07 Janeiro 2021
Na Igreja Católica dos Estados Unidos, uma das mais importantes do mundo, as estruturas de debate eclesial estão praticamente destruídas.
A opinião é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA. O artigo foi publicado por La Croix International, 05-01-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo ele, "e é aí, infelizmente, que a promessa de sinodalidade do Papa Francisco parece nada mais do que uma miragem".
Uma das tragédias do catolicismo contemporâneo é que a Igreja se tornou excessivamente politizada.
Não se trata de ser político no sentido elevado da palavra – isto é, comprometer-se com a comunidade eclesial e também com a polis. Em vez disso, a Igreja se politizou no sentido de que as divisões políticas entre seus próprios membros tendem a dominar tudo.
Elas dominam não apenas a elaboração de declarações públicas cuidadosas por parte de quem trabalha na e para a Igreja, mas também o próprio processo de formação de ideias, cosmovisões e opiniões.
A Igreja se politizou de um modo que reflete o slogan de Charles Maurras, um dos heróis dos católicos neointegralistas: “La politique d’abord!”.
Não se trata da política no sentido da política do dia a dia. É política no sentido de que a ordem política vem em primeiro lugar como chave para todas as outras questões: eclesiais, teológicas e espirituais.
Isso também prejudica todas as outras questões. Não se trata de como evitar tropeçar em um fio. Na realidade, a sobrevivência política agora é a própria fiação da liderança católica e é muito mais decisiva do que possuir habilidades intelectuais, espirituais ou mesmo administrativas.
Um exemplo recente da crueza desse primado da política são as saídas, no dia 31 de dezembro, de um jornalista veterano e editor-chefe da Catholic News Agency, com sede nos Estados Unidos.
A notícia veio apenas um dia depois que a Eternal Word Television Network (EWTN) anunciou uma série de mudanças em sua programação de televisão e rádio, incluindo a demissão de Gloria Purvis, uma defensora declarada da justiça racial e apresentadora do programa de rádio “Morning Glory”.
Por um lado, esse é um exemplo flagrante do fato de que, no catolicismo estadunidense de hoje, os católicos negros continuam pagando o preço pelo esforço antirracismo.
Mas, em outro nível, isso demonstra como a política assumiu completamente o controle, quando um conglomerado de mídia católica conservadora como a EWTN pensa que pode se safar sinalizando de forma tão flagrante a sua posição sobre a questão do racismo em um país onde Trump e seus apoiadores católicos provavelmente se recusarão a deixar o palco mesmo depois de Joe Biden ser empossado presidente no dia 20 de janeiro.
Outro exemplo do primado da política no catolicismo estadunidense atual é a forma como os bispos dos Estados Unidos lidaram com as ameaças de Donald Trump à democracia durante a sua presidência, a sua fracassada campanha de reeleição e após a clara vitória de Biden.
Como órgão nacional, os bispos não disseram nada sobre como Trump – um presidente que muitos deles viam como um aliado nas “guerras culturais” – representou uma ameaça à República.
O silêncio deles se deve, em parte, a uma espécie de agnosticismo constitucional. Também se deve, em parte, ao medo de que eles pudessem enviar uma mensagem política muito intragável para os católicos que votaram em Trump. E se deve, em boa medida, à simpatia política que muitos dos bispos têm pelo presidente cessante.
No ataque de Trump ao Estado de Direito, com tentativas flagrantes de reverter uma eleição e instituir um regime autoritário, os esforços dos líderes católicos dos Estados Unidos para permanecerem neutros mostram um distanciamento que absolve os extremistas.
Eles também mostram as limitações culturais e a falta de liderança na geração dos clérigos atualmente no poder na Igreja.
Mas essa politização eclesial é evidente não apenas na Igreja dos Estados Unidos. É um problema sempre que a Igreja se torna complacente com a ameaça do etnonacionalismo. É um problema tanto de cultura política quanto teológica.
Por um lado, está claro que o dano causado pelo nacionalismo cristão não pode ser reparado apenas dentro de uma estrutura religiosa, como Victoria J. Barnett escreveu recentemente.
Os católicos dos Estados Unidos devem reconhecer a aliança fatal entre fé e poder político. A reconciliação cívica deve começar com o claro repúdio ao nacionalismo e ao ódio religiosos, com um discernimento em praça pública que seja politicamente visível.
Por outro lado, também deve haver uma despolitização do debate interno na Igreja Católica.
No catolicismo de hoje, o caos ao nível da consciência política é o resultado da inversão de papéis entre a vida eclesial-sacramental da Igreja e a sua existência midiático-virtual, em que esta última impôs a sua linguagem e moralidade sobre a primeira.
“Esta nova ecologia midiática ameaça a unidade da Igreja, pois substitui as noções eclesiais católicas de comunhão por um modelo secular importado de identidade cultural que reduz o ritual e a doutrina a instrumentos para marcar a diferença”, escreveu o teólogo católico Vincent Miller em um artigo publicado em 2015. “No seu extremo, a unidade se reduz ao mero resultado interno da marcação externa da diferença”, disse ele.
Esse é o quadro – não sacramental, mas político – no qual os católicos estadunidenses entendem a ameaça dos bispos de imporem sanções ao acesso do presidente Biden à eucaristia. Isso manifesta como tal politização eclesial ameaça destruir a orientação sacramental da Igreja.
Também extingue a capacidade da Igreja de lidar com as diferenças internas de uma forma que não seja dominada por um marco partidário sobreposto, incluindo a forma como os políticos católicos lidam com a questão do aborto.
Como Terry Eagleton escreveu em seu livro “Hope Without Optimism” [Esperança sem otimismo], a verdadeira calamidade é a extinção da palavra: quando a linguagem é obliterada, a esperança se extingue, e o sentido desmorona.
O problema da polarização na Igreja não se deve apenas ao extremismo das posições. Ele também está relacionado com o fato de que o modelo atual de Igreja é o resultado da projeção de crenças políticas sobre uma tela eclesial. A noção de unidade da Igreja foi reduzida a expectativas de uniformidade política.
Além de todos os enormes desafios enfrentados por uma estrutura institucional que luta para se dar conta de si mesma no rastro de mudanças importantes e abrangentes nacional e globalmente, é urgente que a Igreja Católica assuma uma nova matriz de entendimento que elimine os mantras dos ideólogos de direita que levaram a esta perigosa politização da fé.
O catolicismo não começou nos anos 1980. Há um profundo passado católico no qual podemos e devemos nos inspirar.
A fim de serem verdadeiramente contraculturais, os católicos devem ser capazes de oferecer uma crítica sofisticada da modernidade, e não um duvidoso “giro católico” sobre a crítica alavancada por guerreiros culturais não católicos como Jordan Peterson ou Ben Shapiro. A lente “ou-ou” oferecida por aqueles que praticam a teologia como um esporte sangrento já causou danos demais.
Na Igreja Católica dos Estados Unidos, uma das mais importantes do mundo, as estruturas do debate eclesial estão praticamente destruídas.
E é aí, infelizmente, que a promessa de sinodalidade do Papa Francisco parece nada mais do que uma miragem.
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A tragédia de uma Igreja excessivamente politizada. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU