26 Março 2022
Amanhã à tarde, em São Pedro, o Papa Francisco consagrará a Rússia e a Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria para que “cesse a guerra". As devoções religiosas para os crentes são atos de fé. Mas ao longo da história foram também instrumentos políticos, muitas vezes utilizados pelas direitas nacionalistas e populistas, em chave identitária e anticomunista.
Falamos sobre isso com Daniele Menozzi, professor emérito de história contemporânea na Normale di Pisa, autor de um recente livro que reconstrói e analisa a politização de alguns dos cultos mais difundidos entre os séculos XIX e XX (Il potere delle devozioni. Pietà popolare e uso politico dei culti in età contemporanea, “O poder das devoções. Popular piedade e uso político dos cultos da época contemporânea”, em tradução livre, Carocci, pp. 236, euro 24).
A entrevista com Daniele Menozzi é de Luca Kocci, publicada por Manifesto, 24-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Professor Menozzi, qual é o sentido do rito da consagração ao Imaculado Coração de Maria?
Desde a invasão russa do Donbass, a Igreja Católica ucraniana havia pedido a Roma a consagração para impetrar sobre o país proteção celestial. A decisão papal de consagrar a Rússia e a Ucrânia caracteriza o ato religioso de forma diferente: trata-se de obter o fim do conflito. Orar e fazer orar pela paz é um aspecto da linha de Bergoglio sobre esta guerra. É também um ato político.
A escolha de consagrar não apenas a Ucrânia, mas também a Rússia mostra equidistância ou um desejo de não fornecer legitimidade religiosa para a guerra?
Após as prudências diplomáticas dos primeiros dias, Francisco foi claro ao declarar que não existem guerras justas. Não há nenhuma legitimação religiosa da guerra em seu discurso público. Sua linha é outra: denúncia dos efeitos catastróficos do conflito, ativação dos canais diplomáticos para a negociação, promoção da assistência humanitária, solicitação à oração pela paz.
As Igrejas russa e ucraniana estão se movendo nessa mesma direção?
O patriarcado de Moscou assumiu uma posição que lembra a proclamação da guerra santa, neste caso dirigida contra uma modernidade ocidental, cujas liberdades considera antitéticas à lei divina e natural. As igrejas ucranianas - tanto as ortodoxas fiéis a Moscou quanto aquela reconhecida por Constantinopla, bem como a Igreja Católica de rito grego e latino - se alinharam pela guerra justa, fornecendo uma legitimação religiosa para a defesa da integridade do Estado nacional. São atitudes que, historicamente, têm entrelaçado cristianismo e impulsos nacionalistas.
O papa é "tímido" na condenação de Putin?
O papa não pode deixar de se preocupar com a unidade de um mundo católico dividido sobre a atitude a tomar em relação à guerra. Além disso, dado o embate interno à Ortodoxia entre Moscou e Constantinopla, somente Roma está hoje em condições de manter vivo o ecumenismo entre os cristãos. As intervenções públicas de Bergoglio constituem a forma retórica com que o papa hoje pode chegar a expressar uma condenação da guerra sem provocar rupturas entre católicos, evitar o aprofundamento dos conflitos entre cristãos e manter um diálogo diplomático aberto com o Kremlin. O verdadeiro problema é a coerência com o Evangelho de uma atitude ainda assim ditada por razões políticas.
A consagração ao Imaculado Coração de Maria dos Estados não é um ato anacrônico?
Tradicionalmente está ligada ao projeto do catolicismo intransigente de confessionalizar os ordenamentos públicos: representava a revanche católica em relação aos processos de laicização das instituições políticas na época liberal. Francisco proclamou repetidamente que a época em que a Igreja buscou um retorno ao regime de cristandade acabou. A gestão da cerimônia - ritual, discursos, gestos - será um teste decisivo para verificar isso.
Qual tem sido o sentido deste tipo de consagração na história?
A consagração ao Imaculado Coração de Maria assumiu múltiplos significados ao longo do tempo, vinculando-se gradualmente ao nacional-catolicismo salazarista, ao anticomunismo, ao tradicionalismo anticonciliar, ao soberanismo nacional-identitário. Em seus começos, no entanto, representava uma forma de piedade para invocar o fim da grande guerra. Francisco parece atualizar seu sentido inicial.
Existe um "fio vermelho" que uniu o uso político de todas as devoções?
Eu diria o apoio ao mito de uma societas christiana próspera e feliz por ser imune às liberdades subjetivas trazidas pela modernidade. Hoje são propostas novamente, apagando a memória dessa história. Mas é lícito se perguntar se uma retomada desprovida de consciência histórica não esteja inevitavelmente destinada a ressuscitar justamente aquele passado. Uma reativação que as oriente para novas finalidades, sem purificá-las dos resíduos que trazem consigo, é bastante problemática.
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Para pôr um fim à guerra Bergoglio “une” Ucrânia e Rússia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU