"Certamente na Rússia foi jogada a carta de que novamente estamos diante de uma possível guerra que os Estados Unidos querem travar usando os outros países".
Reproduzimos esta contribuição do arcebispo italiano Antonio Mennini, de 2002 a 2010 representante da Santa Sé na Federação Russa e desde 2008 também núncio apostólico no Uzbequistão. Destaca-se por perícia histórica e sabedoria diplomática. Os testemunhos presentes no texto são estupendos. O texto foi publicado por Settimana News, 02-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Estamos diante de uma das páginas mais sombrias e dramáticas dos últimos 70 anos. A situação está evoluindo tão rapidamente que é difícil imaginar cenários e perspectivas futuras, e mesmo os juízos sobre as causas desencadeantes desse conflito, que está assumindo proporções mundiais, mostram a cada momento seus limites.
Uma coisa é certa: o suposto ponto de vista "realista" da história, ditado por interesses de poder, políticos e econômicos, a esperança de poder resolver conflitos por meio de equilíbrios de poder se mostra mais uma vez ilusória. As loucuras - como as dos totalitarismos do século XX, que pareciam ter sido superadas para sempre - revelam-se muito vivas.
Por isso não parece utópica a posição para a qual o Santo Padre nos convida - a oração - que se torna também o ponto de partida para uma ação responsável e corajosa.
“Existem diferentes tipos de mentiras, e a mais interessante é aquela que não é entendida como pecado e vício, mas como dever. (...) No mundo atual, a mentira, reconhecida como socialmente útil, atingiu dimensões tão inauditas e deformou a tal ponto a consciência que surge o problema de uma mudança radical na relação com a verdade e a mentira, o problema do desaparecimento do próprio critério da verdade... A mentira é o primeiro fundamento dos chamados estados totalitários, que sem a mentira organizada jamais poderiam ser construídos. A mentira é inculcada como um dever sagrado, um dever para com a raça escolhida, para com o poder do Estado, para com a classe eleita. E nem sequer é reconhecida como mentira... A mentira, aliás, pode mesmo parecer a única verdade”.
"Assim escreveu Nikolaj Berdjaev no alvorecer da Segunda Guerra Mundial, não hoje de manhã, para comentar sobre a invenção de um 'genocídio' que não existia, a presença de um 'neonazismo' completamente inventado, a derrubada de todo critério de verdade, um acúmulo de falsificações tão grande que parece ouvir falar de outro mundo, de outra história, de outro universo" (Dell'Asta, editorial de La Nuova Europa).
Interessante uma homilia do metropolita Antonij de Surož, proferida em agosto de 1968: o mundo atônito assistia à invasão da Tchecoslováquia, os tanques entravam em Praga sufocando a "primavera" que tantas esperanças haviam despertado, inclusive dentro da URSS.
Diante do "cálice da ira, da dor, do sofrimento que se enche até a borda, e mais uma vez transborda", Antonij propunha aos seus paroquianos um caminho exigente, quase impossível, mas que é o "caminho de Cristo e, portanto, o nosso caminho: e consiste em abraçar, na consciência e percepção do horror que está acontecendo, tanto uns como os outros com igual amor, em abraçá-los - não com coparticipação, mas com compaixão; não com condescendência, mas com a consciência do horror diante do qual jaz a injustiça, e da cruz diante da qual se encontra a justiça... e em entender que o nosso lugar é na cruz, e não simplesmente aos pés da cruz”.
Perante o sentimento de desamparo que poderia facilmente tomar conta dos homens de boa vontade de então, exatamente como nos acontece hoje, perante à tentação de reduzir tudo a jogos de poder, de apostar nos "bons" e "maus" da vez, de pensar que tudo esteja confiado ao tabuleiro de xadrez político e diplomático, Antonij teve a coragem de propor colocar toda a esperança numa "oração pelo mundo" que, no entanto, especificava, deve ser "como derramar sangue". Não a fácil oração que levantamos em nossa quietude imperturbável, mas a oração que propicia a subida ao céu, que não dá trégua, que nasce do horror provocado pela compaixão, que não nos permite mais nos contentarmos com a nulidade, a futilidade da nossa vida, que exige que finalmente compreendamos a profundidade da vida em vez de arrastá-la indignamente: indignamente para nós, indignamente para Deus, indignamente para a dor e a alegria, os padecimentos da cruz e a glória da Ressurreição que continuamente se alternam e se entrelaçam em nossa terra".
“Cristo não escolheu - concluía Antonij -. Cristo morreu porque os justos são perseguidos e porque os pecadores vão para a perdição. Pois bem, nesta dupla unidade com os homens ao nosso redor, nesta dupla unidade com o justo e o pecador, oramos pela salvação tanto de um como do outro, imploramos a misericórdia de Deus, para que os cegos adquiram a visão, para que a justiça se afirme - não o juízo, mas a justiça que conduz ao amor, ao triunfo da unidade, à vitória de Deus”.
Nos mesmos dias, a solidariedade expressa ao povo tchecoslovaco por um punhado de dissidentes russos que saíram na Praça Vermelha com uma faixa que dizia "Pela vossa e nossa liberdade", traduzia de alguma forma, secularmente, essas palavras, mostrava a verdadeira envergadura, o potencial humano e cristão de pessoas que não se deixavam confundir com o regime em que viviam.
Um segundo texto interessante é uma homilia proferida em uma paróquia de Moscou há alguns dias: o Padre Aleksej Uminsky questionou seus paroquianos sobre o motivo pelo qual até agora "não foi criada uma autêntica devoção popular, universal dos mártires" russos do século XX, que inclusive são os avós ou bisavós de quem hoje frequenta a igreja. Preferimos rezar aos santos do passado distante, "renomados" por seus milagres, ou talvez a "Santa Bárbara, que dá nome às nossas vitoriosas forças missilísticas; ela é a santa que protege as armas estratégicas do exército russo”.
“Em vez disso, na vida dos nossos novos mártires e confessores - continuava o padre Aleksej - infelizmente, não há nenhum milagre. Nada: eles são mortos e não escorre leite em vez de sangue; eles são torturados e não se curam, e ninguém se cura tocando as suas relíquias, ninguém recebe um bônus espiritual por sua adoração. Se olharmos para seus rostos, fotografados antes de sua execução, naquelas terríveis listas de fuzilamento, nem se entende como seja possível rezar na frente deles. O que se pode pedir a essas pessoas que sofreram nos campos de concentração stalinistas? Podemos pedir-lhe a cura? Para encontrar uma casa? Para ter uma boa colheita? A felicidade da família, a sorte nos negócios? É possível pedir semelhantes coisas a essas pessoas, fotografadas antes do fuzilamento? Não, não é possível, não”.
Nos ícones, São Jorge luta contra dragões de contos de fadas, distantes da vida do dia a dia. “No entanto, nós, os humanos, encontramos dragões reais todos os dias, só que estamos habituados - salientou o padre -, aprendemos a construir armaduras, a chegar a compromissos com eles. Aprendemos a calar quando esses dragões vomitam seu ódio, fel e raiva; quando humilham os outros, torturam os outros, colocam na prisão os inocentes”.
“Os mártires e confessores do nosso tempo não quiseram conviver com os dragões, diziam a verdade; não tinham medo da verdade e pela verdade de Deus foram à morte, dando testemunho de Cristo. Em vez disso, para nós resulta cômodo conviver com os dragões, por isso rogamos aos santos antigos que nos façam viver felizes e contentes junto com os dragões... Valeria a pena que pedíssemos aos mártires de nossos dias que nos tornem verdadeiros cristãos, pessoas honestas que não têm medo dos dragões, que não têm medo de dizer a verdade, de testemunhar aquela mesma verdade divina que o Evangelho nos anuncia”.
988: Batismo da Rus', em Kiev. Até final do século XX, este estado se expande para se tornar um império. Estende-se do Mar Negro (sul) ao Mar Báltico e ao Oceano Ártico (polo norte); da Polônia (a oeste) ao Oceano Pacífico (a leste). Até 1872 o império russo se estende por 3 continentes: Europa, Ásia (Sibéria) e América (Alasca, vendida pelo imperador Alexandre II por US$ 7,2 milhões). O império russo é formado por vários povos (caucasianos, lituanos, cazaques...) e várias religiões (ortodoxos, muçulmanos, budistas, judeus).
1917: Revolução bolchevique que derruba o poder do czar. Guerra civil, autonomia de várias regiões. A URSS recompõe este império soviético, com a força e a violência.
1991: Após a perestroika, cai o regime soviético. A União Soviética é desmantelada e 15 repúblicas recuperam a sua independência, entre as quais a Rússia, que continua a estender-se até o Pacífico, a Bielorrússia e a Ucrânia. Esta queda da URSS é vivida pela maioria dos russos como uma derrota e uma humilhação. Gorbachev é visto como um traidor.
Por um lado, entre a Rússia, a Bielorrússia e a Ucrânia existem laços muito estreitos (históricos, mas também de parentesco entre os povos, devido à mistura da população no período da URSS). Cultura e língua são muito próximas, pertencem ao mesmo mundo eslavo. Por outro lado, politicamente na Ucrânia as pessoas querem a independência, veem Moscou como um conquistador que quer se impor. A era soviética e também as relações estabelecidas após 1991 nunca são relações de colaboração (tipo federalismo). Os estados menores sempre se sentiram ameaçados em sua independência, e para isso recorreram à Europa, aos EUA, à OTAN (vale também para a Geórgia). Não é por acaso que a Igreja Ortodoxa local decidiu se separar de Moscou e um cisma está em andamento dentro da Ortodoxia.
Muitos dos estados que se candidataram à adesão à OTAN tiveram relações dramáticas com o poder soviético: os Estados Bálticos foram violentamente anexados e subjugados no final da guerra, a Polônia (em 1939) foi ocupada paralelamente pela Alemanha nazista e pela União Soviética, a Ucrânia sofreu com a grande fome do início da década de 1930.
Em 5 de dezembro de 1994 foi assinado um acordo muitas vezes esquecido, o chamado Memorando de Budapeste, com o qual, em troca da adesão da Ucrânia ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares e da transferência de seu arsenal nuclear para a Rússia, a própria Rússia, os EUA e a Inglaterra se comprometiam a:
- Respeitar a independência e a soberania da Ucrânia dentro de suas fronteiras atuais.
- Abster-se de quaisquer ameaças ou uso da força contra a Ucrânia.
- Abster-se de usar pressão econômica sobre a Ucrânia para influenciar a sua política.
O acordo depois não foi respeitado, mas o próprio fato de ter sido imaginado dá uma boa ideia de qual seja o peso de uma herança ruim do passado.
Os dez anos de liberdade, de 1991 a 2000, foram anos de grande esperança e grande caos social.
Quando Vladimir Putin, então chefe dos serviços secretos, chegou ao poder em 2000, muitos auspiciaram que na Rússia se restaurasse um poder forte capaz de levá-la de volta à sua antiga grandeza.
O final da URSS de fato significou a derrota na Guerra Fria e a vitória dos Estados Unidos e da OTAN. Para todo o povo russo, a OTAN continua a ser o braço armado dos Estados Unidos (ninguém pode esquecer o bombardeio da Sérvia na década de 1990 para pôr fim à guerra na ex-Iugoslávia). Uma das condições postas quando a URSS foi desmantelada foi que a OTAN não deveria se expandir para os países da antiga URSS. De fato, a promessa feita na época pelo presidente dos EUA não foi respeitada: os países bálticos aderiram à OTAN. E agora a Ucrânia também quer se juntar a ela.
Certamente na Rússia foi jogada a carta de que novamente estamos diante de uma possível guerra que os Estados Unidos querem travar usando os outros países.
Não se podem esquecer dois erros cometidos pelo Ocidente: em primeiro lugar, a persistência do mito do guarda-chuva estadunidense como única (ou pelo menos principal) modalidade para superar um passado doloroso; um mito que desonerou a Europa da responsabilidade de elaborar uma política de pacificação e de autêntica reconciliação e muitas vezes foi acompanhado por uma atitude de superioridade do Ocidente em relação ao mundo eslavo e russo em particular. Em segundo lugar, essa atitude teve muitas vezes manifestações de subestimação, senão mesmo de desprezo, por uma tradição, aquela russa, que não podia ser achatada apenas no totalitarismo e que, mais ainda, não podia ser disso acusada tout court: a história russa tem conteúdos bem diferentes e de outra grandeza.
Do lado russo, a percepção e os conteúdos dessa grandeza foram se deteriorando, com alguns elementos que transformaram uma justa consciência da identidade nacional na afirmação de um nacionalismo ciumento.
Nos últimos 20 anos, e considerando as mudanças morais na sociedade ocidental (casamentos homoafetivos, lei de gênero etc.), a Rússia tem se alavancado em valores tradicionais para neutralizar essas mudanças. E ela se propôs como defensora de valores para o mundo inteiro.
Na realidade, nos últimos anos assistimos a um fenômeno diante do qual o Ocidente muitas vezes fechou os olhos:
- falsificação da história para criar o grande mito imperialista da potência que derrotou o nazismo; reavaliação de figuras como Ivan, o Terrível, e sobretudo Stalin.
- eliminação de qualquer possível competição no nível político (detenção e assassinato de políticos Chodorkovič, Nemcov, Naval'nyj), falsificação de eleições e repressão implacável de protestos.
- lei sobre agentes estrangeiros e liquidação dos mass media e mídias sociais independentes.
- eliminação do Memorial (Dmitriev), ataque à memória como afronta ao Estado.
Essa mentira, esse delírio de grandeza foi implementado na política externa com uma série de manobras - as principais na Geórgia, com a Ossétia do Sul (2008 e 2019), na Ucrânia (Maidan, Crimeia, Donbass e Lugansk, 2014), apoio para a Bielorrússia de Lukashenko.
Deve-se considerar que nos últimos dez anos se repete na Rússia o refrão: estamos cercados por um Ocidente que nos odeia. Agora, reforçado pela ideia de ter que defender os concidadãos espalhados pelos territórios do antigo império soviético (os países bálticos também devem ser considerados em risco?).
Perante a invasão, 60% da população russa declarou-se contra à guerra (levantamento do Centro Levada). Nestes dias, houve 2.800 detenções por protestos na Rússia.
Um apelo para cessar a guerra feito por professores, acadêmicos e cientistas já recolheu 370 assinaturas. Nas redes sociais, Facebook, internet etc. circulam cartas e apelos de muitas personalidades importantes.
A poetisa Olga Sedakova (ex-consultora para a Rússia de João Paulo II):
“Caros amigos ucranianos,
nem sequer seria capaz de nomear aqui todos aqueles a quem estou ligada por uma antiga amizade e uma longa colaboração. E caros também todos os outros que nunca conheci, saibam que desejo de todo o coração uma plena autonomia, a total liberdade para escolher o vosso futuro e a liberdade da terrível ameaça que vem de vossos vizinhos, isto é, de nós.
É triste dizer 'nós' nesta situação.
Abomino os planos e intenções que as autoridades não compartilham conosco ou discutiram conosco, e que resultam na possibilidade de ampliar as ações bélicas em solo ucraniano.
Como muitos, muitíssimos de nós, considero essas intenções um delírio e um crime. A vergonha do nosso país”.
A esse desabafo do coração respondeu imediatamente de Kiev o professor Konstantin Sigov:
“Muito obrigado querida Olga! Provavelmente há também um outro ‘nós’. Abraço".
O "nós" a que se refere Sigov tem vários sentimentos em comum, neste momento dramático, e entre esses sentimentos não é a indignação que prevalece, mas sim a vergonha e, surpreendentemente, o amor autêntico à pátria.
A filóloga russa Svetlana Panič:
"Muitos de nós não conseguimos dormir nestas últimas noites, olhando as últimas notícias de hora em hora, e até com mais frequência, vivendo em perpétua ansiedade por amigos em Kiev, Doneck, L'vov, Char'kov, Marjupol', rebelando-nos - cada um à sua maneira - contra essa guerra absurda. As palavras mais usadas são: vergonha e medo. É quase impossível pensar em outra coisa... Uma vida muito difícil nos espera, cheia de vergonha e ansiedade. Será necessário resolver problemas morais árduos, ser mais exigentes conosco, resistir continuamente ao cinismo, não só aquele externo, mas o que se insinua na mente e no coração... Mas somos muitos e estamos juntos; e enquanto pudermos nos sustentar uns aos outros, o mal não será onipotente. Superaremos também este desastre.
“A contribuição dos cristãos pode ser vista hoje nestas consciências sensíveis e atormentadas, sinal de um testemunho essencial que corresponde exatamente ao que o Papa Francisco se referiu no domingo 20 de fevereiro no Angelus: 'O Senhor nunca nos pede algo que Ele não nos dá antes. Quando ele me diz para amar os inimigos, ele quer me dar a capacidade de fazê-lo. Sem essa capacidade não poderíamos, mas Ele diz ‘ame o inimigo’ e dá a capacidade de amar'".
“Queridos amigos ucranianos, perdoem-nos se não conseguimos parar tudo isso... Nossa pobre pátria, e pobres todos nós, independentemente de onde vivemos. É uma desgraça comum. Senhor, que vergonha!”.
O filósofo ucraniano Mikhail Minakov, capaz de ler os fatos com calma e sem revanchismos, argumenta:
“Na Europa Oriental, a paz duradoura sempre esteve ligada à infraestrutura do império russo ou soviético. Nunca experimentamos uma paz estável. E após a dissolução da União Soviética, trinta anos atrás, tivemos que criar um novo sistema de paz, de política externa, dos estados nacionais. Tivemos que criar democracias e mercados livres. Em suma, tivemos que criar um novo mundo do nada, não sabíamos nada sobre a democracia, a liberdade política e a liberdade econômica, e tudo o que criamos não era estável... No entanto, criamos uma infraestrutura não para a paz, mas para a zona cinzenta.
Dois povos outrora amigos estão agora cheios de suspeitas um para com o outro. Há 20.000 mortos, há pessoas que se matam, e esta experiência não permite viver em paz. Até as elites de Moscou e Kiev foram eleitas, selecionadas, criadas nestes oito anos com vistas à hostilidade. Nem mesmo os nossos líderes sabem como viver em paz. Tudo isso significa que devemos encontrar a vontade de recriar uma infraestrutura da política, da vida estatal na Europa Oriental, baseada em uma paz justa, em uma paz fundamentada no direito, e em qualquer caso devemos dar início a uma segunda Helsinque.
Uma conferência que deveria criar uma infraestrutura política para a Europa oriental, não só para a Rússia mas também para o Sul do Cáucaso, Moldávia, Bielorrússia e Ucrânia. É um objetivo enorme e não sei como poderá ser realizado, mas devemos começar, porque a alternativa é continuar com a mesma continuação do que começou em 2008 com a guerra na Geórgia, ou seja, com a proliferação da guerra na Europa oriental, que depois se estenderá também à Europa central e ocidental, porque não estamos isolados, vivemos juntos no mesmo continente, e é importante compreender e encontrar a vontade de realizar uma nova Helsinque”.
Igumeno Nektarij Morozov
“Não temos inimigos, apenas irmãos e irmãs.
Todos nós, ao despertar, nos encontramos em um mundo completamente diferente. Que nunca mais será o mesmo. E no qual nenhum de nós gostaria de viver. Ou, pelo menos, quase nenhum...
O coração está transbordando de dor, de uma dor que não há como aliviar. E de um sentimento de culpa, porque nos sentimos impotentes para parar o que está acontecendo. Gostaríamos de voltar a dormir, na esperança de perceber, ao acordar, que foi apenas um sonho ruim.
E, no entanto, esta é a realidade em que temos que viver. E todos nós, de uma forma ou de outra, somos modificados por ela. Hoje é muito difícil falar sobre o que está acontecendo… por muitas razões. Mas é preciso pelo menos tentar entender o que está acontecendo. E nós cristãos devemos lembrar que não temos inimigos, mas apenas irmãos e irmãs. E temos o dever de amá-los, de orar por eles. Para que o Senhor os proteja. Para que não nos considerem inimigos. Para que não nos culpem - homens como eles - pelo desastre que se abateu sobre eles. É um desastre que se abateu sobre todos nós”.
Padre Sergej Kruglov
“O que um cristão pode fazer agora.
O que os cristãos fazem quando há guerra? Rezam a Deus para que faça cair em si quem quis a guerra, de forma que renuncie à agressão e pela salvação dos inocentes que são sempre as vítimas de todas as guerras.
No final da guerra, os cristãos oram a Deus para ajudar a restaurar o que sobrou, que se conseguiu preservar da destruição dos vandalismos bélicos. E depois eles enterram e choram os caídos, recolhem seus nomes e os apresentam a Deus para que lhes doe o descanso eterno. Eis aqui, grosso modo, o objeto da oração como eu a entendo (não estou falando daqueles que são vítimas da paranoia militar e envenenados - não importa com que slogans e bandeiras - pela propaganda da guerra e da violência: parece-me que sejam pessoas no momento desprovidas da luz do intelecto e do espírito de Cristo).
Sim, somos fracos, impotentes, dependentes de todas as forças e necessidades terrenas, ninguém garante que não terminaremos em alguma vala comum como os milhões de pessoas fuziladas por nada, que na vida nunca fizeram profissão de fé, de pertença à Igreja, ao Reino...
Mas nós temos Cristo, que nos reuniu da Igreja e quer, como fala São Paulo, viver em nós e através de nós, e quer que vivamos livremente com esta consciência. Cada situação de infortúnio dá um novo impulso à Igreja, lembra-lhe que aquilo que revelou, fez e disse o Filho de Deus encarnado, crucificado e ressuscitado, é uma verdade atual, viva, a única que pode orientar os cristãos a agir nesta vida efêmera.
É importante para um cristão, especialmente em tempos de guerra, lembrar continuamente a si mesmo e àqueles ao seu redor que a guerra - de qualquer maneira seja justificada - é a quintessência do pecado e do mal. Que a guerra inicia no terreno da soberba no coração do homem, que o primeiro passo para eliminar a guerra é um passo de arrependimento, de metanoia pessoal e de conversão a Cristo Salvador, de amadurecimento no próprio cristianismo. E, naturalmente, a oração é importante, incansável e obstinada apesar de toda tentação de desencorajamento; são importantes as obras de misericórdia, o perdão, a caridade, o conforto, a ajuda - toda forma possível de ajuda para aqueles que estão em pior situação do que você”.
Metropolita Onufrij
Um apelo extraordinário e corajoso de 24 de fevereiro, no dia após o ataque russo. O Metropolita de Kiev Onufrij dirige-se a todos os ucranianos sem distinção, embora divididos entre as duas jurisdições de Moscou e Kiev, mutuamente hostis. Ele, membro do Patriarcado de Moscou, identifica-se com a dor de todo o povo e ousa lembrar o próprio Putin.
“Caros irmãos e irmãs! Fiéis da nossa Igreja Ortodoxa Ucraniana!
Dirijo-me a vocês e a todos os cidadãos da Ucrânia como primaz da Igreja Ortodoxa Ucraniana. Aconteceu uma tragédia. Para nosso pesar, a Rússia iniciou uma intervenção militar contra a Ucrânia e, neste momento crucial, exorto vocês a não se deixarem tomar pelo pânico, a serem corajosos e mostrar amor pela vossa pátria e uns pelos outros. Acima de tudo, exorto-vos a fazer uma intensa oração penitencial pela Ucrânia, pelo nosso exército e pelo nosso povo; peço-vos que esqueçais as brigas e as incompreensões recíprocas e nos unirmos no amor a Deus e à nossa pátria.
Neste momento trágico, expressamos especial afeto e apoio aos nossos soldados que zelam, protegem e defendem a nossa terra e o nosso povo. Que Deus os abençoe e os proteja!
Defendendo até o fim a soberania e a integridade da Ucrânia, apelamos ao Presidente da Rússia para que pare imediatamente esta guerra fratricida. O povo ucraniano e o povo russo saíram da pia batismal do Dnieper, e uma guerra entre esses povos significa reproduzir o pecado de Caim, que matou seu irmão por inveja. Esta guerra não tem justificação nem junto a Deus nem junto aos homens.
Exorto a todos a usar o bom senso, que nos ensina a resolver os nossos problemas terrenos no diálogo e na compreensão mútuos, e confio sinceramente que o Senhor perdoe os nossos pecados e que a paz de Deus reine em nossa terra e em todo o mundo!”.
(+ Onufrij, Metropolita de Kiev e de toda a Ucrânia, Primaz da Igreja Ortodoxa Ucraniana).