05 Julho 2019
O reflexo condicionado que conecta automaticamente a palavra "Islã" às degenerações do "fundamentalismo", reflexo favorecido também por certa grosseria política, apesar de ter algum motivo, deve ser corrigido quando se assoma a um horizonte maior e mais amplo, já atestado por Dante. Consciente de sua contribuição para a filosofia ocidental, ele não hesitou em colocar Averrois, o famoso comentador muçulmano de Aristóteles, nativo de Córdoba na Espanha no século XII, entre os "grandes espíritos" no "nobre castelo" de Limbo, na companhia de Avicena, outro pensador árabe-persa (Inferno IV, 143-144).
O comentário é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 30-06-2019.. A tradução é de Luisa Rabolini.
Massimo Campanini e Corrado La Martire
Dizionarietto di arabo per filosofi
Scholé - Morcelliana
Recentemente, dois estudiosos, Massimo Campanini e Corrado la Martire, propuseram um curioso Pequeno Dicionário de Árabe para filósofos, onde se encontra também o termo falsafa, que é um similar do grego phiosophia. Nesse mesmo vocabulário, no entanto, você se depara com outra palavra, tarqa, que literalmente evoca um "caminho", mas que na realidade adquiriu uma conotação mística, designando a senda da elevação ascética e de contemplação transcendente e, por translado, uma "confraternidade" espiritual. É a essa categoria que nos conduz uma doutrina e uma experiência mística muçulmana de grande fascínio também para o mundo ocidental, o sufismo, um termo baseado na raiz suf que descreve uma veste de lã crua, semelhante àquela usada por São Francisco. "O objetivo final do Sufi é purificar a própria interioridade - especialmente a vontade que se opõe a Deus - até chegar ao estágio de completa purificação em Deus, de aniquilação na divindade".
A oferecer esta definição, que entrelaça o caminho ascético e místico, é um dos maiores estudiosos do Sufismo, Alberto Fabio Ambrosio, professor da Luxembourg School of Religion and Society. É ele, de fato, quem elabora uma síntese exemplar de um movimento de natureza muito móvel, suspenso entre símbolos e êxtases, entre arabescos esotéricos e danças emocionantes, entre erotismo e ascetismo, entre interioridade e política, entre fé e estética. O paradigma ideal é encarnado, mesmo no nível de conhecimento popular, pela figura de Jalal al-Dîn Mevlânâ Rûmî (1207-1273), fundador dos famosos dervixes dançantes que têm em Konya, uma cidade da Turquia central, seu coração geográfico e espiritual.
Ele na verdade nasceu no atual Afeganistão e chegou na Anatólia onde, iluminado pelo ensinamento de um místico, Shams al-Dîn, deu iniciou a irmandade que exaltaria uma religião fundada no amor a Deus e por suas criaturas.
Alberto Fabio Ambrosio
Sufismo
Editora Bibliografica
Milão, p. 128, € 9,90
O poema que ele compôs, o Mathnawi de 54.000 versos, tornou-se uma espécie de evangelho para seus discípulos, enquanto a famosa dança extática, a sema, foi quase o seu ritual. Ambrosio conduz o leitor a uma peregrinação dentro deste horizonte onde a paixão por Deus é absoluta a ponto de envolver - como frequentemente acontece na experiência mística (basta pensar no Êxtase de Santa Teresa de Bernini) - também a dimensão corporal e erótica, em um abandono total, de acordo com o que proclama um lema dado a Rumi: "Estou apaixonado, sou consumido pelo amor e sou um meio da glorificação". Nesta tensão em direção ao eterno e ao infinito divino, a alma sente-se prisioneira no tempo e na matéria, da qual anseia libertar-se, como é bem ilustrado pela parábola do papagaio na gaiola e pela admirável canção do ney, a flauta de cana que confessa sua saudade do canavial vivo do qual foi cortada, transparente metáfora da origem divina (textos citados nessa pequena obra).
Muitas outras são as figuras sufis que ocupam essas poucas páginas, partindo de al-Hallaj, o chamado “Cristo do Islã", por causa de seu martírio por crucificação, assim como são múltiplos os aspectos dessa doutrina que revela sua modernidade, tanto na exaltação da liberdade interior como na tensão em direção a uma plenitude que rompe as correntes da superficialidade, e também na melhor posição da mulher na comunidade. Embora ela não possa se tornar shaykh, isto é, uma mestre espiritual em sentido estrito, ainda pode dirigir como guia uma confraria e até mesmo pregar o sermão de sexta-feira. Ora, na esteira desse emblema da mística, gostaríamos de, voltando nos séculos, aproximar outro emblema da espiritualidade, aquele personificado por Santo Antônio do Egito (século III-IV), fundador do monaquismo eremita nas duras solidões do deserto, que ficou famoso pela biografia composta por Santo Atanásio, grande teólogo de Alexandria e pai da Igreja.
É justamente outro personagem extraordinário, o russo Pavel Florenskij - com um gênio impressionante, capaz de percorrer os mais diversos caminhos da ciência, filosofia, arte, literatura, teologia e misticismo, a ponto de ser definido enfaticamente "o Leonardo da Vinci russo”- a evocar Antônio, mas de acordo com um esquema surpreendente. De fato, ele dialeticamente recompõe suas características através de uma das obras mais sugestivas do escritor francês Gustave Flaubert, A Tentação de Santo Antônio, da qual Florenskij também reconstrói a gênese lenta e complexa até a publicação final em 1874, baseada em uma terceira redação do texto. Esse escrito, que fascinou um grande número de autores, começando por Proust para chegar a Borges, Sartre, Girard, Foucault, Barthes e outros ainda, é submetido pelo teólogo e literato russo a uma surpreendente análise crítica.
Pavel A. Florenskij
Antonio del romanzo e Antonio della tradizione
Edizione degli animali
Roma, p. 141, 12 €
Foi elaborada em 1905, quando Florensky tinha 23 anos e ainda estava longe aquela era soviética que, com Stalin, o levaria a morrer num campo de concentração em 1943. Permanecendo esquecido durante décadas, agora aparece na primeira versão italiana editada por Claudia Zonghetti. Para conhecer em profundidade o percurso dialético e o palimpsesto ideal é decisiva a introdução elaborada por maior especialista italiano sobre o autor, Natalino Valentini, que também desdobra toda a inteira bibliografia italiana florenskiana. Ele recompõe as coordenadas dentro das quais emerge a leitura da Tentação flaubertiana, da qual, além do indubitável fascínio que gera, delineia sem reservas também as deformações que surgiriam através de um esteticismo sedutor que pode conduzir ao abismo do niilismo.
"A religião de Flaubert - escreve - é a elevação da ilusão à divindade e seu culto, o desvelamento da ilusão estética". O desafio de Florenskij é de arrancar tanto Antônio como o leitor da fantasmagoria da narrativa de Flaubert, desmascarando "o grande vazio vestido por milhares de cores brilhantes e sons profundos". O manto policromo da ilusão estética é rasgado para que reapareça o rosto autêntica do Antônio do deserto, cujo mística era realista, porque apoiada por um amor divino, cujo "corpo estava radicado no céu", de forma que "mesmo no tumulto do dia, ele viu a beleza do céu estrelado”.
Mais uma vez se encontra a genuína alma da mística que é o cruzamento entre humano e divino, entre física e metafísica, entre realismo e transcendência. E o fio de ouro que percorre todos esses homens e mulheres espirituais é, para Rumi, como para Antônio, o amor. Entre os ditos do pai da Tebaida, pode ser lido esse aforismo: "Eu não tenho mais medo de Deus: eu o amo, porque o amor afasta o medo". Ele não decolava da areia do deserto em direção a uma ilusão, mas se elevava a um encontro real sem nunca tirar os pés da estepe, e é por isso - conclui Florensky - que ele também fala para nós europeus de hoje.
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Pequeno dicionário de árabe para os filósofos. Rotear no mundo do misticismo. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU