20 Março 2019
“O pesadelo dos abusos continuará enquanto o sistema hierárquico que o criou e o sustentou existir em seu estado atual. As razões para esse fenômeno estão profundamente enraizadas nas estruturas institucionais da Igreja e nas desculpas teológicas que as sustentam.”
A opinião é do canonista Thomas P. Doyle, padre dominicano em licença, que há muito tempo atua como especialista junto com advogados que representam as vítimas de abuso sexual do clero. O artigo foi publicado em National Catholic Reporter, 19-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A chamada “cúpula” sobre a crise dos abusos sexuais do clero não foi um fracasso total. O processo e os resultados do encontro dos bispos entre os dias 21 e 24 de fevereiro no Vaticano foram claramente uma séria decepção para as vítimas-sobreviventes, suas famílias e inúmeras outras pessoas que esperavam que algo concreto aconteceria.
Os resultados podem ser compreendidos no contexto da totalidade do evento: os discursos, especialmente os das três mulheres, as deliberações dos bispos, a reação da mídia e a presença e participação de vítimas-sobreviventes de pelo menos 20 países.
Eu estive diretamente envolvido nesse pesadelo desde 1984, quando a realidade da violação sexual de inocentes por clérigos e das mentiras e do encobrimento sistêmicos por parte da hierarquia (do papado para baixo) vieram à tona a partir de diversas camadas de sigilo eclesiástico.
Em 1985, o Papa João Paulo II e vários clérigos do alto escalão do Vaticano possuíam informações detalhadas sobre aquela que estava se transformando rapidamente na pior crise da Igreja desde a Idade das Trevas.
Desde então, bispos de vários níveis da burocracia da Igreja têm se empenhado em uma retórica quase ininterrupta sobre a questão, que tem sido uma mistura de negação, de repasse da culpa, de minimização, de explicações (a mais bizarra é que se trata da obra do diabo), de desculpas, de expressões de pesar, de promessas de mudança.
A retórica tem sido acompanhada por procedimentos, políticas, protocolos e algumas mudanças na lei canônica. O encontro de fevereiro não foi uma exceção.
Não houve revelações, declarações, discursos ou promessas de qualquer pessoa envolvida nas reuniões que fossem novos, incluindo as importantes declarações da Ir. Veronica Openibo, da Sociedade do Santo Menino Jesus, de Linda Ghisoni e de Valentina Alazraki. Tudo o que foi dito já havia sido proclamado publicamente por alguém de dentro do sistema da Igreja, dentre as vítimas e sobreviventes ou por seus defensores.
O outro elemento que se encaixa bem no padrão de resposta dos bispos ao longo dos últimos 35 anos é que eles fizeram promessas, mas não fizeram nada. As pessoas têm implorado aos bispos durante anos que parem de falar sobre isso. Que parem o fluxo interminável de trivialidades vazias e de promessas vazias e que façam algo. Infelizmente, a crença de longa data da hierarquia de que suas palavras são suficientes para mudar a realidade tem sido completamente inútil.
A coletiva de imprensa final anunciou três ações concretas prometidas: uma declaração papal sobre como lidar com acusações de violação sexual dentro da Cidade do Vaticano; forças-tarefa de especialistas para ajudar as dioceses a lidarem com denúncias de abuso; e um manual sobre como responder às acusações. Algo dificilmente revolucionário!
Um plano para lidar com denúncias na Cidade do Vaticano é tão relevante quanto um plano para lidar com elas na Antártida. As outras duas promessas, no entanto, estão longe de serem novas.
Em 1985, eu trabalhei com outros dois homens que descobriram essa confusão desde o início. O advogado Ray Mouton, o padre-psiquiatra Michael Peterson e eu preparamos um manual chamado “The Problem of Sexual Molestation by Roman Catholic Clergy: Meeting the Problem in a Positive and Responsible Manner” [O problema da moléstia sexual por parte do clero católico romano: enfrentando o problema de maneira positiva e responsável, disponível aqui em inglês]. Ele tinha cerca de 120 páginas e continha artigos profissionais sobre pedofilia.
Junto com o manual, também apresentamos um plano para a criação de grupos de especialistas em várias áreas, para ajudar os bispos que solicitassem assistência. Isso foi chamado de “Equipe de Intervenção de Crise” e foi principalmente uma criação de Mouton. Também instamos os bispos a criarem uma comissão para promover pesquisas atualizadas sobre praticamente todas as dimensões concebíveis de violação sexual de menores por parte do clero.
O que aconteceu? Não apenas rejeição, mas também insultos irracionais. A liderança da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos rejeitou o manual, dizendo que eles já sabiam tudo o que ele continha. Eles rejeitaram o plano de assistência, alegando que não poderiam impô-lo às dioceses.
A ideia da comissão foi fortemente apoiada por ninguém menos do que o cardeal Bernard Law e o bispo Anthony Bevilacqua. No entanto, duas semanas depois de discutirmos com o representante de Law, o então bispo Bill Levada, o plano foi cancelado abruptamente pela liderança da Conferência. Nenhuma razão foi dada, e nenhum esforço foi feito para substituí-lo.
Uma das respostas mais imbecis da Conferência Episcopal foi equiparar o plano à criação de uma equipe da SWAT [polícia especializada] a ser imposta aos bispos.
Finalmente, o insulto. Um porta-voz do Escritório do Conselho Geral dos bispos anunciou em uma coletiva de imprensa que nós três preparamos o manual e os planos de ação por um único motivo: encher os nossos bolsos vendendo os nossos serviços aos bispos.
Pós-escrito à essa profundidade dos bispos: um arcebispo, agora falecido, comentou comigo em uma recepção na embaixada vaticana: “Não se preocupe com tudo isso, Tom. Ninguém vai processar a Igreja Católica”...
Essa informação de fundo de 35 anos atrás é importante, porque foi um presságio das coisas que estavam por vir. Desde aquela época, tem havido uma constante tensão entre as vítimas-sobreviventes, as suas famílias e seus defensores, e o papado e a hierarquia. As frustradas expectativas de ação, de qualquer ação da hierarquia, não são surpreendentes, mas estão de acordo com o legado defensivo dos bispos. Tudo o que eles fazem tem que ser feito nos termos deles e no tempo deles, ou é ignorado.
Mas essa tática foi um desastre por duas razões: primeiro, os bispos nunca esperaram que as vítimas - sobreviventes encontrariam a sua voz, se organizariam e assumiriam o controle da história das violações sexuais, e, segundo, os sistemas jurídicos seculares em um país depois de outro estão tratando os líderes da Igreja do mesmo modo que tratariam qualquer pessoa envolvida em uma ação criminosa. A deferência que protegeu os bispos durante séculos está rapidamente murchando.
Aqueles que estão lutando para encontrar um olhar positivo sobre o encontro, que estão procurando razões para colocar a liderança institucional em uma boa luz pelo seu próprio bem, não parecem ver que não se trata de resgatar o papa e os bispos. Trata-se de justiça para os sobreviventes.
Depois de 35 anos de trivialidades piedosas, de promessas vazias, de desculpas infundadas, de demonização das vítimas e de lutar contra a marcha da justiça todas as vezes, o Papa Francisco e os bispos deveriam perceber que uma extensão do legado de comportamento defensivo passado cairia diretamente na cara deles, e isso aconteceu. A realidade, quer o papa goste dela ou não, é que a Igreja institucional não pode consertar a si mesma. Suas tentativas anteriores fracassaram. As tentativas futuras, como o esquema para que os arcebispos metropolitanos gerenciem a investigação de bispos acusados de abuso ou de cumplicidade, terminarão da mesma forma que todas as outras tentativas geridas pela Igreja: em um fracasso.
Vamos agora aos aspectos positivos. O fato de o papa ter convocado as lideranças de todas as Conferência Episcopais do mundo é um grande feito em si mesmo. Não importa como você o veja, esse deveria ser um sinal de que o papa leva a questão a sério e, esperançosamente, pela maioria das razões certas.
Ele disse que o objetivo era conscientizar os bispos e educá-los sobre a seriedade e a toxicidade dos abusos sexuais (algo que eles deveriam saber antes mesmo de irem ao seminário). Essa é uma ordem muito, muito elevada à luz das décadas de comportamento dos bispos em todo o mundo. Ainda, a conferência deu voz a algumas pessoas que não mediram palavras e as proferiram diretamente, sem suavizar a mensagem com desculpas ou elogios falsos sobre como é maravilhoso ter os bispos e papas todos juntos.
No entanto, a mesma coisa aconteceu no histórico encontro dos bispos norte-americanos em Dallas em 2002. Dada a história coletiva dos bispos nos Estados Unidos desde então, é óbvio que a inclusão de vítimas e sobreviventes de fala direta naquela época era para se exibir, e não para esclarecer. Só podemos esperar e rezar para que desta vez seja diferente.
A cúpula vaticana não produziu resultados decisivos e orientados para a ação, apenas mais trivialidades e promessas. Eu considero isso positivo, porque deveria tirar qualquer dúvida sobre se o Vaticano e a hierarquia têm a capacidade ou a vontade de dar os passos radicais essenciais para consertar o problema.
Também é positivo porque mostrou aquilo que tem sido óbvio há tanto tempo: a Igreja respondeu e continuará respondendo às violações sexuais e às suas vítimas de um modo pastoral e decisivo, mas são os homens e mulheres leigos do povo de Deus, e não o clero, que têm sido e continuarão sendo a força motriz nisso.
O resultado mais impressionante dos quatro dias em Roma não foi nada que o papa ou os bispos disseram ou fizeram, mas sim o que as suas reuniões inspiraram e o fato de ter sido um encontro sem precedentes entre vítimas, sobreviventes e seus apoiadores de todos os cantos do globo. Eles estavam organizados, articulados e determinados. Enquanto os participantes se reuniam no Vaticano, o flagelo de séculos de violação sexual e de estupro por parte de clérigos de todos os níveis – a única razão para a presença deles – foi claramente proclamado para a Igreja e para o mundo por aqueles que o tinham experimentado.
O contraste gritante entre o que estava acontecendo no nível oficial da Igreja e o que estava acontecendo nas ruas aumentou ainda mais a credibilidade, a simpatia e o apoio aos sobreviventes e seus apoiadores, e não apenas os que estavam em Roma, mas também os inúmeros outros em todo o mundo a quem eles representavam.
O fenômeno do abuso do clero é a pior crise que a Igreja já experimentou em mais de mil anos. A Reforma Protestante e sua continuação, o Concílio de Trento, diziam respeito à doutrina, às estruturas eclesiásticas e a clérigos ineptos. Agora, trata-se de algo muito pior, a pandemia de violação sexual e de estupro de incontáveis pessoas vulneráveis, especialmente crianças, e a autorização sistêmica a isso por parte dos papas e da hierarquia.
Quando tudo isso acabará e o que é necessário para consertá-lo? As respostas são óbvias, mas elas invocam tanto medo na elite clerical que eles não sequer capazes de discuti-las. Esse pesadelo continuará enquanto o sistema hierárquico que o criou e o sustentou existir em seu estado atual. As razões para esse fenômeno estão profundamente enraizadas nas estruturas institucionais da Igreja e nas desculpas teológicas que as sustentam.
Será necessário um processo radical e fundamental de mudança até que toda a Igreja realmente reflita aquilo que ela deve ser, o povo de Deus.
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Cúpula sobre abusos alcançou algo, mas não o que o papa ou os bispos esperavam. Artigo de Thomas Doyle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU