano humano, é a população ucraniana que mais perde, não só em Kharkov e Kiev mas também em Donetsk, devido à barbárie e ao sofrimento que avulta. Mas, para além desse fato, no plano militar, os avanços e recuos da situação na linha da frente, distorcidos pelas propagandas de ambos os lados, não permitem que se tenha uma imagem clara.
No outono, as forças armadas ucranianas, apadrinhadas pela Otan, tomaram a iniciativa, mas após uma retirada russa, apresentada como “tática” e aparentemente ordenada – pois não deixou prisioneiros –, parece que Moscou está dando as cartas no inverno. Os estrategistas de Putin, que no outono estavam inquietos, mostram-se agora seguros e confiantes em suas forças e capacidade industrial, enquanto na Ucrânia o recrutamento compulsório, com dezenas de milhares de desertores e fugitivos, é tão chocante quanto na Rússia, se não for mais. Mas a situação segue aberta aos vaivéns que já conhecemos.
O mero impacto de um míssil ucraniano/norte-atlântico em Moscou, onde por esses dias estão instalando novas baterias de defesa, seria suficiente para mudar a percepção da situação…
Mas, para além da relativamente confusa crônica militar, há um feito absolutamente claro: o equilíbrio que nos oferece o resultado dessa guerra, quase um ano após seu início, retrata erros colossais de cálculo de todas as partes nela implicadas.
Nessa grande cegueira estratégica generalizada, destaca-se o estrepitoso fracasso da “guerra curta e vitoriosa” que o Kremlin esperava obter com o duplo objetivo de, no plano externo, obter o respeito do Ocidente em relação aos seus “interesses de segurança” e disciplinar seus vizinhos ex-soviéticos da Eurásia no plano externo, além de, dentro de suas fronteiras, consolidar seu regime político.
O Kremlin enterrou a integração da Rússia com a comunidade ocidental. O projeto da “grande Europa” de Lisboa a Vladivostok, que foi sua revindicação histórica bastante razoável desde o fim da Guerra Fria, desmoronou definitivamente. Como disse Dmitri Trenin, “pela primeira vez em sua história, a Rússia não só não tem aliados no Ocidente, como nem mesmo interlocutores capazes de desempenhar o papel de mediadores e tradutores”. Finlândia, Áustria, Irlanda, Suíça… desaparecem os últimos resquícios de neutralidade no continente.
Paralelamente, as relações econômicas da Rússia com o Ocidente se destruíram. As sanções econômicas impostas em 2014 se converteram em uma guerra total econômica, financeira e comercial.
No âmbito da segurança, o propósito de afastar a Otan de suas fronteiras resultou no contrário, no desejo manifesto da Finlândia e da Suécia de ingressar na Aliança, o que abre para uma ampliação de 1.200 quilômetros da fronteira direta com a Otan, assim como um inusitado movimento ocidental de rearmamento. A vontade de desmilitarizar e neutralizar a Ucrânia virou a transformação desse país em uma temível potência militar firmemente orientada contra a Rússia.
A dissuasão nuclear, pela qual a Rússia se esforçou tanto, está se mostrando um fator insuficiente, porque o adversário – e isso é extremamente perigoso – não a leva a sério. Nunca, desde que existem armas nucleares, este fator foi tão banalizado. Nunca se jogou roleta russa com ela, como se faz agora.
Fracasso também, portanto, da “arma energética” que Moscou pensava que frearia a União Europeia e em especial a Alemanha.
A relação especial com a Alemanha, iniciada com a reconciliação pós-guerra, dinamizada durante a Guerra Fria pela Ostpolitik social-democrata e culminada com o sinal verde de Moscou para a reunificação em 1990, morreu. A Alemanha volta a ser um inimigo da Rússia e mais uma vez envia seus tanques ao cenário de sua grande derrota na Segunda Guerra Mundial. Pode ser só o início. Como disse no Twitter Andri Melnyk, ex-embaixador ucraniano em Berlim: “Aleluia!, agora, queridos aliados, formemos uma forte coalizão em matéria de aviação de guerra, para enviar F-16, F-35, Eurofighter e Tornados, Rafale e Gripen, e tudo o que se puder enviar à Ucrânia”.
As “organizações internacionais” controladas pelo Ocidente, como a OSCE [Organização para a Segurança e Cooperação na Europa], ou o organismo internacional para a energia atômica (IAEA), para mencionar apenas dois, unificam sua orientação como instrumentos contra Moscou.
Nenhum dos aliados russos na Organização do Tratado de Segurança Coletiva, exceto a Bielorrússia (e há que entender as condições sob as quais Lukashenko coopera com Putin), se manifestou sobre a intervenção na Ucrânia e preferiram se declarar neutros.
O único capital russo é a atitude dos BRICS e dos não ocidentais em geral, que compreendem que a invasão da Ucrânia é o resultado de responsabilidades compartilhadas e tiram suas próprias conclusões práticas, condenando as agressões mas sem se juntar às sanções.
Há todo um polo em formação interessado no propósito geral russo para corrigir e mudar o marco institucional internacional elaborado durante o pós-guerra mundial, que já não corresponde às realidades do mundo de hoje. Mas, ao lado dos citados fracassos concretos e imediatos, essa é uma vantagem relativa e difusa, que só poderia se concretizar a médio e longo prazo.
Entre 24 de fevereiro e 15 de dezembro, a União Europeia impôs 10.300 sanções à Rússia. Já estão no décimo pacote de sanções. As sanções deveriam servir para que a Rússia perdesse a guerra ou, pelo menos, a guerra energética. A ministra de Relações Exteriores alemã, Annalena Baerbock, disse que seu propósito era “arruinar” a Rússia, e a presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disse que o objetivo era “desmantelar, passo a passo, a capacidade industrial da Rússia”. Mas a economia russa não entrou em colapso. Suas receitas de exportação de hidrocarbonetos aumentaram em 28%. A Europa compra diesel russo da Índia. O caixa que sustenta a guerra de Moscou não se esvaziou. A recessão russa está sendo suave. A economia russa, e talvez também a sociedade, se transforma com grande dinamismo e uma eficácia considerável. A oposição não apareceu e a política de informação parece estar bem azeitada. A guerra pode atuar como uma locomotiva keynesiana. As fábricas de armas trabalham com gás total, os altos soldos dos soldados contratados atraem dezenas de milhares de pobres das regiões mais distantes do país, e os vazios deixados pelo boicote pró-ocidental são cobertos com grande velocidade.
Ao mesmo tempo, os custos da energia na Europa ameaçam expulsar empresas e indústrias europeias para outros lugares, em primeiro lugar para os Estados Unidos, em benefício da reindustrialização desse competidor.
A União Europeia se converteu em subalterna da Otan, onde quem manda são os Estados Unidos. O antigo eixo político europeu fundamental franco-alemão foi substituído pelo eixo político-militar Washington-Londres-Varsóvia-Kiev, que dita qual a linha a seguir. A União Europeia de Maastricht morreu. Perdeu, literalmente, sua orientação e está à deriva no mundo.
A Europa inventou a geopolítica no século XIX mas, como disse o cientista político de Singapura Kishore Mahbubani, “no século XXI esqueceu que a geopolítica se compõe de política e geografia, e parece acreditar que sua geografia e seus interesses em geral coincidem com os dos Estados Unidos”.
Na União Europeia de Von der Leyen, cada vez há menos políticos e mais atores. Não se faz política, mas gestos, declarações e anúncios com poucas consequências. A UE vive no reino da imagem. O discurso da presidenta é tão importante quanto a combinação azul e amarela de seu traje diante do Parlamento Europeu. Os “valores europeus” (o Iluminismo, a divisão de poderes e Beethoven, ou as guerras de religião, o colonialismo e Auschwitz?) e os “direitos humanos” (ou então a sua utilização seletiva por meio da política de direitos humanos?) já não impressionam o mundo não ocidental, farto da hipocrisia e dos padrões duplos.
Como explicou Emmanuel Todd, o mundo é majoritariamente patriarcal e, para a imensa maioria de sua população, o neoconservadorismo russo-ortodoxo em matéria de moral e costumes (pátria, família, religião) é muito mais compreensível que a revolução LGTBQIA+ ocidental. Isso não tem nada a ver com o progresso da civilização que o paulatino mas inexorável avanço universal do papel das mulheres representa em todas as partes, e logo também no sul global, algo que a modernidade e a instrução levam consigo. Isso tem a ver, diz Todd, é com a perda geral de conexão com o mundo real que o neoliberalismo gerou no ocidente, onde o establishment reduz a igualdade a igualdade de gênero e o gênero a uma questão de liberdade de escolha.
Chegamos assim ao principal e mais inquietante enigma. Há um consenso geral de que o grande marco das relações internacionais no momento histórico em que nos cabe viver consta de dois aspectos fundamentais: o relativo declínio da potência ocidental que dominou o mundo nos últimos 200 anos, e a passagem da potência do Ocidente para a Ásia.
