08 Abril 2020
"A lição é que agora os problemas dos quais a vida, a saúde e a própria sobrevivência do mundo dependem estão sendo colocados em nível global e não podem ser enfrentados ou encontradas soluções senão a nível global. 'Estamos todos no mesmo barco', as palavras do papa; e essa não é uma exortação piedosa, uma moção dos afetos ou simplesmente uma reivindicação ética. É uma novidade, é um diagnóstico", escreve Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di tutti, Chiesa dei poveri, 03-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
A tempestade que nos atingiu com esta pandemia revela o pensamento de muitos corações. O primeiro a ser revelado é o coração da Igreja, que nunca esteve tão "próxima" de toda a humanidade como é agora. É claro que sempre esteve perto de seus fiéis, mas foi preciso um papa como o papa João para dizer, no leito de morte, que “agora mais do que nunca, certamente mais do que nos séculos passados, devemos servir ao homem como tal, e não apenas aos católicos; defender acima de tudo e em toda parte o direito da pessoa humana e não apenas aqueles da Igreja Católica"; e isso não porque "é o Evangelho que muda, mas somos nós que começamos a entendê-lo melhor".
E vemos isso todas as manhãs na missa que Francisco celebra em Santa Marta, que agora até a TV italiana transmite; um papa tomado pela dor, que compartilha com todos, sejam eles os doentes na solidão, os sem teto amontoados nas ruas, aqueles "em observação" ou em um estacionamento em Las Vegas.
E vimos isso acontecer na sexta-feira, 27 de março, quando sob a chuva na aparentemente deserta Praça de São Pedro, ocorreu um evento que parecia prefigurar uma nova maneira de ser Igreja. Pela primeira vez, aquela praça apareceu não como o recinto do templo, mas como o átrio dos gentios, e nele chegou um sacerdote saído do santo dos santos para oficiar não para os seus, mas para todos.
Já na quarta-feira anterior, na oração cristã do Pai Nosso, o papa quis reunir cristãos de todas as confissões. E agora toda a Terra estava sendo chamada em reunião. Não mudava a Igreja, a ekklesìa, ou seja, a assembleia, mas desta vez era invisível, trancada nas entradas pelo vírus e, ainda assim, precisamente por esse motivo, mais verdadeira, porque naquela ausência toda a humanidade se fazia presente, no momento de sua prova; e se viu o papa aos pés da Basílica de São Pedro, e não da sacada, abraçando o mundo inteiro, até mesmo aqueles que nem estavam conectados "através das diferentes tecnologias de comunicação", como disse o mestre de cerimônias pontifício no momento da bênção, mas se uniam "apenas com o desejo". O rito era o da indulgência que é "concedida", como dizem os velhos cânones, para a "remissão da pena temporal devida aos pecados"; mas a partir da Bula "Misericordiae vultus", que instaurava o Ano da Misericórdia, sabemos que a indulgência não é um equilíbrio das contas com os pecados, mas pretende apagar a "impressão negativa" que eles deixaram no comportamento e nos pensamentos da pessoa de fé, sobre cuja vida o perdão de Deus se estende.
A controvérsia com Lutero ficou realmente distante. E todos são eleitos; existe um potencial salvífico de desejo, começando pelo desejo de Deus; todos aqueles que apenas o desejam, são acolhidos pelo Pai, são cidadãos do céu.
Mas não apenas os pensamentos do coração de Deus são revelados. Os corações dos homens são expostos, e muitas coisas que estavam ocultas, vêm à luz. O tempo da pandemia é um tempo de inversão. O mais admirável é que, juntamente quando somos mais e devemos estar mais separados uns dos outros, mais próximos estamos e quanto mais o mundo se torna uma pele de leopardo de quarentenas, mais ele se une. Aparecem formas imprevisíveis de solidariedade. Todo mundo pensava que a geminação de cidades não tinha utilidade alguma, talvez apenas para uma bela viagem de seus respectivos prefeitos ou vereadores.
E aqui temos Recanati, cidade-irmã sabe-se lá por quê da cidade chinesa de Xiangcheng, que de repente recebe gratuitamente diretamente daquele condado de Henan 60.000 máscaras, e nos hospitais do norte da Itália chegam médicos e equipamentos de Cuba, Rússia e China; e na área mais problemática, em Bérgamo e Brescia, 30 médicos e enfermeiros chegam da Albânia, algo que seu primeiro ministro, Edwin Rama, motiva dizendo: "não somos ricos, mas também não somos desprovidos de memória". Trata-se da memória não apenas da Itália que acolheu os refugiados albaneses e náufragos em busca de um novo destino, mas da Itália que em 1991 organizou uma expedição militar no exterior para ajudar o país. Foi chamada de "operação Pellicano", durou dois anos, os soldados levaram mantimentos e remédios (e às vezes até as suas rações) para os distritos mais remotos das montanhas da Albânia; e para apagar a memória da invasão e anexação daquele reino à Itália perpetrada pelo fascismo, aquele exército foi e atuou na Albânia sem carregar armas consigo, pela primeira vez uma força armada desarmada.
As direitas italianas ficaram furiosas. Diante desses laços universais que estão se tecendo em meio a uma crise de proporções sem precedentes, há uma Europa que não responde a esse "chamado da história", como disse nosso presidente do Conselho; existem países que querem se apegar às suas riquezas, como a Holanda, que não querem se arriscar, como a Alemanha, que jogam ao mar a democracia, como a Hungria, ou que foram tentados a patentear e não compartilhar os eventuais remédios encontrados contra o vírus, como os Estados Unidos de Trump. Essas distorções podem ser deploradas, mas o mais importante é tirar delas uma lição. E a lição é que agora os problemas dos quais a vida, a saúde e a própria sobrevivência do mundo dependem estão sendo colocados em nível global e não podem ser enfrentados ou encontradas soluções senão a nível global. "Estamos todos no mesmo barco", as palavras do papa; e essa não é uma exortação piedosa, uma moção dos afetos ou simplesmente uma reivindicação ética. É uma novidade, é um diagnóstico.
Mas, ao contrário do que acontece com o vírus, para o qual não é possível ir além do diagnóstico, aqui podemos adotar uma resposta, uma cura. E esta cura é subir a uma dimensão nova e mais verdadeira do internacionalismo: não aquele das agregações regionais e parciais, mas aquele da mundialidade e do todo. Os acordos, alianças e integrações estipulados entre Estados individuais ou fechados em determinadas áreas geográficas foram até agora ditados por propósitos específicos e interesses econômicos e políticos particulares.
Basta pensar no Pacto Atlântico, no Pacto de Varsóvia, na Organização dos Estados Americanos, na Liga Árabe, no Mercosul, no CETA, nas Comunidades Econômicas Africanas; a própria Europa, que hoje é uma só com seu regime econômico, mas foi mitificada como uma criatura nascida de um pacto entre antigos inimigos, tem seu vício de origem por ter sido concebida e construída como uma "pequena Europa", restrita a seis países militarmente integrados e contrapostos a toda a outra Europa, por sua vez empoleirada atrás de seu muro e da cortina de ferro elevada por ambas. Essas uniões produzidas pela história e pela política, sofrem seus contragolpes e são atormentadas e precárias de acordo com o artifício que as gerou. Mesmo a união de toda a comunidade humana que passe a constituir-se como um novo sujeito jurídico sobre a terra, seria um produto da política e da história, mas, além disso, seria também segundo natureza. Natureza e direito, justiça e paz poderiam então se beijar em uma Constituição da Terra.
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O diagnóstico, a cura. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU