22 Março 2022
"Preocupa o aparecimento de opiniões segundo as quais alguma zona de exclusão aérea poderia ser organizada, independentemente do risco de um confronto direto entre a aviação da OTAN e aquela russa. Preocupa o estilo obsessivo que vem aparecendo nas declarações institucionais ou nos meios de comunicação de massa. A estética da guerra, contra a qual o Avvenire alerta. A cegueira de não entender que devemos sair da 'armadilha' bélica", escreve Marco Politi, jornalista, ensaísta italiano e vaticanista, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 21-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Veremos Papa Francisco em Kiev ou Lviv? O novo embaixador ucraniano no Vaticano, Andriy Yurash, o convidou apaixonadamente a "colocar os pés em solo ucraniano". Com Francisco tudo é possível. Se isso fosse acontecer, no entanto, não há dúvida de que o pontífice também reservaria um gesto particular para o povo russo.
Na próxima sexta-feira, o Papa consagrará a Ucrânia e a Rússia ao "Imaculado Coração de Maria". Bergoglio usa a tradição popular sobre as controversas profecias de Fátima como um sacerdote que tira uma antiga vestimenta do armário da sacristia. O que ele realmente quer é lançar uma mensagem atual e urgente: russos e ucranianos não devem cair na espiral do ódio e de um conflito sem fim.
Portanto, o único objetivo compartilhável é construir a paz. Com esforço, com tenacidade, com consciência de todas as questões em jogo, com a aceitação racional de que há interesses a conciliar. Nesse sentido, Francisco intercepta as aspirações e reflexões também de ambientes seculares para os quais não se deve esquecer que o resultado do conflito em curso deve ser a superação da guerra e não a "aniquilação do inimigo".
Ontem novamente o Papa denunciou a "violenta agressão contra a Ucrânia, um massacre sem sentido onde se repetem todos os dias matanças e atrocidades". Os cardeais que ele enviou à Ucrânia nas últimas semanas evidentemente lhe transmitiram informações em primeira mão. “Não há justificativa para isso!”, exclamou. Concluindo com o que ele volta a reiterar: "Peço a todos os atores da comunidade internacional que realmente se empenhem a pôr fim a esta guerra repugnante".
De qualquer forma, Bergoglio tenta manter o vínculo com todos os protagonistas da partida. Na semana passada, falando em videochamada com o patriarca russo Kirill, ele o envolveu no "desejo de indicar como pastores um caminho para a paz [...] para que cesse o fogo". Um comunicado especifica que "ambos ressaltaram a importância excepcional do processo de negociação em curso".
A conversa serviu também ao pontífice para transmitir ao seu interlocutor o conceito de que "as guerras são sempre injustas. Porque quem paga é o povo de Deus”. Uma intervenção para interagir psicologicamente com um patriarca, que acabara de doar a imagem de Nossa Senhora "Theotokos" à Guarda Nacional Russa como garantia de proteção e vitória.
No Vaticano, a preocupação com a guerra na Ucrânia é altíssima. “A situação é muito mais séria do que se poderia imaginar”, afirma um arcebispo que conhece muito bem Bergoglio. Preocupa a escalada verbal dos líderes, contra o que já alertou o cardeal secretário de Estado Pietro Parolin. Preocupa a expressa relutância em admitir que existem "interesses legítimos" que movem ambos os lados do conflito.
Preocupa o aparecimento de opiniões segundo as quais alguma zona de exclusão aérea poderia ser organizada, independentemente do risco de um confronto direto entre a aviação OTAN e aquela russa. Preocupa o estilo obsessivo que vem aparecendo nas declarações institucionais ou nos meios de comunicação de massa. A estética da guerra, contra a qual o Avvenire alerta. A cegueira de não entender que devemos sair da “armadilha” bélica.
Grande parte do mundo católico, rejeitando totalmente a agressão de Putin, estremece ao ouvir o general estadunidense Wesley Clark, protagonista dos bombardeios na Sérvia em 1999, afirmar que "temos o dever moral de mostrar aos russos a superioridade dos EUA". O mesmo grupo de pensamento do mundo católico se recusa a fechar os olhos para o fato de que a relação cada vez mais estreita entre a OTAN e a Ucrânia que se estabeleceu nos últimos oito anos, inclusive com exercícios militares conjuntos, alimentou em Moscou a sensação de sentir-se encurralada num canto.
Mas, especialmente em partes do mundo católico e nas esferas diplomáticas do Vaticano, há uma consciência aguda de que a ordem planetária não pode mais ser unipolar. O cientista político estadunidense Fareed Zakaria descreveu assim: “A Pax estadunidense acabou. Os EUA não são mais a única potência global, embora continuem sendo a dominante”. Como pensar então que Washington possa se iludir ao pedir "ou comigo ou contra mim" para China, Paquistão, Índia, México, Brasil, Argentina, Emirados Árabes e Arábia Saudita. As tramas são muito mais complexas.
A Índia é um exemplo disso. Faz parte do grupo "Quad" com os Estados Unidos, Japão e Austrália para contrabalançar a China no tabuleiro de xadrez pacífico, mas participa da "Cooperação de Xangai" com China, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão. É também membro do “Brics”, um grupo econômico-comercial que une Brasil, Rússia, China e África do Sul.
É concebível que apenas uma parte do mundo possa acreditar que pode colocar na linha os outros países? Esta é a razão pela qual é difundida no Vaticano a reflexão de que a crise ucraniana seja um prenúncio da exigência de uma nova ordem mundial. O Cardeal Zuppi de Bolonha chama isso de "arquitetura do diálogo entre países e nações". Entrevistado pelo Avvenire, o analista estratégico Arduino Paniccia, da Escola de Competição Econômica de Veneza, destaca que o caso da Ucrânia "deve ser inserido em um cenário mais amplo". No momento oportuno será necessário ir a "negociações de alto nível que dizem respeito às grandes potências".
Amanhã o presidente ucraniano Zelensky irá discursar para o Parlamento italiano, que votou praticamente por unanimidade o apoio, inclusive com material militar contra a invasão. A equipe que colabora em seus discursos terá que conhecer bem o pulso de opinião pública italiana. Os italianos são retóricos no bar ou nos talk shows, mas extremamente realistas em situações fundamentais. Eles não acreditam que entre Moscou e Kiev esteja se desenrolando uma luta metafísica, e se tornam desconfiados diante de retóricas repetidas nas sedes oficiais.
Alinhados convictamente do lado dos ucranianos, não querem, porém, ouvir falar de uma terceira guerra mundial que já começou e muito menos de "céus fechados" ou zonas de exclusão aérea, o que por trás da aparente neutralidade do termo significa concretamente arriscar uma guerra nuclear. O presidente Biden sabiamente disse não, a OTAN disse não, os italianos dizem não.
É bom levar isso em consideração.
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O Papa em Kiev? Com Francisco tudo é possível. Artigo de Marco Politi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU