25 Mai 2023
"Certamente aquela que na época também parecia uma guerra civil, hoje se transformou abertamente numa agressão e num ato de conquista. Mas aquele caminho não foi sem frutos. O Papa Francisco certamente não deixará que as dificuldades o desanimem. Mas cada nova ação tomada pela Santa Sé para sair do impasse só poderá ser colocada fora do campo político", escreve Gianfranco Brunelli, jornalista italiano, diretor da revista católica italiana Il Regno, em artigo publicado por revista Il Regno, 20-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A visita do Presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky ao Papa Francisco, na tarde de 13 de maio, marca, até mesmo visualmente, toda a dificuldade, toda a distância política (e não só) entre a Ucrânia e a Sé Apostólica.
Zelensky veio a Roma, a primeira parada em sua rápida viagem pela Europa, para se encontrar com os líderes do estado italiano e consolidar ainda mais a aliança com a Europa por meio de ajuda militar. Mas o ponto central de sua visita foi o encontro com o papa. E aqui, com respeito, mas firmemente, ele marcou a sua distância. As intervenções humanitárias a favor das populações “sim”, uma mediação política da Santa Sé, que de fato coloca a Rússia e a Ucrânia ao mesmo plano, “não”. A anunciada “missão de paz” da Santa Sé, sobre a qual Francisco havia falado aos jornalistas no avião, voltando de sua visita à Hungria no final de abril, não existe mais.
O lacônico comunicado da Santa Sé diz apenas que o encontro aconteceu. As palavras do porta-voz Matteo Bruni acrescentam que foi discutida a "situação humanitária e política da Ucrânia causada pela guerra em curso", e que "ambos concordaram com a necessidade de continuar os esforços humanitários de apoio à população".
Três anos se passaram desde a primeira visita de Zelensky ao Papa Francisco.
Era 8 de fevereiro de 2020. Outra época. Outro mundo. Simbolizados também pela roupa: do paletó e gravata de então ao moletom militar de hoje. E também pelos presentes trocados: à escultura representando um raminho de paz de Francesco Zelensky quase justapõe um ícone mariano pintado sobre os restos de um colete à prova de balas.
A agressão imperialista de Putin contra a Ucrânia está remodelando todo o cenário internacional, colocando em risco a paz mundial. Quando o Presidente Sergio Mattarella afirmou em Bratislava, no último dia 20 de abril, que a Ucrânia não defende apenas a si mesma, mas também os valores europeus de liberdade e democracia da Europa, está delineando o que está em jogo nesta guerra para o mundo inteiro: “O futuro de paz da Europa está em jogo. Se a agressão russa na Ucrânia for bem-sucedida, outras se seguirão, colocando em risco a independência de outros países. Não podemos permiti-lo e a Itália pretende garantir” o seu empenho em apoio à Ucrânia.
Depois de Bucha, depois dos milhares de mortes, depois de execuções sumárias, valas comuns, deportações de crianças, devastação de um país inteiro, Kiev não aceita sentar-se, agressor e agredido, ao redor de uma mesa. Não agora. Não nessa situação.
Zelensky fez isso com um tuite provocativo logo após a audiência: “Pedi ao papa que condenasse os crimes russos na Ucrânia. Porque não pode haver igualdade entre a vítima e o agressor. Também falei sobre nossa fórmula de paz como única forma eficaz para alcançar uma paz justa. Propus ao Papa para aderir a ela”.
Declaração dura, reiterada em tons mais suaves, ampliando o conceito a outros, na entrevista ao Porta a porta (“A Ucrânia não precisa de mediadores”), que fala do sentimento (e do ressentimento) com que a ação do papa foi entendida nos últimos meses por parte da Ucrânia. Um sentimento expresso pela população também em termos religiosos, com uma progressiva aproximação à Igreja Ortodoxa da Ucrânia (OCU), separada de Moscou e próxima do Patriarcado de Constantinopla, agora identificada pela população como Igreja nacional; um reconhecimento popular que tem produzido um certo enxugamento da Igreja Greco-Católica ligada a Roma.
Contudo, não se pode pedir ao papa que interrompa todo o diálogo com Moscou, mesmo que hoje seja difícil definir o patriarca Kirill e o governo russo como interlocutores confiáveis.
Na realidade, o papa nunca deixou de condenar a guerra provocada pelos russos na Ucrânia, mesmo que não tenha mencionado explicitamente o nome de Putin. Toda semana rezou e pediu para rezar publicamente pelo "martirizado povo ucraniano". Várias missões humanitárias foram realizadas, por conta de Francisco, nas zonas de guerra pelo esmoleiro papal card. Konrad Krajewski, por mons. Paul Gallagher, secretário do Vaticano para as relações com os Estados, e pelo card. Michael Czerny, prefeito ínterino do Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral.
Ainda existem várias iniciativas da Santa Sé para favorecer as trocas de prisioneiros entre as partes e favorecer o retorno de crianças sequestradas. Além disso, o presidente Zelensky certamente não pode pedir à Santa Sé que se alinhe com um ato político.
Francisco é um papa que não tem medo de tomar decisões; às vezes até o faz de forma repentina, sem ouvir muito os conselhos dos colaboradores. Ele prefere o sentimento das coisas, a política da misericórdia. Sem muitas mediações. Sem levar muito em conta os equilíbrios dados. Se algo é justo, é justo, recorrendo por vezes a uma hipostatização do valor, para se fazer ouvir. A sua linguagem quase prefere forçar as situações. O Papa Francisco tem um perfil radical, um caráter profético.
Afinal, disse-o no seu retorno do Cazaquistão em setembro passado aos jornalistas que lhe perguntavam se havia limites à disponibilidade de diálogo com Moscou: “Não excluo o diálogo com o agressor, às vezes o diálogo cheira mal, mas deve ser feito".
Essa “diplomacia de improviso”, como já foi definida, muitas vezes realizada em público, diante das mídias, porém, corre o risco de não manter pontualmente a distinção dos planos: o religioso e o humanitário do propriamente político. É a partir do reconhecimento de que a Igreja se mantém nos dois primeiros planos que lhe é permitido desempenhar um papel que também tem significado e valor político. Não o contrário.
Claro, expressões como aquela relativa à OTAN, que "ladra nas fronteiras da Rússia", ou a Kirill, definido como "coroinha de Putin", não fortaleceram a imparcialidade e o prestígio da diplomacia vaticana.
Também João Paulo II, no início de seu pontificado, havia imaginado atuar sozinho no cenário internacional devido a um preconceito sobre a Ostpolitik dos cardeais Agostino Casaroli e Achille Silvestrini. Inclusive levantando a hipótese da criação de uma espécie de cúria paralela à oficial. Depois ele reconheceu a força daquele "martírio da paciência" e chamou Casaroli de volta ao serviço (nomeando-o secretário de Estado). Juntos, eles alcançaram uma síntese eficaz na posição internacional da Santa Sé.
Nesse sentido, foi surpreendente que, no dia do encontro entre o papa e Zelensky, apenas estivesse presente no Vaticano Mons. Gallagher, secretário de relações com os estados, e ausente o secretário de estado, card. Pietro Parolin, que estava em Fátima e que no dia 17 de maio, no Conselho da Europa, declarou: “Não podemos aceitar passivamente que continue a guerra de agressão naquele país martirizado [a Ucrânia]”.
Em 2014, retomando a linha já adotada na Primeira Guerra Mundial por Bento XV, o então núncio em Kiev, mons. Claudio Gugerotti, havia iniciado uma ação humanitária, expressão de proximidade a todas as populações no Donbass. Certamente aquela que na época também parecia uma guerra civil, hoje se transformou abertamente numa agressão e num ato de conquista. Mas aquele caminho não foi sem frutos. O Papa Francisco certamente não deixará que as dificuldades o desanimem. Mas cada nova ação tomada pela Santa Sé para sair do impasse só poderá ser colocada fora do campo político.
A história em seu insolúvel drama precisa de profecia. Mas a profecia não é a história.
Atualização (23.5.2023). O papa não desiste diante da guerra. Após o "não" de Zelensky a uma mediação da Santa Sé, o Papa Francisco deu uma missão ao card. Matteo Zuppi, arcebispo de Bolonha e presidente da Conferência Episcopal Italiana, para realizar uma missão de paz, em sintonia com a Secretaria de Estado do Vaticano, “para aliviar as tensões no conflito na Ucrânia”. Num primeiro momento, falou-se de um segundo enviado papal a Moscou e foi ventilado o nome de Mons. Claudio Gugerotti, prefeito do Dicastério para as Igrejas Orientais, depois o Papa optou no momento por um único enviado. Uma fórmula aberta, que alude a várias hipóteses que talvez possam surgir pelo caminho.
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O não de Zelensky. Artigo de Gianfranco Brunelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU