10 Mai 2021
Nos tempos pré-Covid de outrora, quando ainda havia um circuito de palestras, uma das mais populares que eu dei se intitulava: “Roma é de Marte, EUA são de Vênus: navegando pela lacuna cultural entre o Vaticano e os EUA”. Basicamente, ela explorava os diferentes grupos de instintos, perspectivas e suposições nesses dois mundos culturais, que muitas vezes levam um a entender mal o outro.
O comentário é de John L. Allen Jr., especialista do Vaticano, jornalista, autor, editor do Crux, um site de notícias independente, e presidente da Crux Catholic Media Inc., em artigo publicado por Crux, 09-05-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O assunto vem à mente novamente nesta semana, observando as reações ao governo Biden que ocorrem em ambos os lados do Atlântico. Nos EUA, você pensaria que estamos nos preparando para uma luta pelo título no octógono do MMA; em Roma, você pode pensar que Biden e seus colegas vaticanos são “amigos para sempre”.
Nos círculos católicos dos EUA, está ressurgindo um debate que permaneceu em grande parte adormecido desde a última vez em que os democratas nomearam um católico pró-vida para presidente, que é a questão de saber se alguém que se identifica como católico e, no entanto, rompe com o ensino da Igreja sobre as questões da vida, especialmente o aborto, deve ou não receber a Comunhão.
Na semana passada, esse debate voltou ao centro das atenções depois que o arcebispo Salvatore Cordileone, de San Francisco, emitiu uma carta pastoral pedindo que tais figuras políticas não se apresentem para a Eucaristia na missa, insistindo que elas estão rompendo a comunhão com a Igreja por meio das políticas por elas defendidas.
O fato de a mensagem ter vindo de Cordileone significa que ela tem relevância não apenas para Biden, mas também para a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, outra católica democrata pro-choice, já que sua residência fica na Arquidiocese de San Francisco.
A Comissão de Doutrina dos bispos dos EUA está trabalhando em um amplo documento sobre a aptidão para a Comunhão, embora não esteja claro se um rascunho desse texto estará pronto para a assembleia dos bispos em meados de junho.
Essa agitação é consistente com o tom que os bispos estabeleceram desde o dia da posse, quando o arcebispo José Gomez, de Los Angeles, advertiu que o próximo governo Biden promoveria “graves males morais” e que isso representa um enigma especial para os bispos, porque o próprio presidente é católico.
Enquanto isso, esse não é debate sobre Biden que predominou aqui em Roma na semana passada, onde a nota principal, em vez disso, foi o elogio à decisão do presidente de renunciar aos direitos de propriedade intelectual das vacinas anti-Covid a fim de acelerar a distribuição para os países mais pobres.
Essa decisão pode estar dividindo grande parte da Europa. O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, expressou ceticismo, dizendo que se trata de uma “bala mágica”, e o presidente francês, Emmanuel Macron, disse que, se os EUA realmente quiserem ajudar, podem acabar com as proibições de exportação de vacinas e compartilhar tecnologia para aumentar a produção.
No entanto, no pequeno pedaço da Europa representado pelo Estado da Cidade do Vaticano, a reação foi muito mais entusiasmada.
Em um artigo no dia 6 de maio, o jornal L’Osservatore Romano disse que a decisão de Biden marca um “antes” e um “depois” na pressão por justiça global.
“O ‘antes’ se expressou no pedido da Índia e da África do Sul, feito ainda em outubro passado, para suspender os direitos de propriedade para permitir a produção em massa de vacinas genéricas”, escreveu o L’Osservatore. “Esse pedido foi pensado e repensado, com países produtores de vacinas de marca contrários e um grupo de 70 nações favoráveis. Trata-se de um ‘antes’ em que a Pfizer acaba de anunciar ganhos que excedem as já altas expectativas.”
“O ‘depois’ será escrito a partir da escolha dos Estados Unidos, que tem o seu peso, mesmo que não tenha repercussão imediata”, afirma o L’Osservatore.
Nesse sábado, o Papa Francisco enviou uma videomensagem para um show de ajuda contra a Covid apresentado por Selena Gomez e organizado pelo Príncipe Harry e Meghan Markle. Ele lamentou o “vírus” do individualismo que, segundo Francisco, leva à indiferença em relação ao sofrimento alheio.
O pontífice usou uma linguagem amplamente considerada como um endosso à mudança de política de Biden.
“Uma variante desse vírus é o nacionalismo fechado, que impede, por exemplo, um internacionalismo das vacinas”, disse ele. “Outra variante é quando colocamos as leis do mercado ou da propriedade intelectual sobre as leis do amor e da saúde da humanidade.”
Tudo isso é emblemático de um conflito de longa data entre os EUA e Roma, que remonta aos anos Obama e antes deles. Nos EUA, a reação católica a um líder político é fortemente condicionada pela questão do aborto; no Vaticano, muitas outras considerações entram em jogo, especialmente as preocupações com a justiça para os povos e nações mais pobres do mundo, tipicamente deixados para trás.
Essa lacuna cultural tende a gerar preconceitos em ambos os lados da relação. Os membros do Vaticano às vezes presumem que os católicos estadunidenses têm uma fixação pelo aborto por razões políticas, para promover a agenda mais ampla do direito cultural (esse era o espírito, por exemplo, do infame artigo “ecumenismo de ódio” sobre a Igreja estadunidense, escrito por dois aliados próximos do Papa Francisco na revista La Civiltà Cattolica em 2017). Os católicos estadunidenses, entretanto, às vezes concluem que o Vaticano é simplesmente fraco em relação ao aborto, sem vontade de tomar uma posição firme.
O que o pessoal do Vaticano às vezes tem dificuldade de entender é que, ao contrário da Europa ocidental, a batalha em torno do aborto ainda é uma preocupação constante nos EUA, razão pela qual a Igreja ainda tem uma chance de fazer alguma coisa. Os católicos estadunidenses, por sua vez, muitas vezes não percebem que o simples fato de algo ser uma grande prioridade para eles não significa necessariamente que ele também o seja para o restante do mundo, e o Vaticano tem uma responsabilidade global.
De qualquer forma, a questão parece clara: embora o segundo presidente católico romano dos EUA possa ter uma relação ambivalente com a liderança da sua Igreja local, aqui, na sede global, até agora ele está tendo uma recepção mais amigável. No mínimo, essa dinâmica deveria tornar realmente interessante o anúncio da escolha do embaixador de Biden junto ao Vaticano, que deve acontecer em breve.
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Reações a Biden revelam lacuna cultural entre EUA e Roma. Artigo de John L. Allen Jr - Instituto Humanitas Unisinos - IHU