18 Novembro 2020
"A presidência do católico Biden não será capaz de sanar o cisma em andamento: um cisma não só por linhas ideológicas horizontais no eixo direita/esquerda, mas também em linhas verticais. Em uma igreja católica dos EUA que nos últimos anos se tornou cada vez mais receptiva às classes abastadas, burguesas e suburbanas, mas menos representativa das instâncias das classes pobres e marginalizadas, há uma desconexão entre o episcopado e sua própria igreja nos EUA e no Vaticano. A alienação entre identidades católicas muito diferentes do ponto de vista geracional, social e étnico levou à formação de subigrejas católicas: o índice de hostilidade mútua entre essas subigrejas vai muito além do fenômeno dos novos movimentos eclesiais", escreve Massimo Faggioli, professor da Villanova University, em artigo publicado por Huffington Post, 17-11-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Existem paralelos significativos entre a oposição "católica" contra o Papa Francisco desde 2013 e a formação de uma frente católica trumpiana, destinada a permanecer, embora sob outro nome, após a saída da Casa Branca do autointitulado magnata de Nova York. Os últimos cinco anos, entre 2016 e 2020, representaram um momento extraordinário na história das relações entre o papado e a presidência dos Estados Unidos.
Em alguns aspectos, o fenômeno Trump foi um sintoma do não ralliement dos católicos estadunidenses ao Papa Francisco, ralliement tentado com a viagem papal à costa leste dos Estados Unidos em setembro de 2015. Na época Trump já havia anunciado sua intenção de concorrer à presidência, mas para a maioria dos observadores, parecia uma perspectiva extravagante e improvável. Com o início de 2016, durante as primárias republicanas, Trump durante a coletiva de imprensa voando do México, visto que o papa havia rotulado as políticas de migração propostas pelo candidato Trump como “não cristãs”, respondeu definindo “a declaração do Papa Francisco como vergonhosa”.
O claro curso de colisão com o papa jesuíta não criou obstáculos, aliás ajudou o candidato Trump a derrotar todos os outros candidatos republicanos (nenhum dos quais, nem mesmo os católicos, estavam inclinados a defender Francisco). Como presidente, Trump adotou um duplo registro nas relações com o Vaticano. A visita de Trump e da primeira-dama ao Vaticano em maio de 2017 deu a impressão de uma certa normalidade na diplomacia da nova administração. Mas aquele audiência segunda o protocolo foi acompanhada pelo plano de Trump e dos operadores próximos a ele (Steve Bannon e Breitbart News, Newt Gingrich) de estabelecer em Roma, também graças a prelados hostis a Francisco, um posto avançado para o desenvolvimento de um projeto político que visava subverter o status quo tanto na Europa como na Igreja Católica.
A ideia era implantar no coração simbólico e administrativo do catolicismo aquela Vendeia político-religiosa que é o trumpismo e fazer de Roma a capital paralela de uma nova Europa antieuropeia. Do lado dos Estados Unidos, impérios midiáticos como Fox News e EWTN (uma espécie de Radio Maria "made in USA", muito seguida entre os católicos conservadores e não só nos Estados Unidos) fomentavam o confronto, dando continuidade à narração sobre o papado do Papa Francisco iniciada em 2013 que, se não favorece um cisma formal, é típica de um catolicismo nacionalista com um senso muito pobre de unidade da Igreja.
Entre 2018 e 2019 aquele projeto político-religioso fracassou, como se viu na frustração expressa em setembro pelo secretário de Estado Mike Pompeo com seu extraordinário ataque à diplomacia da Santa Sé pela renovação do acordo provisório de setembro de 2018 com a China. Mas no plano eclesial, é claro que o problema do alinhamento entre trumpismo e antibergoglismo continuará a afligir tanto a Igreja estadunidense quanto as relações transatlânticas com Roma.
A presidência do católico Biden não será capaz de sanar o cisma em andamento: um cisma não só por linhas ideológicas horizontais no eixo direita/esquerda, mas também em linhas verticais. Em uma igreja católica dos EUA que nos últimos anos se tornou cada vez mais receptiva às classes abastadas, burguesas e suburbanas, mas menos representativa das instâncias das classes pobres e marginalizadas, há uma desconexão entre o episcopado e sua própria igreja nos EUA e no Vaticano. A alienação entre identidades católicas muito diferentes do ponto de vista geracional, social e étnico levou à formação de subigrejas católicas: o índice de hostilidade mútua entre essas subigrejas vai muito além do fenômeno dos novos movimentos eclesiais e lembra a experiência histórica das igrejas nacionais de imigrantes entre o final do século XIX e o século XX.
As tentativas políticas de solicitar um cisma estadunidense falharam, mas a derrota de Trump também é a remoção de um bode expiatório para esconder aquele desnível que continuará a existir entre o Papa Francisco e o catolicismo dos EUA - tanto o catolicismo trumpiano quanto aquele liberal.
Os documentos mais importantes deste pontificado falam aos Estados Unidos de maneira particularmente direta: Laudato Si', Amoris Laetitia e Fratelli Tutti. A maneira de Francisco ver o mundo não é antiestadunidense, mas certamente pós-estadunidense. Em muitas questões que estão na origem da "guerra cultural" dos EUA, Francisco pediu uma trégua, não proclamou um vencedor. O catolicismo liberal estadunidense corre o risco de se enganar com a ilusão de ter vencido as "guerras culturais", quando na realidade trata-se apenas uma batalha - que leva à Casa Branca um católico de 78 anos como Biden, que não representa o catolicismo EUA do século XXI.
Há claramente um paralelo entre o sedevacantismo escorregadio de católicos de direita desde 2013 e as tentativas de pintar Biden como não-católico devido à sua postura a favor do aborto legal. A história do catolicismo estadunidense hoje é inseparável da polarização das identidades políticas: a situação do rompimento radical dentro da Igreja EUA está destinada a continuar. A eleição de Biden propicia um tempo precioso enquanto Francisco ainda é papa, mas o dissenso subversivo dos católicos financiados pelas elites financeiras contra o radicalismo evangélico de Francisco e o catolicismo de Biden não desaparecerá no dia da posse. O papel do Monsenhor Viganò, ex-núncio apostólico em Washington, como arauto do trumpismo católico (reconhecido publicamente pelo próprio Trump), em algum momento será assumido por outra pessoa. Nos EUA, personagens desse tipo, clérigos ou leigos, são abundantes. Mas a mancha de agosto de 2018 permanece, quando mais de duas dezenas de bispos apoiaram Viganò e suas ameaças ao Papa Francisco.
A paralisia do episcopado é eclesial, bem como em muitas questões públicas. Os bispos estadunidenses recusaram-se a se pronunciar, neste momento crítico da democracia nos EUA de 2020, sobre a necessidade de respeitar o processo eleitoral e a imoralidade da manipulação dos constituintes com gerrymandering e a limitação do exercício do direito de voto (sobre o qual os republicanos têm se concentrado por cerca de vinte anos).
Durante décadas, a cena foi dominada por uma polarização e radicalização inegáveis das posições sobre questões morais e éticas entre os dois lados, que são o espelho da polarização e da radicalização dentro do mundo religioso EUA: nas questões de ética sexual, familiar e matrimonial, identidade sexual; sobre a imigração; sobre a liberdade religiosa.
Mas hoje estamos em uma fase diferente e posterior àquela que se iniciou nas décadas de 1970 e 1980. O novo fator é o reaparecimento na cultura dominante de ideias zumbis (ressentimento contra a ciência, imaginários neo-medievais, teorias da conspiração mundial) que a teologia acadêmica de formação euro-atlântica tinha considerado mortas e enterradas. Como o ex-presidente Obama disse recentemente, esta é uma crise epistemológica - não saber mais distinguir fatos verdadeiros de notícias falsas, o que representa um risco mortal para a democracia.
Não é um problema apenas dos EUA, quando se pensa no que diz o padre Livio Fanzaga na Rádio Maria. Mas a Igreja Católica nos Estados Unidos é filha de um projeto de dois séculos que havia culminado, na segunda metade do século XX, com a contribuição da experiência católica estadunidense tanto para o ideal democrático EUA quanto para o ensinamento da Igreja sobre a liberdade religiosa. Mas isso foi no século vinte. O caos moral e cosmológico encarnado por Trump e que se infiltrou no catolicismo continuará a minar o consenso político-religioso na base à democracia nos EUA, mas também a viabilidade do próprio projeto católico estadunidense.
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O católico Biden não será capaz de sanar o cisma em curso nos Estados Unidos. Crise estadunidense e crise católica: dois fenômenos paralelos. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU