10 Agosto 2017
Os pinheiros rangem e chiam ominosamente, diante da brisa mais suave, como se esta imensa floresta entre o Lago Onega e a fronteira com a Finlândia se negasse a contar seus obscuros segredos.
A reportagem é de Alec Luhn, publicada por The Guardian e reproduzido por El Diario, 05-08-2017. A tradução é do Cepat.
A polícia secreta trouxe 6.241 prisioneiros do Gulag para esta floresta durante a época do terror de Josef Stalin, entre 1937 e 1938. Foram sepultados de bruços em buracos cavados na terra arenosa e receberam tiros na nuca com um revólver. Na medida em que os corpos foram se decompondo, a terra que cobria cada fossa comum foi se afundando.
Estas marcas na terra da floresta foram a pista que ajudou Yury Dmitriyev e outros membros da Sociedade Memorial, a organização de direitos humanos mais antiga da Rússia, a encontrar este lugar em Sandormokh, em 1997. É uma das maiores fossas comuns da antiga União Soviética.
Junto à Sociedade Memorial, este caçador de túmulos do Gulag, de 61 anos, oriundo de Petrozavodsk, se dedicou durante quase três décadas a retirar as vítimas da repressão soviética do “esquecimento promovido pelo Estado”, publicando vários livros com nomes, datas e localizações das execuções, a partir da descoberta.
“Para que o Governo se responsabilize, primeiro temos que informar o povo”, afirmou Dmitriyev a respeito de seus esforços em revelar detalhes da repressão soviética.
No entanto, nem todos querem recordar esta parte esquecida da história, especialmente em meio ao atual fervor patriótico russo. O presidente Vladimir Putin disse, em junho, que “a excessiva demonização” de Stalin foi “uma forma de atacar a União Soviética e a Rússia”, e várias sedes da Sociedade Memorial foram declaradas “agentes estrangeiros”, nos últimos anos.
Dmitriyev foi preso em dezembro, acusado de bater fotografias indecentes de sua filha adotiva de 12 anos, algo que ele nega. Encontra-se preso enquanto durar o julgamento e enfrenta uma possível condenação de 15 anos de prisão.
Um especialista em transtornos sexuais afirmou que as fotografias não são pornográficas, e a Sociedade Memorial e outras organizações afirmam que Dmitriyev é um preso político, encarcerado por ter revelado uma parte da história russa que dificulta ao Kremlin a glorificação do passado soviético.
Dmitriyev também conta com o apoio de sua filha adulta, que disse que seu pai tirou as fotografias para documentar a melhora na saúde da criança, caso os serviços sociais quisessem retirar a guarda da família. A criança estava desnutrida quando Dmitriyev e sua esposa a adotaram, aos três anos. Segundo o advogado de Dmitriyev, as fotos estavam guardadas em uma pasta com o nome “a saúde da menina”. Em cada foto descrevia a altura, o peso e o estado de saúde geral da menina, e muitas foram batidas antes da visita de um assistente social.
Mais de 30.000 pessoas assinaram um pedido on-line reivindicando que se devolva ao caso “a legalidade e a justiça”. Enquanto isso, os meios de comunicação tornaram públicos informações que retratam Dmitriyev como um pedófilo e a Sociedade Memorial como um grupo de subversivos contra o Governo.
“Assim como na época do Terror Vermelho, quando as represálias políticas, os assassinatos e as execuções extrajudiciais eram comuns na vida soviética, hoje, também há perseguição, prisões, repressão policial em manifestações, fechamento de organizações independentes, e isso se tornou normal na Rússia”, declarou Irina Flige, diretora do Memorial São Petersburgo, que descobriu Sandormokh junto com Dmitriyev.
“A maioria acredita que o regime pode fazer o que quiser com uma pessoa, em função de seus próprios interesses”.
Perto das ilhas Solovetsky, lugar de nascimento do Gulag, na região de Carélia, no noroeste da Rússia, assassinaram dezenas de milhares de prisioneiros, ao mesmo tempo em que muitos outros morreram cavando o famoso Canal Mar Branco-Báltico, durante o primeiro plano quinquenal de Stalin. Como ajudante de um funcionário regional, inicialmente, Dmitriyev começou a procurar túmulos, depois que o tornaram responsável em dar conta de alguns corpos que haviam sido desenterrados por uma escavadora, em uma base militar, em 1988.
Na sequência, começou a tentar identificar as vítimas das execuções em massa, trabalho que realizava em segredo. Durante o breve período em que os arquivos da polícia secreta estiveram abertos, nos anos 1990, Dmitriyev leu milhares de ordens de execução e as gravou em uma fita. Depois, procurava relacionar uma ordem específica com cada grupo de corpos encontrado.
Foi a longa busca pelos desaparecidos, conhecidos como Solovetsky etape, um grupo de 1.111 prisioneiros – alguns deles importantes figuras políticas, culturais e religiosas de toda a União Soviética -, o que levou Flige a Sandormokh. Seguindo as pistas que o verdugo Mikhail Matveyev deu em seu depoimento, Flige, Dmitriyev e Veniamin Iofe descobriram as marcas delatoras no meio da floresta, no caminho para o Canal Mar Branco-Báltico, e começaram a escavar.
“Não eram simplesmente ossos, mas, sim, os ossos de pessoas que eu conheci, cujos filhos conheci”, recorda Flige. Hoje, a floresta está cheia de postes com as fotos e os nomes das vítimas.
Inicialmente, as autoridades locais apoiaram o memorial, inclusive construíram uma estrada de acesso e uma capela, e enviavam representantes do governo ao ato de cada dia 5 de agosto. Contudo, no ano passado, pela primeira vez, nenhum funcionário do governo e nenhum representante religioso compareceram ao ato.
A tensão política em Sandormokh aumentou desde 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia. Naquele ano, a delegação ucraniana, que costuma ser a maior, faltou à cerimônia e em seu discurso Dmitriyev condenou o apoio russo aos separatistas do leste da Ucrânia.
Também sugeriu que o governo russo não está se responsabilizando pelos crimes de seus antecessores, uma afirmação polêmica em meio à onda de patriotismo e nostalgia soviética. Em muitos povos do país estão levantando monumentos a Stalin e, em junho, o ditador liderou uma pesquisa na qual perguntavam pela pessoa “mais notável” de todos os tempos. No verão passado, os meios de comunicação estatais começaram a difundir a versão infundada de que em Sandormokh, na realidade, estavam os corpos de soldados soviéticos assassinados pelos finlandeses.
Em novembro, a cadeia de televisão estatal acusou a Sociedade Memorial de ajudar “aqueles que querem destruir o Estado russo”, após a publicação da informação sobre 40.000 oficiais da polícia secreta soviética. Dmitriyev supostamente recebeu ligações telefônicas que recriminavam sua participação nesse projeto.
Dmitriyev foi preso inesperadamente no mês seguinte, depois que uma fonte anônima disse à polícia que ele possuía fotos de sua filha adotiva Natasha nua, em seu computador.
A filha adulta de Dmitriyev, Yekaterina Klodt, disse ao The Guardian que seu pai, que sempre documentou obsessivamente os restos humanos com fotos e medidas, havia tirados essas fotos para demonstrar que Natasha estava saudável sob o seu cuidado. O próprio Dmitriyev foi uma criança adotada e teve problemas para obter a permissão de adoção de Natasha, em 2009. Klodt afirmou que seu pai só queria documentar que a menina desnutrida estava melhor de saúde. Pelo que parece, Dmitriyev também havia ficado enfurecido quando uma professora confundiu algumas manchas de tinta na pele da menina com manchas-roxas.
Lev Shcheglov, presidente do Instituto Nacional de Sexologia em Moscou, testemunhou no julgamento e disse que essas fotos não podiam ser consideradas pornográficas, nem abusivas. A acusação segue adiante com o julgamento, que também inclui responsabilidades por “atos perversos” e posse ilegal de arma de fogo, por um rifle de caça, com 60 anos de idade, que Dmitriyev teria encontrado na floresta, segundo seu advogado.
O verdadeiro crime de Dmitriyev, segundo seus defensores, foi criticar o governo e trabalhar com ativistas dos inimigos geopolíticos da Rússia, como Polônia e Ucrânia, para homenagear as vítimas de Sandormokh.
“A Rússia não precisa deste espetáculo todo”, disse Anna Yarovaya, jornalista da página web de notícias 7x7. “Estamos procurando inimigos por todos os lados, inclusive fora do país, mas para ele todos éramos amigos”.
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Um caçador de túmulos do Gulag desenterra verdades incômodas na Rússia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU