06 Setembro 2019
Há muito tempo, o Papa Francisco tem uma tendência a pisar sobre a sua própria história. Sua frase “Quem sou eu para julgar?”, de 2013, por exemplo, dita no avião papal de volta para Roma, significou que a sua viagem ao Brasil para a Jornada Mundial da Juventude foi esquecida antes mesmo que os confetes pudessem ser removidos da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro.
O comentário é de John L. Allen Jr., publicado por Crux, 05-09-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No entanto, mesmo para os seus próprios padrões, a “bomba” dessa quarta-feira, 4, foi incomum. A bordo de outro avião papal que o levava a Moçambique, o papa disse a um repórter francês que considera “uma honra ser atacado pelos norte-americanos”.
O repórter francês Nicolas Senèze, do La Croix, acaba de publicar um livro que descreve a oposição conservadora norte-americana ao papa, e Francisco respondeu em uma breve conversa durante o voo. A observação do papa constitui, assim, o capítulo mais recente daquela que tem sido, desde o início, uma relação de amor e ódio entre o primeiro papa latino-americano da história e o seu grande vizinho do Norte.
Para deixar claro, Francisco não estava falando em uma coletiva de imprensa ou em qualquer ambiente formal. Ele estava batendo papo brevemente com alguém que escreveu um livro tentando defendê-lo e, sem dúvida, só queria dizer algo de bom. No entanto, ele estava falando em um avião lotado de repórteres, e, de todos os modos, são muitas vezes as coisas ditas de modo não refletido em ambientes casuais que revelam os verdadeiros pensamentos de alguém.
À queima-roupa, quatro reações rápidas se apresentam.
Primeiro, nem todos os norte-americanos não gostam de Francisco, assim como ele também não desgosta de todos os norte-americanos. A pesquisa Pew mais recente do ano passado, que constatou uma queda acentuada na aprovação do papa devido aos escândalos de abuso sexual clerical, mostrou mesmo assim que 51% de todos os adultos estadunidenses avaliam Francisco favoravelmente, junto com 70% dos católicos estadunidenses.
Francisco claramente gosta de muitos norte-americanos, incluindo os três cardeais estadunidenses que ele nomeou – Kevin Farrell, que dirige um departamento vaticano para os leigos e as famílias, além de Blase Cupich, de Chicago, e Joseph Tobin, de Newark. São três norte-americanos de 70 novos cardeais que ele criou, ou 4%, algo nem tão terrivelmente em desacordo com a porcentagem da população católica global total que os EUA representam, que são 6%.
Além disso, Francisco também fez uma viagem bem-sucedida aos EUA em 2015, incluindo uma parada em Nova York, para a qual ele teve que inventar uma palavra inteiramente nova em italiano, “stralimitata”, ou “para além de todos os limites”, para descrever a experiência. Não consigo pensar em nenhum outro país visitado pelo pontífice para o qual ele tenha inventado neologismos para falar a esse respeito depois.
Com toda a honestidade, Francisco nunca teve problemas realmente com o católico estadunidense médio, mas sim com as elites que, em sua opinião, querem usar a Igreja para fins políticos – o que significa, é claro, fins políticos que ele não aprova.
Então, as coisas não são todas ruins.
Em segundo lugar, vamos afirmar o óbvio: muitos conservadores norte-americanos já estavam convencidos de que o Papa Francisco não gosta muito deles, e não é que o pontífice não lhes tenha dado bons motivos.
Há dois anos, por exemplo, os principais aliados de Francisco publicaram um artigo em uma revista editada pelo Vaticano acusando os católicos norte-americanos conservadores de estarem envolvidos em um “ecumenismo do ódio” com evangélicos.
Para dizer o mínimo, o último pronunciamento papal não fará nada para desfazer essas impressões. É provável que cimente o antagonismo, garantindo uma fonte permanente de resistência para praticamente tudo o que Francisco disser ou fizer por parte de um segmento influente da população católica norte-americana.
Sem dúvida, alguns dirão que esse acerto de contas estava muito atrasado, enquanto outros o veriam como outro exemplo de uma “cutucada” papal sem querer. De qualquer maneira, é uma previsão de conflito, sugerindo que, de todos os vários papéis aos quais um papa é chamado a desempenhar, “construtor de pontes”, nesse caso específico, pode não ser o ponto forte de Francisco.
Em terceiro lugar, admitamos também que a tentativa do porta-voz vaticano, Matteo Bruni, de enquadrar os comentários do papa como uma desajeitada homenagem aos EUA – “Ele sempre considera as críticas como uma honra, principalmente quando se trata de importantes pensadores e, neste caso, de uma importante nação” – merece pontos por criatividade, mas também é apenas 50% convincente.
Com certeza, Francisco provavelmente está honrado pelo fato de alguns norte-americanos o levarem a sério o suficiente a ponto de ficarem bravos com ele. Mas, vamos lá – como um latino-americano, como um católico de fora dos EUA ligado às questões de justiça social e como alguém que se vê como um tribuno do mundo em desenvolvimento, Francisco se importa com aquilo que ele vê como arrogância e privilégio estadunidenses. Isso tem ficado evidente há muito tempo, e a frase de quarta-feira está encharcada disso.
Em outras palavras, você pode girar a questão do jeito que quiser – afinal, estamos no século XXI, em que o famoso ditado de Lewis Carroll de que uma palavra “significa exatamente aquilo que eu escolho que ela signifique, nem mais nem menos” é em grande medida a moeda corrente –, mas, mesmo para esses padrões, tentar apresentar isso como um elogio é um pouco demais.
Em quarto e último lugar, reconheçamos também a ironia de que esse “papa das periferias” garantiu que será a sua atitude em relação ao centro, ou seja, os EUA, que dominará o ciclo de notícias, e não qualquer coisa que ele tentará realizar enquanto estiver na África.
É verdade que Francisco provavelmente não montou o palco naquele momento. Ele foi presenteado com uma cópia de um livro e reagiu, em vez de subir ao púlpito para pronunciar uma opinião sobre os EUA. Mesmo assim, se eu fosse de Moçambique, eu provavelmente desejaria que Francisco tivesse esperado até voltar para Roma – ou, realmente, a qualquer outro lugar – antes de agitar uma bandeira vermelha na frente da mídia global, convidando-a a ignorar a sua viagem ao meu país.
Essa talvez seja a prova final de que Francisco quis dizer o que disse. Na verdade, ele estava disposto a arriscar algo com o qual ele realmente se importa, no sentido da atenção global ao mundo em desenvolvimento, a fim de “trolar” um grupo de norte-americanos que o atormentaram desde o início – e que, sejamos sinceros, provavelmente estão ainda menos dispostos a parar agora.
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O mais recente capítulo da relação de amor e ódio do Papa Francisco com os EUA - Instituto Humanitas Unisinos - IHU