Relatório McCarrick é um pequeno passo para desmantelar a cultura clerical

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20 Novembro 2020

“A cultura hierárquica tem sido publicamente humilhada e castigada. Sua mística se foi, sua autoridade e credibilidade estão esfarrapadas. Nessa violação, o papel da Igreja Católica nos Estados Unidos é cada vez mais moldado por aqueles que possuem riquezas e por suas organizações, que estão além do controle da Conferência. Aqueles de nós que sobraram nos bancos da Igreja devem se perguntar: onde está a autoridade? De quem é a voz que seguimos?”, escreve Tom Roberts, jornalista estadunidense, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 20-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

Eis o artigo. 

Há muito tempo aqueles que fazem uma avaliação ponderada e cuidadosa do papado já entenderam que a história de São João Paulo II foi enviada para a impressão muito antes de estar pronta.

A narrativa não teve tempo de amadurecer, de incorporar as camadas de complexidade que nos marcam como verdadeiramente humanos, de dar conta de contradições e falhas. O Relatório McCarrick é a evidência mais convincente até o momento de que o apelido “O Grande” foi dado muito cedo. Em vista disso, o relatório também serve como um alerta para não tirar conclusões precipitadas sobre a própria crise de abusos.

João Paulo II, confrontado com o escândalo mais prejudicial que a Igreja enfrentou em séculos, ignorou as advertências perturbadoras das vítimas e dos bispos encarregados de cuidar do rebanho e, em vez disso, abraçou a adulação e o conselho de abusadores em série. Ao fazer isso, ele se tornou não uma figura da coragem que insistentemente exigia dos outros, mas o exemplo mais destacado de uma cultura hierárquica corrupta responsável pela perpetuação da desgraça do abuso.

Os editores desta publicação prestam um grande serviço à Igreja e às vítimas de abuso sexual, pedindo aos bispos dos Estados Unidos que ponham um freio no culto a João Paulo II. De fato, é hora de controlar o culto que cresceu em torno de uma versão extravagante de super-herói de um Papa.

O maior valor do recente relatório, entretanto, não está em estabelecer o peso da culpa pelo desastre de McCarrick, embora isso seja significativo. Seu maior valor é estabelecer que, apesar de todas as suas lendárias conquistas na frente internacional, em casa João Paulo II era um membro bastante prosaico de uma cultura que tem profundas doenças subjacentes que se manifestaram na crise dos abusos. O que ele fez, que merece condenação hoje, não foi extraordinário à época. Ele fez o que era esperado de alguém profundamente envolvido e recompensado por essa cultura. Ele a protegeu a todo custo, ignorando advertências críveis sobre McCarrick, assim como outro de seus favoritos, Marciel Maciel Degollado, fundador dos corruptos Legionários de Cristo. Os custos têm sido globalmente destrutivos para a credibilidade e autoridade da igreja.

Todos nós gostaríamos que João Paulo II tivesse agido de maneira mais humana e menos arrogante com os que emitiram as advertências e com as vítimas. Isso teria poupado a igreja de muitas dores no curto prazo. Mas isso apenas teria atrasado o inevitável desdobramento de uma cultura que é totalmente masculina, supostamente celibatária, profundamente secreta, altamente privilegiada e baseada em grande medida em séculos de pensamento e antropologia falhos sobre as mulheres. Estava destinado a ter problemas.

Observe a paisagem episcopal dos EUA durante a era João Paulo II e observe semelhanças impressionantes com o exemplo do Papa. Veja os cardeais Anthony Bevilacqua da Filadélfia, Roger Mahony de Los Angeles, Bernard Law de Boston, o arcebispo Rembert Weakland de Milwaukee, para citar alguns. Todos eles, de maneiras diferentes, foram figuras admiráveis, muitas vezes notáveis promotores do evangelho social e defensores da verdade e da justiça na cultura mais ampla. Mas todos eles, em vários graus, foram, como o Papa que os elevou a cardeais, subservientes à cultura que lhes deu status e privilégios. Até o cardeal Joseph Bernardin, de Chicago, o primeiro a instituir reformas e estabelecer um conselho de revisão, era conhecido por ter protegido padres abusadores, protegendo-os de processos judiciais e transferindo-os entre atribuições.

A questão é que ninguém possuía a voz profética que teria feito a diferença e revelado a horrível verdade sobre o tema. Todos eles, alguns de forma mais flagrante do que outros, envolveram-se em encobrimento e desrespeito implacável pelas vítimas e suas famílias. Seus exemplos foram repetidos incessantemente nas fileiras da hierarquia.

A reformulação de regras e estatutos e a busca de prestação de contas irão satisfazer algumas das falhas. Essas ações, no entanto, são apenas um pequeno passo no caminho para a verdade da questão, uma verdade que em sua plenitude reside na transformação da cultura, não apenas na mudança de estatutos.

A sabedoria sobre aonde ir a partir daqui está lá fora. Consulte os pensamentos do padre Thomas Doyle ou do teólogo jesuíta James Keenan. Consulte os escritos do falecido Richard Sipe ou o trabalho de Patrick Wall, ambos ex-membros da ordem beneditina que se tornaram defensores incansáveis das vítimas de abuso. E não ignore o que considero um dos insights mais profundos oferecidos no processo de busca de um caminho a ser seguido, os pensamentos da irmã Carol Zinn, sobre a necessidade de transformar relacionamentos antes de reequipar as estruturas institucionais.

Evidências exaustivas da profundidade e amplitude da corrupção existem nos arquivos do site Bishop Accountability (acesse aqui), um dos mais extensos repositórios de materiais de escândalos de abuso existentes.

Os itens acima representam apenas alguns notáveis entre muitos recursos valiosos disponíveis e amplamente ignorados pelos membros da hierarquia ao lidar com o escândalo.

O Relatório McCarrick é um passo extremamente importante na conciliação com a verdade, o que levaria para verdades mais essenciais. Mas esse é apenas um passo e, como a maioria dos outros, desde o primeiro escândalo escancarado em 1985, foi inspirado por mais uma rodada de más notícias veiculadas por investigações da mídia ou procedimentos legais.

A cultura hierárquica tem sido publicamente humilhada e castigada. Sua mística se foi, sua autoridade e credibilidade estão esfarrapadas. Nessa violação, o papel da Igreja Católica nos Estados Unidos é cada vez mais moldado por aqueles que possuem riquezas e por suas organizações, que estão além do controle da Conferência. Aqueles de nós que sobraram nos bancos da Igreja devem se perguntar: onde está a autoridade? De quem é a voz que seguimos?

Os passos ainda não dados envolvem um trabalho interior muito mais profundo por parte daqueles que ainda investem e são muito recompensados pela cultura da qual deveriam estar dispostos ou capazes de enfrentar. Eles devem estar dispostos a se fazer perguntas fundamentais sobre o significado da ordenação, o papel dos ordenados na comunidade mais ampla, as consequências de proibir as mulheres no reino dos ordenados, o papel do privilégio e do sigilo no governo da Igreja. Eles têm que decidir se o modelo para bispos é príncipe ou servo, e o que essa decisão pressagia para sua credibilidade e liderança no futuro.

 

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