26 Novembro 2020
“Toda a Igreja deveria levar a sério as propostas de reforma eclesial vindas dos católicos da Austrália”, escreve Massimo Faggioli, historiador italiano e professor na Villanova University, em artigo publicado por La Croix, 25-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A solução para a crise dos abusos sexuais na Igreja Católica está no equilíbrio entre essas duas questões: O que aconteceu? O que precisa acontecer?
O chamado “Relatório McCarrick”, compilado pela Secretaria de Estado do Vaticano e publicado em 10 de novembro, é um exemplo de transparência sob pressão sem precedentes.
Representa um passo fundamental para uma melhor compreensão do que aconteceu na saga de Theodore McCarrick, o ex-cardeal-arcebispo de Washington que foi destituído em 2019 por abuso sexual de menores.
O relatório, que levou dois anos para ser feito, está na forma de uma análise forense de quem sabia o quê e quando. Mostra algumas dinâmicas-chave no sistema de carreiras da Igreja Católica em nível episcopal.
Mas ignora outros fatores que, durante séculos, fizeram parte desse sistema. Mais seriamente, ele ignora em grande parte o papel que o dinheiro desempenhou em manter e fornecer acesso às salas do Vaticano onde as decisões mais importantes são tomadas.
Além de um prefácio metodológico no início explicando a forma como o relatório foi compilado, a principal ausência no Relatório McCarrick é de uma seção de recomendações ao final.
Para fazer uma comparação, já usada pela análise de David Gibson, em um mundo de espiões e agentes duplos, os resultados da investigação lançada pelo Vaticano sobre a carreira de McCarrick fornecem informações valiosas, mas não está claro o que pode ser feito com essas informações.
Isso foi observado por alguns dos especialistas mais comprometidos na luta contra o abuso na Igreja. Um exemplo brilhante é o padre jesuíta Hans Zollner, membro da Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores e presidente do Centro de Proteção à Criança da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
É evidente que para que o Relatório McCarrick seja um verdadeiro ponto de inflexão, ele deve ter consequências institucionais, por exemplo, no processo de nomeação de bispos.
O Relatório McCarrick mostra um problema sistêmico com a governança da Igreja que produziu consequências catastróficas no caso do ex-arcebispo de Washington, mas este não foi um caso único.
Nos últimos anos, o papa Francisco aceitou a renúncia de um número significativo de bispos por razões relacionadas com a crise de abusos.
Isso traz à tona a questão da mudança institucional relacionada a essa crise, algo que a Secretaria de Estado não pôde abordar no relatório por causa das dimensões eclesiais e teológicas que vão além das considerações eclesiásticas ou políticas.
Mas outras partes da Igreja Católica global estão tratando desse problema com propostas concretas. A Igreja na Austrália é um dos melhores exemplos.
Nos últimos anos, os católicos de lá se encontraram na situação única de tentar lidar com as conclusões da “Comissão Real para Respostas Institucionais ao Abuso Sexual de Crianças” (2013-2017).
Os bispos australianos lançaram um Concílio Plenário com o envolvimento de toda a Igreja Católica do país.
A Conferência Episcopal da Austrália (ACBC) e a Conferência de Religiosos e Religiosas da Austrália (CRA) criaram uma força-tarefa para formular propostas para a reforma da Igreja. Funcionou entre 2019-2020 e apresentou um relatório de 208 páginas chamado The Light from the Southern Cross (“A Luz do Cruzeiro do Sul”, em tradução livre).
O relatório foi finalizado e submetido à ACBC e à CRA antes da publicação do Relatório McCarrick. Mas, indiretamente, fornece respostas à pergunta sobre o que precisa acontecer na Igreja.
Uma parte integrante do The Light from the Southern Cross é uma seção de recomendação.
Aqui estão algumas das recomendações:
O potencial de documento, no contexto do Concílio Plenário, vai além da crise dos abusos sexuais, como o eclesiólogo Richard Gaillardetz, do Boston College, destacou em sua análise do relatório.
Seria ingênuo ou insincero ler as propostas da força-tarefa separadamente das consequências do Relatório McCarrick.
“A menos que a mudança chegue localmente, ela não afetará a vida das pessoas, mesmo que o Papa diga algo”, observou o teólogo Richard Lennan em uma recente conferência online.
Padre australiano que leciona no Boston College, também foi consultor dos autores do documento.
O relatório representa um desafio para aqueles que nunca dizem abertamente que são contra a mudança na Igreja, mas apenas se opõem à “forma” de mudança.
Suas propostas para reformar o governo da Igreja são profundamente eclesiais. Eles não visam criar algo totalmente novo, mas tirar proveito dos recursos existentes da Igreja.
O documento não clama por uma revolução, mas por reformas institucionais que já são possíveis.
Está nas mãos da ACBC e da CRA, responsáveis pelo grupo de trabalho, desde agosto passado.
Mas houve um retrocesso em vários níveis – tanto no público quanto no privado – com alguns acusando os autores do relatório de desconsiderar a eclesiologia católica, ou pior.
Enquanto isso, a conferência episcopal se reúne esta semana para revisar a questão do governo da Igreja na Austrália. E os bispos também examinarão The Light from the Southern Cross.
O simples fato é que eles e a CRA agora têm uma escolha. Eles podem levar a sério as propostas do documento e começar a agir sobre algumas delas, ou podem ignorar e desprezar as sugestões e o espírito eclesial com que foram redigidas.
Seja o que os líderes da Igreja fizerem, ou deixarem de fazer, terá consequências de longo alcance, muito além dos limites das terras austrais.
Também dirá algo sobre a credibilidade de toda a Igreja Católica ao lidar com a crise dos abusos. E isso inclui a credibilidade do papa Francisco.
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O plano de ação que faltou no Relatório McCarrick pode ser encontrado nas ex-colônias. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU