30 Outubro 2013
A eleição do Papa Francisco em março anunciou uma temporada de surpresas para a Igreja Católica, mas talvez nenhuma seja tão inesperada – e inquietante para os conservadores – como o ressurgimento do falecido cardeal de Chicago, Joseph Bernardin, como modelo para o católico norte-americano do futuro.
A reportagem é de David Gibson, publicada no sítio Religion NewsService, 26-10-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Embora não haja nenhuma indicação de que Francisco conheça os escritos de Bernardin, falecido em 1996, muitos dizem que as declarações do papa evocam repetidamente ensinamentos com a assinatura de Bernardin sobre a "ética consistente de vida" – a ideia de que a doutrina da Igreja defende os pobres e vulneráveis do ventre ao túmulo – e sobre como encontrar um "terreno comum" para curar as divisões na Igreja.
Ironicamente, o ressurgimento de Bernardin – um homem que era admirado por um jovem de Chicago chamado Barack Obama – está expondo as próprias brechas que ele buscava superar, especialmente entre os conservadores, que pensavam que a sua ampla visão do catolicismo tivesse sido enterrada com ele no cemitério de Monte Carmelo, fora de Chicago.
Francisco, por exemplo, sublinha repetidamente a justiça econômica e o cuidado dos pobres como prioridades para os católicos, e advertiu que a Igreja se tornou "obcecada" com algumas questões, tais como aborto, contracepção e homossexualidade, e precisa de um "novo equilíbrio".
O novo papa também tem procurado dirigir a hierarquia para longe da política conservadora, na direção de uma visão ampla do catolicismo "que não é só de cima para baixo, mas também horizontal" – focada no diálogo dentro da Igreja e com o mundo em geral.
"O ponto que a ética consistente de Bernardin apresenta é exatamente o mesmo ponto que o papa Francisco está apresentando – olhemos para o quadro inteiro e não nos concentremos apenas quase que exclusivamente em três ou mais questões", disse o arcebispo Michael Sheehan de Santa Fe, Novo México, que foi amigo íntimo de Bernardin desde os anos 1970.
"Certamente eu acho que se o cardeal Bernardin estivesse vivo ele estaria muito satisfeito com o que o Papa Francisco está dizendo e fazendo", ecoou Dom Joseph Fiorenza, arcebispo aposentado de Galveston-Houston, cujo mandato, de 1998 a 2001, como presidente da Conferência dos Bispos dos EUA (USCCB), foi visto como um dos últimos no molde de Bernardin.
"A ética consistente da teoria da vida que Bernardin propôs está recebendo um segundo olhar", disse Fiorenza.
Vários outros bispos, autoridades da Igreja e observadores concordam. Mas se essas avaliações são um maná para os católicos famintos por uma nova direção na Igreja, eles são um anátema para os conservadores que acreditam que Bernardin sintetizou tudo o que havia de errado na Igreja dos EUA antes que os Papas João Paulo II e Bento XVI empurraram a hierarquia para a direita.
"A era Bernardin acabou e a máquina Bernardin não existe mais", escreveu o escritor conservador George Weigel na revista First Things em um artigo de 2011, que proclamou o fim de um tempo "em que um consenso liberal dominava tanto a vida interna da Igreja, quanto o discurso da Igreja à ordem pública".
O fato de Weigel e outros ainda estarem enfiando uma estaca no coração do legado de Bernardin – como disse Peter Steinfels em uma réplica na revista Commonweal –, 15 anos após a sua morte, é um testemunho do status que Bernardin teve e da angústia que ele ainda pode inspirar.
Na verdade, uma geração atrás, Bernardin foi visto como o clérigo norte-americano por excelência – um antigo presidente da USCCB e, depois, seu sábio residente, persuadindo a hierarquia a aprovar documentos de referência sobre a guerra e a pobreza que moldaram o debate público sobre a fé nos Estados Unidos.
No entanto, os "bispos de João Paulo II", que chegaram ao poder em 1980 e depois, viram o estilo e as visões de Bernardin como muito acomodados e muito relutantes para montar barricadas em nome de uma identidade católica mais assertiva, marcada por alguns problemas característicos, em vez de um espectro de ensinamentos.
No fim, o cardeal que defendeu a consulta e a conciliação foi rudemente posto de lado por muitos dos seus próprios colegas. Em 1996, quando ele se aproximou do fim de uma batalha pungente contra um câncer de pâncreas, Bernardin lançou a Common Ground Initiative como um último esforço para tentar acabar com a crescente polarização na Igreja.
Mas, em raras repreensões públicas contra os seus semelhantes, homens da Igreja como o cardeal Bernard Law, então em Boston, questionaram o projeto de Bernardin de formas que são muito semelhantes às críticas que Francisco tem enfrentado dos conservadores.
Agora, porém, Francisco é papa, o que dá aos acólitos de Bernardin alguma medida de esperança. Mas a verdadeira questão é se a hierarquia dos EUA não está muito distante da era Bernardin para fazer a diferença.
Em 2010, o bispo Gerald Kicanas, de Tucson, no Arizona, um padre de Chicago que serviu sob Bernardin, estava na fila para ser eleito presidente da USCCB quando os conservadores arquitetaram, ao invés, a eleição do cardeal Timothy Dolan, de Nova York, uma manobra vista como o fim definitivo da influência de Bernardin.
"Enquanto ainda existem aqueles na Conferência que gostariam de voltar aos velhos tempos (de Bernardin), o papa não está interessado nisso e, na minha opinião, nem a massa crítica dos bispos", Weigel escreveu em um e-mail.
Enquanto Weigel vê algumas semelhanças entre Francisco e Bernardin, muitos outros veem uma ampla sobreposição, e dizem que Francisco está liderando pelo exemplo, não importando se os clérigos norte-americanos veem a sobra de Bernardin ou não. Eles também dizem que a abordagem de Bernardin é mais do que nunca necessária, uma vez que a hierarquia tem se desgastado para falar a uma só voz em questões cruciais.
"Acho que a Conferência perdeu as habilidades do cardeal Bernardin", disse Sheehan.
O mesmo pode ser dito dos católicos em geral, disse o bispo Michael Warfel, de Great Falls-Billings, Montana, atual presidente da Catholic Common Ground Initiative, que tem lutado para permanecer viável desde a morte de Bernardin.
"Eu acho irônico que seja quase mais fácil para os cristãos falarem com judeus ou muçulmanos do que alguns católicos falarem uns com os outros", disse Warfel. Ele acrescentou que, como Bernardin, Francisco "está realmente proporcionando um testemunho de uma forma de liderar (...) Ele não quer apenas ter um diálogo de fachada".
O padre Thomas Nairn, especialista em ética católica que editou dois livros sobre a ética consistente de vida de Bernardin, também observa que, apesar dos ataques à pessoa de Bernardin, os princípios que ele pregava permanecem embutidos no discurso católico.
Encíclicas papais e documentos dos bispos norte-americanos, tais como o seu guia do ano eleitoral para os eleitores católicos, refletem a ética da "túnica sem costura" de Bernardin que condena a pena de morte, bem como o aborto e a pobreza. As ideias de Bernardin são fundamentais para o DNA do sistema católico de saúde, e os especialistas em ética e teólogos morais invocam as suas ideias, mesmo que a geração mais jovem prefira associá-las a João Paulo II ou a Bento XVI.
"O cardeal Bernardin sempre falou sobre a ética consistente tanto como um princípio, quanto como uma atitude", disse Nairn. O que é novo, disse ele, é que Francisco "retornou não só ao princípio da ética consistente de vida, mas também trouxe de volta o tom do cardeal Bernardin".
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Papa Francisco dá um sopro de vida nova ao legado contestado de Bernardin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU