21 Mai 2020
Este momento particular da história da Igreja australiana fornece a esse documento uma excepcional janela de oportunidades: ele forneceu aqui um modelo de governança sinodal da Igreja que a Igreja Católica global pode adotar.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado em National Catholic Reporter, 19-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há sinais de que a resposta da Igreja Católica à crise dos abusos sexuais está chegando agora a questões institucionais mais profundas. Em particular, o modo como as Igrejas locais – paróquias e dioceses – são governadas.
Nos últimos anos, um exemplo singular que poderia trazer notícias encorajadoras veio da Igreja australiana.
Desde 2017-2018, a crise dos abusos assumiu uma nova dimensão, graças à revelação de casos (como o desonrado ex-cardeal Theodore McCarrick) e aos extensos encobrimentos identificados e publicados nos relatórios de investigações nacionais e regionais (como como na Austrália, no Chile e na Pensilvânia).
A nova fase da crise se concentrou no envolvimento direto de bispos, cardeais e do Vaticano. Também identificou que a crise não se restringe às crianças e também envolve religiosas e outras pessoas vulneráveis – e se tornou uma crise global com enormes repercussões sobre as relações entre Igreja e Estado em vários países.
A nova fase da crise dos abusos também mostrou uma grande complexidade: não se trata apenas de uma crise legal e ética, mas também teológica e de modelos de governo da Igreja.
O Papa Francisco reenquadrou o escândalo como algo que deve levar a Igreja à conversão. Devemos considerar todos os diferentes níveis que essa conversão deve alcançar: é uma conversão pastoral e teológica, assim como uma conversão de estruturas eclesiais.
A Igreja australiana desempenha um papel particular e único nessa conversão, por várias razões.
A Comissão Real de Respostas Institucionais ao Abuso Sexual Infantil do governo australiano (2013-2017) realizou uma investigação aprofundada e abrangente sobre muitas organizações. Esse processo investigativo produziu uma exposição condenatória dos abusos, não apenas nas instituições católicas, mas também em toda a sociedade australiana.
As conclusões da comissão sobre a Igreja Católica destacaram grandes falhas no governo e na liderança eclesiais. Em sua resposta em agosto de 2018 ao relatório final da comissão, os bispos australianos e as ordens religiosas do país aceitaram a recomendação da comissão de que houvesse uma revisão da governança e da gestão das dioceses e paróquias da nação.
Os bispos e as ordens religiosas disseram que a revisão deveria ser conduzida “à luz da eclesiologia católica” e confiaram o trabalho a um novo grupo consultivo de implementação. Esse grupo, por sua vez, estabeleceu uma Equipe de Projeto de Revisão da Governança.
Eu tive a honra de fazer parte dessa revisão, como um dos quatro consultores externos convidados pela equipe do projeto de revisão, cujo trabalho ocorreu entre abril de 2019 e abril de 2020. Durante a primeira semana de março de 2020, todo o grupo se envolveu em um trabalho intensivo, alojado na antiga estação de quarentena (Q Station) em Manly, na costa de Sydney – um local irônico para o seminário, dada a pandemia que seria declarada poucos dias depois.
Sob a liderança do juiz Neville Owen (chefe da equipe), Jack de Groot (presidente do grupo consultivo) e de Anna Tydd (diretora executiva do grupo consultivo), éramos um grupo de 18 fiéis católicos, homens e mulheres – um bispo, três padres e uma maioria de membros leigos representando uma ampla e variada expertise.
Durante essa semana intensiva, o grupo refletiu sobre a tarefa de receber as recomendações da Comissão Real em uma área-chave: o governo da Igreja local.
Depois de 20 rascunhos, o título do relatório final de 208 páginas é “The Light from the Southern Cross: Promoting Co-Responsible Governance in the Catholic Church in Australia” [A luz do Cruzeiro do Sul: promovendo uma governança corresponsável na Igreja Católica na Austrália]. No início de maio, a versão final do relatório foi submetida aos bispos e às ordens religiosas, que decidirão como usar o relatório e suas recomendações.
Como a questão ainda está sendo considerada, as recomendações que fizemos não podem ser discutidas com detalhes aqui. Mas o nosso relatório será estudado por muitos anos, por teólogos, historiadores da Igreja, canonistas e todos os interessados em conectar a reforma espiritual e institucional na Igreja Católica.
Esse relatório pode se tornar um exemplo de como uma Igreja local pode reformar a sua estrutura de governo. Nenhuma Igreja local está isenta dessa tarefa.
Minha experiência com esse grupo foi importante e permanecerá inesquecível: não apenas em termos da minha vida profissional, mas também da minha vida como católico. Esse grupo foi guiado por um verdadeiro espírito colegial e sinodal, um genuíno sensus Ecclesiae – cidadania obediente, mas também corajosa na Igreja, local e global.
A experiência da Igreja australiana ao lidar com a crise dos abusos foi interpretada no grupo com uma sabedoria capaz de ficar longe da fácil exploração ideológica do escândalo. O grupo estava ciente do perigo de armar a crise e se recusou a buscar refúgio em uma explicação causal, simplista ou popular do que aconteceu.
O trabalho do grupo e o nosso relatório promovem um desenvolvimento na governança da Igreja rumo a um modelo sinodal corresponsável, que envolve muito mais contribuições dos leigos, particularmente das mulheres, em todos os níveis.
O nosso relatório se enraíza na experiência australiana, mas está ciente da dimensão global e universal da Igreja Católica – do ponto de vista cultural, canônico e teológico.
É uma proposta que recebe o convite de Francisco para uma conversão pastoral para a questão específica da governança da Igreja, mas também está enraizada em uma compreensão teológica da governança da Igreja com a necessária profundidade histórica, sensibilidades culturais e desafios financeiros.
A Igreja australiana tem sido um dos epicentros da crise dos abusos sexuais. Em certo sentido, a crise ainda está se desenrolando, se observarmos as consequências da absolvição do cardeal George Pell em abril e, quatro semanas depois, da publicação das conclusões da Comissão Real sobre o que Pell sabia quando era padre na Diocese de Ballarat nos anos 1970, muito antes de se tornar cardeal.
Mas a Igreja australiana também está tentando encontrar um caminho para atravessar e sair dessa crise de um modo que não apenas reflita as necessidades da sociedade em que vive, mas também de uma forma que possa indicar um caminho possível para outras Igrejas nacionais.
“A luz do Cruzeiro do Sul” ressalta, para a Austrália, uma forma de discernir um caminho sinodal: uma nova práxis da governança da Igreja.
Este momento particular da história da Igreja australiana fornece a esse documento uma excepcional janela de oportunidades: ele forneceu aqui um modelo de governança sinodal da Igreja que a Igreja Católica global pode adotar. Ao mesmo tempo, a Igreja australiana está preparando outro caminho sinodal – na forma de um Concílio Plenário que provavelmente começará a se reunir em 2021.
Referindo-se ao nosso relatório, os bispos australianos divulgaram um comunicado de imprensa no dia 18 de maio, indicando que receberam um relatório “sobre as práticas de governança da Igreja Católica e possíveis reformas”.
O arcebispo de Brisbane, Mark Coleridge, presidente da Conferência Episcopal, anunciou: “Para fazer justiça, os bispos agora aceitarão conselhos, considerarão o relatório em profundidade, promoverão discussões em nível provincial e, além disso, se prepararão para uma discussão completa em sua plenária de novembro. Isso permitirá, então, que eles publiquem o relatório e respondam a ele”.
Coleridge também observou que o relatório, que trata de tantos aspectos da governança da Igreja, se tornará necessariamente uma contribuição significativa para o trabalho contínuo de reflexão e discussão orantes que levará às duas assembleias planejadas do Concílio Plenário.
As apostas são muito altas. “A luz do Cruzeiro do Sul” pode ajudar a Igreja a encontrar uma saída da crise dos abusos: não apenas na Austrália, mas também em todo o mundo.
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Novo relatório australiano pode ajudar Igreja a sair da crise dos abusos. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU