12 Dezembro 2017
As comemorações do centésimo aniversário da restauração do Patriarcado de Moscou oportunizaram ao Patriarca Kirill e a toda a organização da Igreja Ortodoxa russa o cenário ideal para dar mostra de um desempenho de poder político e eclesiástico.
A reportagem é de Gianni Valente, publicada por Vatican Insider, 07-12-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nos dias de comemoração, os patriarcas e chefes das outras Igrejas Ortodoxas voaram para Moscou para fazer coro a Kirill, dando vida a uma reunião de Primazes ortodoxos em que se destacaram as ausências isoladas do Patriarca Ecumênico Bartolomeu de Constantinopla - o "primus inter pares" da Ortodoxia - e arcebispo Ieronymos de Atenas. Naqueles dias, entre o final de novembro e início de dezembro, tomou forma a possibilidade de uma sensacional reconciliação entre o Patriarcado de Moscou e o "secessionista" Filarete de Kiev, que desde 1992 se separou de Moscou e autoproclamou a instauração de um Patriarcado autocéfalo ucraniano. Um processo ainda nos primeiros passos, que também poderia pender a favor da Igreja russa o complexo jogo político-eclesiástico em curso dentro da Ortodoxia ucraniana.
Aos Primazes ortodoxos presentes na reunião na Rússia para celebrar o centenário da reconstituição Patriarcado de Moscou, o Patriarca Kirill deu provas do eixo de força que liga a Igreja russa ao Kremlin. Em 4 de dezembro, todos os patriarcas foram recebidos por Vladimir Putin no complexo presidencial de Novo Ogaryovo (região de Moscou). O líder político russo reivindicou a contribuição prestada pelos próprios militares à derrota dos "terroristas" de toda a Síria, "incluindo as áreas historicamente cristãs", e teve uma conversa com o Patriarca grego-ortodoxo Yohanna X da Antioquia, que reside em Damasco.
Na reunião em Moscou o Patriarca Ecumênico Bartolomeu não quis enviar nenhuma delegação - apesar do convite pessoal recebido e em tempo hábil pelo Metropolita Hilarion de Volokolamsk - para marcar a própria relutância em apoiar as exibições formais de consenso, depois que os russos ortodoxos desertaram e substancialmente boicotaram o Concílio pan-ortodoxo que foi realizado em Creta, em junho de 2016.
Para confirmar a impressão de um maior reforço "político" do Patriarcado de Moscou também contribuem os novos desdobramentos registrados na emaranhada rede de relações entre a Igreja russa e as entidades eclesiais ortodoxas presentes na Ucrânia. Entre o final de novembro e início de dezembro, vários fatos e intervenções confirmaram a possibilidade de uma abertura de canais de diálogo entre o Patriarcado de Moscou e a entidade eclesial da Ucrânia liderada por Filarete, Metropolita da Igreja russa em Kiev, que em 1995 autoproclamou-se Patriarca de Kiev depois de ter sido excomungado e reduzido ao estado laico pela Igreja mãe. A sequencia oficial e pública a nova fase começou com o apelo que o Sínodo Extraordinário dos Bispos, convocadas para o 100º aniversário da reconstrução do Patriarcado de Moscou, dirigiu às entidades ortodoxas "separadas" da Ucrânia, pedindo para restaurar pelo menos, a "comunhão sacramental e espiritual".
Filarete respondeu com uma carta, lida publicamente no sínodo extraordinário russo, em que o autoproclamado "Patriarca" de Kiev demonstrou levar a sério o apelo dos bispos russos: pediu para anular as excomunhões que recebeu no passado de Moscou e pediu perdão "como irmão e co-celebrante por tudo o que eu pequei em palavras, ações e com todos os meus sentidos", declarando-se disposto, por seu lado, a perdoar a "todos de coração".
Os contornos e objetivos de uma possível retomada das relações entre o Patriarcado de Moscou e o autoproclamado Patriarcado ucraniano ainda parecem pouco claros: em declarações públicas, o próprio Filarete confirmou que seu "Patriarcado" jamais vai desistir do objetivo da plena autonomia (autocefalia) de Moscou, e rejeitou as interpretações que liam a sua carta como um pedido para o retorno ao rebanho de Moscou. Ao mesmo tempo, ocorre que o Patriarcado de Moscou já criou uma comissão para estudar a possibilidade de reconciliação com a igreja ortodoxa liderada por Filarete, na perspectiva de melhorar no território ucraniano as relações entre as comunidades e os bispos ligados a Filarete e aqueles que ainda estão sob a jurisdição - embora com um estatuto de ampla autonomia – do Patriarca de Moscou, atualmente dirigidos pelo Metropolita Onufrij de Kiev.
A perspectiva de restauração das relações entre os ortodoxos de Filarete e aqueles de Kirill é uma novidade objetiva, se for levado em conta o ferrenho embate não raramente violento que têm dividido as entidades ortodoxas na Ucrânia nas últimas décadas, e que tinha atingido pontos de aparente não retorno nos últimos anos, entrelaçando-se ao conflito armado entre nacionalistas ucranianos e ucranianos pró-Russia. Já na década de 1990, pelo ponto de vista de Moscou, a perda de influência do Patriarcado de Moscou no tabuleiro de xadrez ucraniano apresentava contornos de uma catástrofe, inclusive financeira: se ainda, em 1991, eram 15 mil as paróquias ucranianas sob o Patriarcado de Moscou (enquanto em toda a Rússia tinham permanecido apenas seis mil), nos primeiros anos do novo milênio, mais da metade delas tinha saído da órbita de Moscou. Naqueles anos, acadêmicos próximos do Patriarcado de Moscou descreviam a entidade eclesial guiada pelo "pseudo-patriarca" Filarete de Kiev como uma espécie de "internacional cismática", visando a criação de jurisdições eclesiásticas paralelas em todo o território das Igrejas canônicas ortodoxas. Um projeto que Filarete, de acordo com seus detratores, teria perseguido reunindo a sua volta "padres sem batina" de todo tipo e proveniência.
As novas possíveis relações entre o Patriarcado de Moscou e autoproclamado Patriarcado de Kiev poderiam desestabilizar os círculos políticos ucranianos que sempre objetivaram impelir as várias entidades ortodoxas a se unificar em uma igreja ucraniana independente, totalmente emancipada de jurisdição de Moscou. Nos últimos anos, alguns desses ambientes tentaram várias vezes buscar o apoio do Patriarcado de Constantinopla, solicitando que a "Igreja Mãe" da Ortodoxia bizantina apoiasse a criação de uma igreja nacional ucraniana. Um pedido renovado inclusive poucos dias atrás por uma delegação de políticos ucranianos que visitaram a sede do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla por ocasião da festa do padroeiro Santo André. Até agora, o Patriarca Bartolomeu foi cauteloso em sua abordagem com o "imbróglio" ucraniano, de acordo com os desmentidos públicos que ele expressou em várias ocasiões contra o "filetismo" (a pulsão ao nacionalismo que prejudica também as relações intraortodoxas) e apontando para o testemunho comum dos cristãos como um objetivo concreto do diálogo ecumênico, longe de qualquer "introversão eclesial". Nesse espírito, Bartolomeu também concordou estar entre os relatores e principais convidados da próxima assembleia geral da Fundação Centesimus Annus Pro Pontifice, que será realizada no Vaticano de 24-26 de maio de 2018 e abordará as novas políticas e novos estilos de vida na era digital, considerados à luz da doutrina social da Igreja.
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Ortodoxos, manobras no eixo Moscou-Kiev - Instituto Humanitas Unisinos - IHU