"A ironia da história não poderia deixar de ser aqui assinalada, as civilizações modernas que ameaçaram ao desaparecimento das religiões com as teses de secularização, hoje, mais do que nunca, se veem dependentes dos atores religiosos para não serem consumidas pela barbárie", escreve Breno Botelho, antropólogo, doutorando em Antropologia Social pelo Museu Nacional e pesquisador do Laboratório de Antropologia do Lúdico e do Sagrado (LUDENS-MN-UFRJ).
Em ato inédito na diplomacia do Vaticano, o líder máximo da Igreja Católica visitou pessoalmente a embaixada da Rússia para a Santa Sé no dia 25 de fevereiro para expressar sua preocupação com a guerra, afirmou o diretor da assessoria de imprensa do Vaticano, Matteo Bruni[1]. No dia seguinte o pontífice entrou em contato por telefone com o presidente Ucraniano, que se encontra na capital Kiev em local sigiloso por questão de segurança. o envolvimento do pontífice católico na mediação do conflito entre Rússia e Ucrânia, dois países de maioria ortodoxa, contudo, remonta aos primeiros anos de seu pontificado.
Em 2014, um ano após Francisco assumir o papado, a escalada de tensão no leste europeu envolvendo Ucrânia e Rússia se elevou de patamar com a anexação do território da Criméia pela Rússia. Já no distrito de Donbass, onde se localizam as regiões separatistas pró-Rússia de Donetsk e Luhansk, os conflitos somavam milhares de vítimas, atingindo 14 mil mortos até o início da guerra em fevereiro de 2022.
Diante do cenário de crise humanitária, em 2016 a Igreja Católica deu início ao programa “Papa para a Ucrânia” que desenvolveu diversos projetos nos campos da educação, saúde e ajuda humanitária. Um dos objetivos do programa era a cooperação ecumênica entre as Cáritas Latina e Greco-católicas na assistência às vítimas do conflito entre os dois países. A parceria acabou também envolvendo outros segmentos do cristianismo como setores evangélicos, além da sociedade civil, segundo relato do bispo auxiliar de Lviv, dom Eduard Kava, em entrevista ao Vatican News, veículo oficial de comunicação do Vaticano.
Para viabilização do projeto e atendendo a um apelo direto de Francisco as igrejas da Europa iniciaram uma campanha de arrecadação de dinheiro destinado à Ucrânia. Até 2018 cerca de 15 milhões de euros haviam sido arrecadados, e aproximadamente 900 mil pessoas atendidas. O projeto foi saudado pelo presidente ucraniano Volodymyr Zelensky durante sua visita oficial ao Vaticano em 2020. Durante esse encontro o presidente Zelensky pediu a ajuda da Santa Sé para mediar a libertação de ucranianos mantidos como prisioneiros de guerra na Rússia, na região anexa da Crimeia e na região ocupada de Donbass, relatou o jornalista Gerard O’Connell, correspondente no Vaticano para a America Magazine[2]. O Vaticano mantém relações diplomáticas com os dois países.
Já o jornal ucraniano Kyiv Post destacou que uma viagem do Papa à Ucrânia deveria ocorrer em 2022: “O Papa Francisco provavelmente visitará a Ucrânia em 2022, disse o Arcebispo-Metropolitano da Arquidiocese de Lviv da Igreja Católica Romana, Mieczyslaw Mokshitsky” publicou o jornal[3]. A deflagração da guerra entre as duas nações, contudo, pôs a visita em suspensão.
O envolvimento de uma gama de agentes políticos nas tentativas de uma resolução pacífica para o conflito no leste europeu envolvendo Rússia e Ucrânia se mostrou frustrada com a invasão irrestrita do território ucraniano pelas tropas Russas no dia 24 de fevereiro. O evento inédito na história recente em razão da relevância política, econômica e militar dos países envolvidos acendeu o sinal vermelho em todo o mundo diante da iminência de uma possível guerra em escala global, colocando a diplomacia internacional em alerta máximo.
Protesto pelo fim da guerra, na Alemanha (Foto: Unsplash)
Um dia após a ofensiva militar deflagrada na quinta feira, 24 de fevereiro, Francisco se dirigiu à sede da embaixada da Federação Russa junto à Santa Sé expressando sua preocupação com a guerra. No dia 25 o pontífice entrou em contato por telefone com o presidente ucraniano, gesto encarado como uma demonstração de apoio ao povo ucraniano. Já no sábado, 26 de fevereiro, o pontífice voltou a se manifestar pela condenação da violência e da guerra, e pedindo paz na região. Pelo Twitter, o presidente da Ucrânia reagiu aos apelos do papa: "Agradeci ao Papa Francisco @Pontifex por rezar pela paz na Ucrânia e um cessar-fogo. O povo ucraniano sente o apoio espiritual de Sua Santidade", escreveu[4].
Para além dos contatos diplomáticos, em suas intervenções públicas Francisco tem convocado os católicos a realizarem no dia 02 de março, data em que os cristãos comemoram a quarta-feira de cinzas, uma mobilização global de orações e jejum em prol da paz no leste europeu e pelo fim das guerras.
O presidente da Federação Russa, Vladmir Putin, proferiu um discurso televisionado na segunda-feira, 21 de fevereiro, no qual reconhecia a independência das regiões separatistas pró-Rússia de Donetsk e Luhansk. No mesmo discurso o presidente acusou o governo ucraniano de reprimir a Igreja Ortodoxa Ucraniana, ligada ao patriarcado de Moscou.
Putin afirmou que “as autoridades ucranianas transformaram cinicamente a tragédia da divisão na igreja em um instrumento de política de Estado” se referindo ao reconhecimento da autocefalia da Igreja Ortodoxa Ucraniana pelo Patriarca Ecumênico Bartolomeu I, concedido em 2019. Parte da Ortodoxia Ucraniana, contudo, permaneceu fiel ao patriarcado de Moscou. Para Putin, o governo ucraniano tem mobilizado politicamente as tensões religiosas contra a Rússia.
Embora tendo reconhecida a separação, o pertencimento religioso ao patriarcado de Moscou no território ucraniano ainda é bastante significativo, como explicitou a jornalista Marguerite de Lasa:
Uma pesquisa realizada em julho passado pelo Instituto Internacional de Sociologia de Kiev constatou que 58% dos ucranianos ortodoxos dizem pertencer à Igreja autocéfala, enquanto cerca de 25% se identificam com a Igreja ligada ao Patriarcado de Moscou[5].
Ao longo dos últimos dias a cobertura midiática tem se debruçado sobre os argumentos de Putin acerca dos laços culturais históricos que perpassam Russos e Ucranianos, como forma por meio da qual se justificaria a noção da soberania ucraniana como um “erro histórico” a ser corrigido, nas palavras de Putin. Dentre os elementos em comum, muito se tem explorado a proximidade das línguas, dos parentescos, além de um passado territorial conjunto, mas muito pouco foi dito até agora sobre o papel da religião para os eventos em curso.
Embora o Estado do Vaticano tenha um peso pequeno no cenário internacional se encarado do ponto de vista econômico, seu corpo diplomático e a utilização da figura do pontífice como um símbolo de mediações de paz em conflitos geopolíticos e religiosos ao redor do mundo se consolidaram na história moderna recente, tendo nas visitas internacionais realizadas pelos pontífices um ponto estratégico. As chamadas visitas apostólicas tais como as conhecemos atualmente são historicamente recentes, frutos das reformas do Concílio Vaticano II (1962-1965) no interior da Igreja, que estabeleceram um caráter missionário moderno ao modus operandi da Igreja. Para a historiadora e cientista política portuguesa Rita de Carvalho, a Igreja Católica se tornou assim um importante ator diplomático no cenário internacional:
No campo diplomático, são inúmeras as intervenções da Santa Sé, quer através do enviados pessoais do Papa, quer pela sua acção diplomática directa na mediação dos conflitos [...] Em 1998, ο Papa [João Paulo II] viaja para Cuba, encontrando-se por diversas vezes com Fidel Castro e outros governantes [...] Foi também ο Vaticano que, em 1993, mediou a questão do canal de Beagle, desacordo entre a Argentina e ο Chile sobre a soberania da zona austral do subcontinente latino americano, considerado ‘um dos sucessos mais significativos da diplomacia vaticana destes últimos decénios’. Também a forma como a Igreja Católica interveio quando da invasão do Panamá por tropas americanas em Dezembro de 1989 é reveladora da importância e da complexidade das atitudes da igreja na América Latina[6].
A lista poderia ainda citar inúmeras outras experiências ao longo das 303 viagens internacionais realizadas no último meio século pelos papas João XXIII, Paulo VI, João Paulo II, e Bento XVI, segundo levantamento feito pelo jornalista John L. Allen Jr. para o National Catholic Reporter, em 2011[8] – nem todas bem sucedidas, vale a ressalva. Contudo, esse know-how diplomático envolvendo diretamente a figura – ou o “carisma” no linguajar católico – dos pontífices para resolução de conflitos geopolíticos e religiosos não apenas manteve seu lastro na atual gestão papal, como se potencializou. Francisco já é o segundo pontífice com o maior número de viagens apostólicas da história do Vaticano, atrás apenas de João Paulo II.
Por meio de sua atuação direta viabilizou-se o reestabelecimento das relações diplomáticas entre Cuba e os Estados Unidos em 2014. Há época os presidentes dos Estados Unidos, Barack Obama, e de Cuba, Raul Castro, creditaram ao pontífice a viabilidade do acordo político. Francisco também foi figura central para o acordo de paz entre as FARC e o governo da Colômbia, indo pessoalmente ao país em 2017 para incentivar as tratativas. Em 2021 sua primeira viagem após o início da pandemia foi ao Iraque, país invadido pelos Estados Unidos em 2003. Além de ter se consolidado desde o início de seu papado como um importante ator político em questões sensíveis como as crises migratória e climática, que envolvem um forte apelo ecumênico por parte do Vaticano.
Para Rita de Carvalho a posição privilegiada da diplomacia papal no mundo – única religião com reconhecimento diplomático pela ordenação jurídica internacional, fato que confere à Igreja Católica a possibilidade de representação em conselhos da ONU, e a emissão de núncios apostólicos (espécies de diplomatas), junto aos Estados nacionais –, se deve muito mais à conquista de um reconhecimento internacional do catolicismo como representante global da fé, do que ao reconhecimento diplomático do Vaticano como Estado nacional.
É exatamente esse o maior trunfo da diplomacia papal, um apelo a valores ético-religiosos para a construção de acordos políticos, valendo-se inclusive da capacidade de mobilização de narrativas de pertencimento ecumênico que, no catolicismo, foram introduzidas pelas reformas do Concílio Vaticano II, evento chave da adaptação do catolicismo à modernidade que completa 60 anos desde sua convocação pelo papa João XXIII. A ironia da história não poderia deixar de ser aqui assinalada, as civilizações modernas que ameaçaram ao desaparecimento das religiões com as teses de secularização, hoje, mais do que nunca, se veem dependentes dos atores religiosos para não serem consumidas pela barbárie.
Papa Francisco fez novo apelo pela paz no Ângelus deste domingo, 6 (Foto: Vatican Media)
Não à toa os recentes apelos de paz proferidos pelo Papa Francisco em relação aos conflitos no leste europeu se dirigem frontalmente aos “homens de fé”. Com esse apelo Francisco fala diretamente aos líderes das principais potências envolvidas no conflito. Vale ressaltar que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, é o segundo presidente da história daquele país a proferir a fé católica, que a Igreja Ortodoxa Russa é extremamente vinculada ao governo de Putin, e que Zelensky, presidente ucraniano, é de origem judaica.
Não se trata, obviamente, de exacerbar uma posição estratégica ocupada pelo Vaticano em meio a um conflito que mobiliza as principais potências mundiais. Mas sim de levarmos em consideração o peso das tradições culturais e religiosas na conformação dos conflitos geopolíticos, incluindo este em curso entre Ucrânia e Rússia, e a relevância de um mediador capaz de mobilizar os mais profundos sentimentos de pertença religiosa ao redor do mundo, ao mesmo tempo em que se apresenta como uma ponte entre múltiplas identidades. Não à toa esse mediador estratégico foi acionado pela própria Ucrânia.
Por outro lado, ao tempo em que as potências econômicas investem na produção e aquisição de armamentos de guerra, cresce o número de desastres ambientais e o risco de novas epidemias se torna cada dia mais alarmante. Para o Filósofo Patrice Maniglier, a emergência climática e o risco iminente à manutenção da vida tal qual a conhecemos trouxe à tona um novo ator político desprezado nas grandes guerras do Século XX, mas impossível de o ser agora, a própria Terra. Para Maniglier, esse novo ator político nos exige a tarefa de discernirmos a diferença entre as noções de universal e global. Universal sendo ligado à ideia de identidade, serviu de base ao expansionismo colonialista e à história das dominações. Já o Global, em sua análise, diz respeito a uma totalidade lógica informada pela condição de todos os seres viventes se localizarem no mesmo globo, e por ele serem afetados.
Manifestantes pedem suporte militar à Ucrânia em frente à Casa Branca, nos Estados Unidos (Foto: Unsplash)
Nesse sentido, diante de uma guerra sem precedentes do ponto de vista dos riscos que envolvem a ameaça de utilização de armas cada vez mais destrutivas, sem contar os arsenais nucleares, em um planeta que não cansa de dar sinais de colapso iminente – reiterado de forma dramática a cada novo relatório do IPCC. Nos situamos nas portas de um evento histórico que não apenas demarca a transição de blocos geopolíticos hegemônicos, como muito alardeiam os cientistas políticos. Mas, muito mais dramático, estamos, literalmente, na beira do precipício do antropoceno, como alertam os antropólogos e cientistas do clima.
Nesse cenário de múltiplas guerras simultâneas (culturais, bélicas, de informação, sanitária etc) urge ouvirmos os apelos para nos distanciarmos dos universais identitários, colonialistas e dominantes, e nos concentrarmos em esforços para a construção de uma diplomacia fundada na crença de um mundo onde caibam muitos mundos, como dizem os zapatistas. Assim, o aparecimento da terra como um ator global, a partir da concepção de Maniglier, impõe repensarmos os efeitos de nossas ações para a própria sobrevivência da vida tal qual a conhecemos nesse planeta. Um apelo à casa comum de que fala a famosa encíclica Laudato Si, de Francisco.
Em entrevista recente a um veículo de imprensa, a ex-presidenta Dilma Rousseff proferiu a seguinte assertiva: “se você não conhece as causas profundas do conflito, a paz é uma palavra de ordem vazia”. Não há como discordar, mas no final das contas, chegamos no momento histórico em que se não conhecermos as causas profundas do imperativo da paz, o conflito será uma destruição sem precedente e irremediável.
[1] Disponível aqui. Acesso em 27/02/2022.
[2] Disponível aqui. Acesso em 27/02/2022.
[3] Disponível aqui. Acesso em 27/02/2022.
[4] Disponível aqui. Acesso em 27/02/2022.
[5] Para mais detalhes, clique aqui. Acesso em 27/02/2022.
[6] CARVALHO, Rita de Almeida. A diplomacia papal ao serviço de uma consciência global. História e relações internacionais: Temas e debates (actas do ciclo de conferência). Lisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2004, p. 115-138.
[7] Disponível aqui. Acesso em 27/02/2022.