As tensões às quais assistimos hoje, na forma de sanções, ação informativa (propaganda) e conflito militar aberto, são consequência direta das ansiedades que esses dois fatores criam nos Estados Unidos, que trabalharam para manter a Europa sob suas rédeas, por meio da Otan, criando as tensões com a Rússia que justificaram a continuidade dessa organização desde o fim da Guerra Fria, há um quarto de século. A guerra da Ucrânia está claramente relacionada com esse contexto geral e oferece sinais importantes em tempo real sobre a correlação de forças global que todo o mundo observa com a máxima atenção. Mas o que importa aqui é como a maior potência mundial reage à situação.
Como observamos alguns anos atrás, os Estados Unidos têm passado a imagem de uma “sociedade aberta” – inclusive da sociedade aberta por excelência; porém, é óbvio que as perguntas essenciais sobre seu comportamento internacional não são colocadas, nem têm a possibilidade de ser colocadas. Por exemplo, a mera hipótese de que o país deixe de ser a “potência número um” no futuro próximo – uma possibilidade que não tem absolutamente nada de extravagante – não só não pode ser colocada, como se configura uma verdadeira heresia: ninguém nos Estados Unidos está disposto a discutir a possibilidade de que o país chegue a ser um “número dois” mundial. A mera vocalização de tal possibilidade, como diz Mahbubani, “seria suicida para qualquer político que a enunciasse”. Os Estados Unidos não têm uma estratégia para o novo mundo do século XXI. Não se prepara para as mudanças que estão em curso, apenas resiste a elas militarmente.
Com a expansão da Otan até as fronteiras da Rússia e as tensões que isso ocasionou, os Estados Unidos conseguiram retomar o controle político-militar da Europa. Estão marcando de perto a Alemanha, e para isso tiveram que explodir mediante atentados os gasodutos pelos quais fluía a sólida relação energética do gigante europeu com a Rússia. Mas a guerra não deveria ser “a continuação da política por outros meios”? Se assim é, então qual é a política que há por trás das guerras dos Estados Unidos?
No Afeganistão, entraram em outubro de 2001 e, três meses depois, até o final de dezembro, já tinham conquistado o objetivo essencial: a ruína do regime talibã e a destruição da Al Qaeda no país, embora sem capturar Bin Laden. Em vez de declarar “missão cumprida” e ir embora em dezembro de 2001, ali permaneceram por 20 anos. E no final tiveram que sair às pressas, diante do retorno dos talibãs. No Iraque, incubaram o Estado Islâmico e abriram espaço para uma influência inusitada de seu principal adversário regional, o Irã, naquele país. Objetivos e atitudes francamente errados, que provocam imensa destruição e mortandade.
Qual é agora o propósito na Ucrânia? Qual é o objetivo? Trata-se de mudar o regime de Moscou? Dissolver a Rússia em vários Estados? Esgotar o país? Tratando-se de uma superpotência nuclear, todos esses objetivos são demenciais. A cegueira estratégica demonstrada no Afeganistão e no Iraque é agora muito mais temerária e catastrófica porque abre uma caixa de Pandora tão imprevisível como preocupante, particularmente para a Europa. E é isso que torna tão atual e candente a necessidade de os Estados Unidos irem embora, de uma vez por todas e definitivamente, da Europa, como deveriam ter feito ao final da Guerra Fria. O fato de que ninguém no Velho Continente exija isso, hoje, constitui parte dessa cegueira coletiva.
Um ano após o início da invasão, assistimos a uma débâcle estratégica geral de todas as partes envolvidas e a uma incerteza total, mas a dos Estados Unidos é, sem dúvida, a principal e a que terá as maiores consequências, porque está nos arrastando para a terceira guerra mundial.
P.S. Quase metade dos europeus é a favor de um fim imediato do conflito ucraniano, inclusive ao custo de perdas territoriais para a Ucrânia. Segundo o Euroactiv, citando uma pesquisa realizada pela Euroskopia, 48% dos residentes dos países da UE apoiaram essa alternativa. Contra esse sacrifício, inclusive ao custo da paz, se pronunciam 32% dos europeus.
A pesquisa foi realizada em nove países da UE. O maior número de partidários de um rápido final para o conflito vive na Áustria: 64% dos entrevistados foram a favor. Entre os alemães, 60% também querem que a luta termine o mais rápido possível. 54% dos habitantes da Grécia, 50% dos cidadãos da Itália, 50% da população da Espanha e 41% dos portugueses gostariam desse mesmo desdobramento. Os menores números de partidários dessa ideia se concentra nos Países Baixos e na Polônia: 27% e 28%.
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Ucrânia: a guerra em que todos fracassaram - Instituto Humanitas Unisinos - IHU