04 Janeiro 2022
"Depois de mais de 2.000 canonizações de vítimas do stalinismo, instituiu um dia da memória que coincide com o dia e a lógica desejada pelo governo. Mas, se Putin reconhece na explosão da URSS em 1991 a catástrofe de 1900, Hilarion a reconhece no final do reinado dos Romanov de 1918. O império dos sovietes não coincide necessariamente com o império teocrático", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 03-01-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um estrabismo consciente une na Rússia o cultivo da memória tanto no estado quanto na Igreja Ortodoxa. Exemplos disso são a tríplice sentença judicial para o Memorial histórico (28 de dezembro), o Memorial dos Direitos (29 de dezembro) e um de seus principais expoentes, Yuri Dmitriev (27 de dezembro).
Marta Dall'Asta, especialista no mundo religioso russo e diretora de La nuova Europa drasticamente noticia (Um país que busca o suicídio) em um de seus comentários: "Com o Memorial e Dmitriev é liquidada uma imensa e trágica memória histórica coletada por anos, migalha após migalha, com um esforço coletivo de milhares de pessoas (sobreviventes, parentes, acadêmicos, simples voluntários) que haviam levado, no caso do Memorial, à criação de um imenso banco de dados e de um arquivo impressionante, único no mundo por sua riqueza. Tudo isso havia sido recolhido e depois preservado para ser transmitido com um senso compartilhado de responsabilidade para com os milhões de vítimas mudas que, na documentação recolhida, podiam pelo menos esperar permanecer na história, depois de terem sido arrancadas da vida" (La nuova Europa, 29 de dezembro).
As migalhas coletadas dizem respeito a três milhões das aproximadamente 20 milhões de vítimas da repressão ao poder comunista russo. Dmitriev foi condenado a 15 anos de prisão sob falsas acusações de pedofilia, terrorismo e antiestatismo. Historiador de profissão, ele descobriu as valas comuns stalinistas de Sandarmoch, na Carélia, trabalhando por 17 anos para dar um nome aos restos mortais encontrados.
Desde 2010, uma orientação legislativa cada vez mais acentuada acompanha a vontade do poder putiniano para uma historiografia que privilegie as grandes vitórias da URSS (a Segunda Guerra Mundial), removendo sistematicamente as contradições (o pacto Ribbentrop-Molotov) e as violências programadas internas (os gulags, os milhões de mortos de fome na Ucrânia, os assassinatos em massa de Katyn e Medny).
Tanto a lei contra o revisionismo histórico (2009) quanto a nova Constituição (2010) estabelecem limites precisos e injustificados para a pesquisa histórica. Na Constituição está escrito: “a Federação Russa honra a memória dos defensores da pátria e protege a verdade histórica. Não é permitido diminuir o significado do heroísmo do povo na defesa da pátria”. Confirma-se a continuidade do poder soviético com o atual, mas se negam a continuidade e contiguidade da repressão entre os dois períodos.
Com o resultado paradoxal de condenar o stalinismo (cada vez menos) e compartilhar sua visão imperial e estatista. Mas, acima de tudo, ninguém pode se permitir condenar a ocupação da Crimeia, questionar que os soldados enterrados em Sandarmoch sejam soviéticos (não finlandeses) e que os 21.000 oficiais poloneses enterrados em Katyn sejam atribuíveis aos russos (após reconhecer oficialmente o contrário). A liquidação do Memorial é o fruto mais amargo da orientação historiográfica forçada.
Fundada em 1989 por um grupo de dissidentes entre os quais o ganhador do Prêmio Nobel da Paz, Andrei Sakharov, apoiado pelo trabalho voluntário de milhares de voluntários, pacientemente coletou fragmentos de memórias de alguns milhões de vítimas da repressão stalinista e soviética. Através do arquivo, do museu, da biblioteca e da difusão em dezenas de centros na periferia (e alguns no exterior), com mais de 60.000 fundos, é uma das raras associações públicas e independentes remanescentes.
O Memorial está ativo desde 1993 para a defesa das vítimas em nome dos direitos humanos e, ano após ano, publica o nome das centenas de prisioneiros políticos do atual poder de Moscou (mais de 400 em 2021). Ele inventou as placas colocadas nas casas das vítimas e a prática generalizada de listar seus nomes no dia dedicado à memória.
Em 2008, a polícia invadiu os escritórios para apreender computadores e materiais, acusando o Memorial de apresentar uma visão extremamente negativa do passado russo. A lei aprovada o rotula com o estigma de “agente estrangeiro” (por conta de subsídios vindos do exterior). A condenação atual retoma a motivação de 2008: "O Memorial cria uma falsa imagem da União Soviética como Estado terrorista". Suja a memória do povo russo e reabilita os criminosos nazistas. O poder tentou em vão assimilar as práticas populares compartilhadas pelo Memorial (como a lista de nomes a ser pronunciada no dia 30 de outubro, dia da memória das vítimas das repressões políticas) em frente ao "muro da dor", um monumento proposto por Putin com os nomes das vítimas.
Expressão de inúmeras tentativas de incorporar e neutralizar as formas de memória crítica da sociedade civil, sem qualquer espaço para narrativas alternativas e independentes. A alimentação do medo de um novo ataque militar do Ocidente e a permanência compartilhada de uma opinião favorável ao stalinismo (35%) oferecem apoio ao poder central e aos órgãos de informação à sua disposição. É uma tradição enraizada na história da dissidência destruir documentos para evitar se tornar vítimas.
Aconteceu entre 1937 e 1938 para evitar o aparecimento de profissões consideradas antisocialistas. Era comum aos sobreviventes do gulag para evitarem ter que reviver os traumas sofridos. É funcional à “nomenklatura” soviética para distrair a opinião pública.
O efeito geral é o de uma mistura de stalinismo fraco, conservadorismo pós-moderno, ambições imperiais com uma pátina de ortodoxia. Algo entre anistia e amnésia.
A Igreja Ortodoxa Russa compartilha as orientações e as aplica aos seus próprios interesses. Falando em 15 de outubro no congresso de russos no exterior, o Patriarca Cyril reivindicou as razões do poder russo tanto em relação à verdade histórica (não aceitar que a Rússia possa ter responsabilidade na guerra mundial devido ao pacto com a Alemanha nazista) quanto na atual tensão com a Ucrânia.
Razoavelmente mais explícita na condenação de Stalin ("A responsabilidade de Stalin pela repressão é absolutamente óbvia. Talvez não seja óbvia apenas para aqueles que querem acreditar em mitos e não em números e fatos", afirma Mons. Hilarion, presidente do departamento das relações exteriores do Patriarcado) é totalmente silenciosa sobre a dissidência interna nas últimas décadas do poder soviético e nos anos de transição.
Depois de mais de 2.000 canonizações de vítimas do stalinismo, instituiu um dia da memória que coincide com o dia e a lógica desejada pelo governo. Mas, se Putin reconhece na explosão da URSS em 1991 a catástrofe de 1900, Hilarion a reconhece no final do reinado dos Romanov de 1918. O império dos sovietes não coincide necessariamente com o império teocrático.
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Rússia: memória estrábica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU