13 Novembro 2020
“A crise existencial do catolicismo nos Estados Unidos não foi resolvida. A democracia corre perigo quando há uma involução em sua alma religiosa, da qual a Igreja Católica desempenha um papel particular e único. Graças a Joe Biden, o Partido Democrata falou com mais frequência e de forma convincente em 2020, com uma linguagem inteligível para eleitores religiosos. Mas ainda há um longo caminho a percorrer antes que possa arrancar dos Republicanos a bandeira autoproclamada do partido de Deus”, escreve Massimo Faggioli, professor da Villanova University, em artigo publicado por La Croix, 12-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O fato que os Estados Unidos estavam inaptos para saberem o nome do seu novo presidente há muitos dias depois de as urnas terem fechado foi como um tipo de punição corporal para um país forçado a se confessar de forma dolorosa.
Agora sabemos que será Joseph R. Biden Jr., um católico, que começou o processo de cura moral e corporal que Donald Trump infligiu sobre o país pela forma que conduziu a pandemia de coronavírus e a crise da globalização.
Biden é o segundo católico, depois de John Fitzgerald Kennedy (1961-1963), a ser eleito para o mais alto cargo do país. E ele é somente o quarto católico – seguido de John F. Kerry (2004), Kennedy e Alfred E. Smith (1928) – a ser candidato à Casa Branca.
A presidência estadunidense não é apenas um cargo político. É também um cargo com aspectos morais e religiosos. E Joe Biden assumirá a pasta no tempo em que as identidades políticas no país assumiram uma intensidade teológica e dogmática.
Um realinhamento das relações políticas entre Washington, o Vaticano e o catolicismo estadunidenses não é desanexado do resto do mundo. Pelo contrário, aí está o centro de convulsões no corpo da Igreja, uma das consequências da crise de globalização e da ordem mundial.
Na presidência de Biden pode se esperar um realinhamento de relações entre os Estados Unidos, mesmo que haja algumas incógnitas importantes em certas questões internacionais.
Mas esse realinhamento terá que lidar com uma Igreja profundamente dividida em solo americano, bem como com um catolicismo global que também está dividido.
Um dos frutos do globalismo foi a oposição ao papa Francisco.
O papa jesuíta latino-americano expressa sua mensagem sobre as questões mais relevantes em nível público (como mulheres, homossexualidade, meio ambiente...) de maneiras e por canais diferentes daqueles usados por seus predecessores. Essa mensagem é recebida de maneiras contrastantes em várias partes do mundo.
Tem havido um confronto sem precedentes entre o governo Trump e o atual pontificado, começando logo no início com a questão da imigração e à vista de todos no mês passado, quando o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, cobrou publicamente a Santa Sé pelo acordo de 2018 com a China (que foi renovado).
Não está claro o quanto essa hostilidade aberta impactou os resultados da eleição presidencial dos Estados Unidos, mas teve um efeito muito evidente na Igreja.
Isso ajudou a aprofundar a cisão interna dentro do catolicismo americano, evidenciada por uma série de bispos e padres que continuam a apoiar Donald Trump até o amargo fim – alguns por meio do novo ecossistema de mídia católica independente e redes sociais.
Nos últimos quatro anos, a Casa Branca (por meio de funcionários como Steve Bannon e Pompeo) dirigiu uma tentativa política de dividir a Igreja em duas – a favor e contra o papa Francisco.
Um punhado de bispos americanos e vários católicos leigos de destaque deram sua bênção a essa tentativa. Mas o esforço de divisão falhou.
No entanto, a tentativa eclesial permanece, em uma Igreja nos Estados Unidos que se divide em duas como nunca antes. As “guerras culturais” tomaram a forma de guerras teológicas intra-eclesiais e expuseram o catolicismo americano ao risco de um cisma “leve”.
A presidência de Trump e as eleições de 2020 mostraram até que ponto os dois partidos eclesiais católicos se identificaram com a plataforma dos partidos políticos opostos.
Embora haja um pouco disso entre aquele grupo de católicos que apoia Biden, é muito mais óbvio entre a facção católica que apoia Trump. Ele transformou uma ortodoxia teológica proclamada em uma ortodoxia política, deixando assim muito pouco espaço para divergências argumentadas.
O fracasso moral do catolicismo institucional nos Estados Unidos pode ser visto nas tentativas desesperadas de impedir a agenda LGBTQ e na incapacidade da Igreja falar com uma voz unificada sobre a questão do racismo.
A Igreja hierárquica parecia aceitar tudo o que vinha do governo Trump sem pestanejar, exceto na questão da imigração – a questão católica estadunidense por excelência.
A Conferência de Bispos Católicos dos Estados Unidos (USCCB), por exemplo, recusou-se a dizer qualquer coisa sobre as tentativas flagrantes do Partido Republicano neste ano de manipular o processo eleitoral e impedir as minorias (muitas delas católicas) de votar.
Não se tratava apenas de afasia tática. Foi o último sinal de uma paralisia intelectual e moral que tomou conta da USCCB.
Isso já era evidente durante a presidência de Obama, quando a Conferência Episcopal não conseguiu tomar posição pública sobre as questões econômicas e sociais relacionadas à grande recessão iniciada em 2008.
É verdade que parte do catolicismo americano (embora não uma parte marginal) apoiou Donald Trump, em parte como uma manobra contra o Partido Democrata. Mas foi também uma verdadeira virada antidemocrática que representa um afastamento do último século da história intelectual da Igreja nos Estados Unidos.
A reconciliação entre o catolicismo e a democracia constitucional no século 20 faz parte da história do país.
Começando com o exílio nos EUA de Jacques Maritain e Luigi Sturzo durante a Segunda Guerra Mundial, pensadores católicos nos Estados Unidos estabeleceram as bases de uma teologia moderna da liberdade religiosa, culminando com a contribuição do teólogo jesuíta John Courtney Murray no Concílio Vaticano II (1962-65).
No entanto, em meados da década de 1980, surgiu o movimento neoconservador nos Estados Unidos, no qual os católicos desempenharam um papel central. Eles incluem pessoas e publicações como o falecido padre Richard John Neuhaus e a revista First Things.
Desde o início dos anos 2000, e então em um crescendo após a eleição de Bento XVI em 2005, os movimentos neoconservadores e teoconservadores foram se transformando em um único movimento neointegralista e neotradicionalista.
Seu credo era a rejeição do Vaticano II como forma de rejeitar a modernidade teológica e política.
Em uma época em que o establishment WASP (White, Anglo-Saxon and Protestant) estava entrando em colapso, os EUA conservador clamaram por um catolicismo que não fosse mais apenas conservador ou pós-liberal, mas abertamente antiliberal.
O modelo não era o de João Paulo II ou de Joseph Ratzinger. Agora é de Viktor Orbán, o primeiro-ministro húngaro que se autoproclama guerreiro da “democracia iliberal”.
O agnosticismo constitucional da USCCB (Conferência dos bispos norte-americanos) sufocou a habilidade dos bispos de confrontar as ameaças de Donald Trump ao sistema democrático. Os católicos dos EUA esperavam justamente que seus bispos dissessem algo.
Em vez disso, foram as mulheres religiosas – as freiras – que falaram!
Uma Igreja Católica que tenta proteger a sua própria liberdade, ao mesmo tempo que desrespeita os direitos dos outros, acabará por perder a sua própria liberdade – depois de ter perdido aquele mínimo de respeito próprio necessário para agir em praça pública.
Um presidente que ameaça as bases da comunidade política e civil é também uma ameaça à liberdade de religião e da Igreja.
A autoridade moral, o prestígio cultural e a coesão do catolicismo americano foram severamente prejudicados aos olhos de um país que está se tornando mais secular.
Especialmente quando a crise contínua de abusos sexuais continua a ser identificada como um escândalo exclusivamente católico – por mais injusto que seja, visto que o abuso é um problema que afeta todas as instituições que lidam com os jovens e os vulneráveis.
Se os Estados Unidos são um gigante doente, as igrejas do país também são. E não é apenas um problema do lado conservador do espectro.
A vida intelectual do Catolicismo do Vaticano II nos Estados Unidos atualmente se encontra em algo como uma terra de ninguém. O progressismo religioso, definido por questões sociais, se articula hoje em uma linguagem muitas vezes anti-institucional e pós-eclesial.
Isso deixou um vazio que vem sendo preenchido pelo “militantismo” católico, que é neointegralista e antimoderno, tanto na política quanto no debate intelectual. E isso vai continuar mesmo depois que Trump sair.
O resultado das eleições nos Estados Unidos também é um indicador do estado da Igreja Católica nos EUA e do pontificado de Francisco.
Funcionários próximos à Casa Branca – como Pompeo, Bannon e Newt Gingrich, este cuja esposa é embaixadora dos EUA na Santa Sé – tentaram encontrar forças simpáticas no Vaticano, Itália e Europa para criar uma ponte de um catolicismo neonacionalista aliado aos direitistas europeus.
Eles falharam.
Mas a crise existencial do catolicismo nos Estados Unidos não foi resolvida. A democracia corre perigo quando há uma involução em sua alma religiosa, da qual a Igreja Católica desempenha um papel particular e único.
Graças a Joe Biden, o Partido Democrata falou com mais frequência e de forma convincente em 2020, com uma linguagem inteligível para eleitores religiosos. Mas ainda há um longo caminho a percorrer antes que possa arrancar dos Republicanos a bandeira autoproclamada do “partido de Deus”.
O catolicismo intelectual e político de direita nos Estados Unidos hoje varia do neoconservadorismo, do qual afirma ser inspirado (embora muito seletivamente) por João Paulo II e Bento XVI, a um neo-fundamentalismo, que assume Carl Schmitt, o teórico político da era nazista, como referência.
O catolicismo político de esquerda nos EUA deve lidar com outras questões. Biden é um católico estilo João XXIII, mas seria fatal pensar que sua eleição para a presidência é um substituto de longo prazo para o catolicismo do Vaticano II que, pelo menos no contexto dos Estados Unidos, foi enfraquecido em muitos níveis.
A relação da Igreja estadunidense com a política hoje é uma reminiscência da Igreja francesa entre os séculos XIX e XX.
Mas os novos militantes católicos nos Estados Unidos parecem estar abraçando o nacionalismo reacionário de Charles Maurras muito mais do que a reconciliação de Jacques Maritain entre catolicismo e democracia.
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O fim do “cativeiro trumpiano” da Igreja estadunidense. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU