Por: Patricia Fachin | 26 Agosto 2016
A “nova política externa brasileira”, iniciada pelo governo interino após o afastamento da presidente Dilma, é “composta por princípios políticos e dez diretrizes programáticas, que encetam uma visão claramente oposta à política externa que estava em curso há mais de uma década”, diz Lauro Mattei à IHU On-Line.
Segundo o economista, a política atual retoma o “bilateralismo” dos anos 1990, e define “como prioridade ampliar o intercâmbio comercial com EUA, Japão, China e Europa, enquanto na América Latina deverão merecer prioridade as relações com a Argentina e com o México”. Nesta nova configuração política, menciona, “ficou visível o baixo grau de prioridade das relações Sul-Sul, o que certamente afetará o andamento da política externa em relação ao bloco regional”.
Crítico à mudança de rota, Mattei argumenta que a atual política externa “desconstrói toda uma estratégia política de expansão das relações do Brasil com o restante do mundo” e caminha “no sentido oposto à anterior”, inviabilizando “todo o trabalho diplomático desenvolvido no sentido de fortalecer as relações Sul-Sul, em especial da integração do Brasil com América do Sul, América Central e Caribe”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC compara a política externa desenvolvida nos governos Lula e Dilma com a do governo interino, comenta as principais mudanças políticas que estão em curso no Mercosul e também critica o fato de o Ministério das Relações Exteriores estar sendo comandado por um político (José Serra) e não por um diplomata de carreira. “Convém lembrar que durante o governo Lula (PT) não havia correligionários no Itamaraty e o posto de chanceler foi ocupado por diplomata de carreira. Já no governo Dilma todos os ocupantes do Itamaraty foram diplomatas de carreira e nenhum deles era filiado a qualquer partido político. Já o mesmo não se pode dizer sobre passagens recentes pelo Itamaraty de correligionários do chanceler interino”, assinala.
Lauro Mattei é graduado em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e doutorado em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Atualmente leciona na UFSC.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Uma das marcas do governo Lula foi a participação do Brasil no bloco do BRICS. Que tipo de vantagens e consequências políticas e econômicas esse bloco trouxe para o Brasil? Qual é a relevância política e econômica desse grupo?
Lauro Mattei - Inicialmente, é importante considerar que a política externa brasileira, embora aparentemente possa representar a cara da diplomacia do país, ressente-se de uma multiplicidade de interações sociais e de jogos de interesses das frações de classes sociais, em especial da classe empresarial; dos interesses econômicos e políticos aos quais o poder Executivo esteja vinculado; da própria configuração política parlamentar originária de diferentes segmentos e atores sociais; e da possibilidade de ação da sociedade civil organizada nos debates e discussões sobre a inserção do país no cenário global.
Um olhar sobre as duas últimas décadas é bastante revelador do que foi afirmado anteriormente. A década de 1990, por exemplo, é bastante ilustrativa nesta linha interpretativa, especialmente se considerarmos que a política externa desse período promovida pelo Estado brasileiro foi de subordinação passiva à conjuntura internacional sob domínio da globalização econômica e do neoliberalismo político. Nesta lógica, prevaleceu durante o governo FHC (1995-2002) uma intervenção vertical que privilegiou determinados setores da burguesia brasileira, especialmente daqueles representados pela Confederação Nacional da Indústria - CNI e pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo - FIESP, bem como de alguns setores de commodities baseados nos recursos naturais, cujas demandas foram impulsionadas pela crescente presença da China no mercado mundial.
De alguma forma, essa política subordinada e marcada por uma intervenção verticalizada acabou privilegiando as relações com alguns países aos quais o Brasil era muito dependente economicamente, em especial os Estados Unidos. Talvez esta seja a razão que explique por que o país nunca teve uma posição clara em relação à Área de Livre Comércio das Américas - ALCA proposta pelos EUA, a qual gerou discussões conflituosas em vários países latino-americanos. Além disso, merece registro o fato de que o país integralizou grande parte das medidas econômicas e políticas propostas pelo “Consenso de Washington”, bem como assinou o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, medidas estas comandadas pela batuta da política externa norte-americana. Fez-se tudo isso em nome da recuperação da confiança política brasileira e do reconhecimento do país, por parte das grandes potências mundiais, como um ator relevante na arena política internacional. Mas, ao mesmo tempo, se avançou pouco na construção e ampliação das chamadas relações Sul-Sul, especialmente com os países em desenvolvimento.
Já nos primórdios do século XXI, o processo de inserção internacional do Brasil foi sendo alterado significativamente em relação à política externa do país que vinha sendo seguida, principalmente na década de 1990, quando a ideologia neoliberal também passou a ser parte integrante da política externa brasileira. De um modo geral, pode-se dizer que o projeto político vencedor nas eleições de 2002 estabeleceu dois pontos de inflexão. Por um lado, ao implementar um projeto econômico denominado genericamente de “Novo Desenvolvimentista”, o governo Lula (2003-2010) conseguiu reduzir a dependência econômica do país em relação aos EUA e, por outro, rearticulou as ações diplomáticas mais fortemente na direção Sul-Sul. Com isso, a política externa passou também a fortalecer relações com países denominados de “não desenvolvidos” (também chamados de emergentes), o que lhe dá a característica de uma política mais horizontalizada, mesmo que as relações com as grandes potências mundiais tenham sido mantidas.
É neste contexto que ações conjuntas, como o bloco do BRICS, foram priorizadas . No caso deste último — bloco formado em 2009 e que contou com a adesão da África do Sul a partir de 2010 —, o Brasil teve um papel fundamental na conformação e expansão do mesmo, cujas ações econômicas e políticas passaram a ser devidamente reconhecidas pelas grandes potências mundiais. Seja através de mecanismos de cooperação, seja através da mobilização de investimentos e de relações comerciais mútuas, o bloco conseguiu se estabelecer como um importante player no cenário mundial, ao mesmo tempo que propiciou uma melhor horizontalização das relações internacionais. Neste caso, merecem destaque as ações firmes do BRICS em defesa de reformas no sistema de cotas do Fundo Monetário Internacional - FMI e do Banco Mundial e a constituição do G-20 no âmbito da Organização Mundial do Comércio - OMC, processo este que alterou o padrão das negociações comerciais em nível mundial.
Especificamente em relação aos BRICS, é importante frisar que esta iniciativa ganhou corpo após a crise de 2008 quando o Brasil atuou como um dos protagonistas visando à solução dos problemas econômicos globais. É neste período que o G8 dá lugar ao G20. Com isso, se constituiu uma rede internacional que debate os desafios do mundo contemporâneo, onde o Brasil tem participação relevante nas discussões das políticas globais. Sem dúvida alguma, a constituição desse bloco ampliou a capacidade de negociação entre esses países, com ampliação de acordos e estratégias conjuntas. Além disso, o fato de fazer parte deste bloco favoreceu as relações políticas e comerciais do Brasil com as demais nações do mundo.
Países que integram o BRICS (Imagem: Portal do BRICS)
Uma das principais vantagens da conformação desse bloco não diz respeito apenas ao Brasil, uma vez que a própria constituição do Banco do BRICS foi importante para dar início a um processo de reforma no próprio Banco Mundial, cuja mudança no sistema de cotas acabou sendo aprovada recentemente, após levar cinco anos para que o Congresso dos EUA aprovasse tal reformulação. Da mesma forma, ressalta-se a importância do Fundo de Contingências, cuja função transformou-se em uma alternativa aos conhecidos planos do FMI.
A importância econômica e política dos BRICS aparece melhor na arena política internacional, uma vez que os integrantes desse bloco passaram a ter mais voz nas negociações comerciais mundiais, com estabelecimentos de parcerias e ações conjuntas em relação aos países dominantes no âmbito do sistema econômico mundial. Sem dúvida, esse movimento articulado dos chamados “países emergentes” foi determinante para que o Brasil conseguisse assumir a direção geral da Organização Mundial do Comércio - OMC no ano de 2013. Além disso, atualmente os temas candentes na agenda política mundial também passaram a ser discutidos e decididos pelos países membros do bloco, o que denota sua importância global.
IHU On-Line - De que modo a política externa do governo Lula conseguiu "reduzir a dependência econômica do país em relação aos EUA", como o senhor afirma?
Lauro Mattei - A partir do momento que a política externa brasileira ampliou seu arco de ação, novas parcerias foram sendo construídas. Com isso, o Brasil deixou de ser um mero espectador para passar a integrar diversos fóruns de negociações. São diversos os exemplos que podem elucidar este novo cenário, destacando-se a participação expressiva no G20, bem como a participação do país na solução de conflitos, como foram os casos no Oriente Médio e na própria América Latina.
Por outro lado, a adoção de uma política proativa deixou o país em condições de buscar novos parceiros internacionais e depender menos de aliados tradicionais, como é o caso dos EUA. Esse movimento pode ser observado no destino das exportações do país, cujo epicentro mudou muito na última década, tanto em direção ao Continente Asiático como em relação ao Continente Europeu.
Além disso, não se pode esquecer que o fortalecimento das relações Sul-Sul também abriu caminho para a inserção do país em outros espaços geográficos. Neste caso, destacam-se o Oriente Médio, o Continente Africano e o próprio fortalecimento e expansão das relações comerciais com países latino-americanos.
IHU On-Line - Como avalia a proposta da política externa brasileira do governo interino, de ampliar o intercâmbio comercial com EUA, México, Japão, China e Europa? Quais as razões, vantagens e desvantagens dessa proposta?
Lauro Mattei - O governo interino do Sr. Michel Temer iniciou no dia 12-05-2016, quando o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff foi aceito pela Câmara dos Deputados. Um dos primeiros atos do governo interino foi a nomeação do Sr. José Serra (senador pelo PSDB-SP) como Ministro das Relações Exteriores.
Em seu discurso de posse, o novo ministro apresentou “a nova política externa brasileira”, composta por princípios políticos e dez diretrizes programáticas, que encetam uma visão claramente oposta à política externa que estava em curso há mais de uma década. Tal política foi qualificada pelo novo chanceler de “conveniências e preferências ideológicas de um partido político e de seus aliados no exterior”. Já a sua foi definida como “uma política externa que será regida pelos valores do Estado e da nação” .
Após criticar o multilateralismo existente nas relações internacionais, que segundo o novo chanceler não aconteceu e, pior, só prejudicou, passou-se a defender o bilateralismo como o caminho da nova política externa. Para tanto, definiu-se como prioridade ampliar o intercâmbio comercial com EUA, Japão, China e Europa, enquanto na América Latina deverão merecer prioridade as relações com a Argentina e com o México. Quanto ao Mercosul, afirmou-se que será necessário “corrigir o que for preciso como forma de fortalecê-lo, antes de mais nada quanto ao próprio livre-comércio entre seus países membros, que ainda deixa a desejar” . Quanto às demais ações nas relações Sul-Sul, percebeu-se apenas uma visão econômica, especialmente quando se refere à África que, segundo a nova política, “não pede compaixão, mas espera um efetivo intercâmbio econômico” .
As desvantagens dessa proposta podem ser resumidas em alguns pontos. Em primeiro lugar, se desconstrói toda uma estratégia política de expansão das relações do Brasil com o restante do mundo, a qual levou muito tempo para que a diplomacia brasileira conseguisse chegar a um bom termo. Em segundo lugar, o risco desse estreitamento das relações do Brasil com poucos países poderá gerar consequências econômicas muito negativas, uma vez que a falta de ações diversificadas poderá dificultar as negociações do país com os parceiros tradicionais. Em terceiro lugar, além da política do governo interino caminhar no sentido oposto à anterior, ela praticamente inviabiliza todo o trabalho diplomático desenvolvido no sentido de fortalecer as relações Sul-Sul, em especial da integração do Brasil com América do Sul, América Central e Caribe.
IHU On-Line - O senhor já comentou sobre as dificuldades de oficializar e implementar a formação de um bloco regional na América Latina, depois das tentativas da Associação Latino-Americana de Livre Comércio - ALALC e da Associação Latino-Americana da Integração - ALADI. A que atribui tais dificuldades?
Lauro Mattei - As primeiras tentativas do processo de integração na América Latina remontam à década de 1960, quando foi celebrado o Tratado de Montevidéu (18-02-1960), que criou a Associação Latino-Americana de Livre Comércio - ALALC com o objetivo de instituir a formação de uma zona de livre comércio para ampliar as trocas econômicas e impulsionar o desenvolvimento industrial da região.
Desde então se observam na região importantes movimentos no sentido de oficializar e implementar a formação de um bloco regional. Embora a iniciativa da ALALC não tenha tido sucesso em seus objetivos, ela propiciou a criação da Associação Latino-Americana da Integração - ALADI na década de 1980, quando praticamente todos os países do Continente foram afetados por graves crises econômicas. O principal objetivo da ALADI foi manter vivo o projeto integracionista, que naquele momento esteve fortemente condicionado pela celebração de acordos preferenciais de tarifas, os quais poderiam levar à constituição de uma área de livre comércio na região.
De um modo geral, pode-se dizer que existe um somatório de fatores que historicamente potencializaram as dificuldades para se avançar em direção a um processo de integração regional na América Latina e, em particular, na América do Sul. Dado o grau de dependência da maioria dos países latino-americanos em relação à economia norte-americana, prevaleceu por muito tempo a posição dos EUA, país que foi contrário ao processo de formação de blocos regionais, ao mesmo tempo que defendia a celebração de acordos e negociações bilaterais. Além disso, contribuiu para retardar o processo de formação de um bloco regional o nível elevado de assimetrias das estruturas produtivas, o que inviabilizava pequenas articulações econômicas regionais. Por fim, e não menos importante, pesava sobre os países da região a herança cultural do passado colonial, a qual quase que subjugava esses países a ter relações bilaterais também com países europeus originários.
Essa trajetória, somada ao fim do regime militar durante a década de 1980 na maioria dos países latino-americanos, começou a ser alterada recentemente, facilitando a constituição do Mercosul a partir do ano de 1991. De um modo geral, se buscou inicialmente constituir um mercado comum regional com o objetivo de eliminar barreiras tarifárias para permitir a livre circulação de bens e serviços. Essa ideia ganhou concretude em 1991, por meio do Tratado de Assunção, e personalidade jurídica em 1994, através do Protocolo de Ouro Preto.
Imagem: Sintrapav
IHU On-Line - Qual é a posição do governo interino e da política externa brasileira em relação ao Mercosul? Quais são os posicionamentos e discursos diferentes que evidencia em relação ao governo anterior?
Lauro Mattei - Deve-se registrar que a política dos governos Lula e Dilma no âmbito do Mercosul procurou expandir suas fronteiras para a América Latina, sendo firmado o Protocolo de Adesão da República Bolivariana da Venezuela no ano de 2006, ao mesmo tempo que Peru (2003), Colômbia (2004) e Equador (2004) passaram a figurar como Estados Associados. Além disso, Nova Zelândia e México passaram a fazer parte oficialmente a partir de 2010 como Estados Observadores. E, em 2012, a Bolívia assinou um Protocolo em que manifesta sua intenção de se tornar também um Estado Membro.
Para além da esfera geográfica, o Mercosul avançou em mais duas direções. Por um lado, firmou-se no ano de 2005 o protocolo de Assunção sobre o Compromisso com a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos no bloco regional e, por outro, firmou-se no mesmo ano o Protocolo Constitutivo do Parlamento do Mercosul, que no Brasil foi promulgado em 2010, por meio do Decreto 6.105.
Ainda no campo político, em 2008 foi assinado o Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas - UNASUL, composta por doze estados nacionais e pautada pelo ideal da integração multissetorial. Neste caso, a UNASUL articula os dois blocos regionais: Mercosul e Comunidade Andina, com o objetivo de defender interesses econômicos e políticos de todos os países da América do Sul.
No cenário internacional, merecem registro os acordos firmados pelo bloco com outros países. Neste caso, registre-se o Tratado de Livre Comércio (TLC) firmado com Israel no ano de 2007 e o mesmo tratado firmado com o Egito no ano de 2010.
Esse conjunto de ações revela claramente um fortalecimento do processo de integração regional para além de uma mera área livre de barreiras tarifárias, ao ser incorporadas questões políticas e humanitárias. Parece evidente ser esta a mudança de rota que está sendo questionada, no momento, pelo governo interino do Brasil.
Ao apresentar “a nova política externa brasileira”, especificamente em relação ao Mercosul, afirmou-se que será necessário “corrigir o que for preciso como forma de fortalecê-lo, antes de mais nada quanto ao próprio livre-comércio entre seus países membros, que ainda deixa a desejar”. Registre-se, todavia, que ficou visível o baixo grau de prioridade das relações Sul-Sul, o que certamente afetará o andamento da política externa em relação ao bloco regional. E isso se torna bastante óbvio quando o próprio chanceler afirma textualmente que na América Latina as relações preferenciais serão com a Argentina e o México, significando que o horizontalismo dará lugar ao verticalismo consumado nos acordos bilaterais.
IHU On-Line - Em relação à América Latina, a nova política externa brasileira sinaliza dar prioridade às relações comerciais com a Argentina ou essa sempre foi a agenda brasileira adotada no Bloco? Por que os demais países ficam em segundo plano?
Lauro Mattei - É do conhecimento geral que no âmbito do Mercosul o grande mercado para os produtos brasileiros localiza-se na Argentina, inclusive com acordos efetivados que posteriormente acabaram sendo estendidos ao próprio bloco. Além disso, existe uma tradição maior do comércio bilateral, sendo que atualmente a Argentina é uma grande praça importadora de produtos industriais brasileiros. Como a maioria da produção industrial do país perdeu competitividade no mercado internacional, busca-se neste país uma alternativa que poderá amenizar parcialmente o processo de desindustrialização em curso no Brasil.
Mas também se deve considerar o alinhamento dessa proposta aos ditames da política externa norte-americana, a qual estimula e privilegia acordos bilaterais. Neste caso, fica implícito que as proposições do chanceler interino caminham na mesma direção, até porque tal política acaba se transformando em um resgate da influência norte-americana sobre a região.
Quanto aos demais países do bloco permanecerem em segundo plano, é claramente uma opção política, dado o incipiente volume de negócios realizados pelo Brasil com Uruguai e Paraguai e o baixo grau de relações comerciais com a Venezuela, país que já vinha sequencialmente sendo atacado politicamente pelas organizações partidárias que compõem o governo interino.
IHU On-Line - Como está avaliando a situação da Venezuela no Mercosul? O Mercosul pode seguir sem presidência? O que está acontecendo neste momento é uma estratégia de expulsar a Venezuela do Bloco?
Lauro Mattei - Desde o ingresso da Venezuela no Mercosul (em 2006) existem ações políticas de países membros que promovem cisões e conflitos internos ao bloco. Vejamos algumas delas. A primeira decorreu da postura do Paraguai. Após a aceitação da Venezuela como quinto país membro, essa decisão precisava ser referendada pelos congressos dos quatro países, fato que ocorreu imediatamente na Argentina e no Uruguai. No Brasil a adesão da Venezuela ao Mercosul só foi aprovada pelo Congresso Nacional em dezembro de 2009. Já o congresso do Paraguai não referendava tal decisão, o que impedia a adesão plena da Venezuela ao bloco. Com o golpe que ocorreu naquele país e que promoveu a destituição do presidente Lugo em 29-06-2012, os presidentes dos demais países membros se reuniram e suspenderam o Paraguai do bloco até a realização de novas eleições, o que ocorreu em abril de 2013. Além disso, naquela ocasião, os presidentes do Brasil, Argentina e Uruguai reconheceram a adesão plena da Venezuela, que passou a ser o quinto integrante pleno do bloco a partir de 2012.
Um segundo fato político relevante diz respeito à posição da Argentina. Tão logo foi eleito presidente em 22-11-2015, o Sr. Mauricio Macri disse, em sua primeira entrevista, que iria pedir a suspensão da Venezuela do Mercosul devido às acusações de abusos dos direitos humanos e às perseguições políticas aos opositores do atual governo. Para isso, lançaria mão da cláusula democrática do bloco comum. Tal feito seria realizado na reunião de cúpula no dia 21-12-2015 na capital do Paraguai. Todavia, no dia 07-12-2015, Macri voltou atrás de sua decisão justificando que o fato do governo da Venezuela reconhecer os resultados das eleições realizadas no dia 06-12-2015, as quais ocorreram com tranquilidade e deram vitória à oposição, retirava qualquer razão para se aplicar a cláusula democrática. Este episódio mostra o quanto ideológico é o movimento de chefes de Estado do bloco em relação à Venezuela.
Finalmente, chegou a vez do governo interino do Brasil agir contrariamente às regras estabelecidas legalmente no âmbito do bloco. No início do mês de julho de 2016, o presidente interino afirmou que era necessário “rediscutir o bloco para atingir o objetivo de sua política externa, que é ampliar as relações com o maior número possível de países do mundo”. Para ele, o Mercosul está dificultando que o Brasil estabeleça essas relações e faça outros acordos tarifários. Com isso, o país fica muito preso ao compromisso com o bloco.
Ou seja, na visão do governo interino do Brasil, todo o processo que foi construído até o presente momento, com base numa visão multilateral e sempre procurando o fortalecimento do conjunto dos países membros, precisa ser alterado porque o Brasil não está conseguindo fazer valer sua lógica atual de política externa que se assenta na ideia de acordos comerciais bilaterais.
A segunda tentativa do governo interino de implodir o Mercosul teve início em meados do mês de julho de 2016, quando o Sr. José Serra começou a se posicionar contrariamente à transmissão da presidência do bloco para a Venezuela. Neste sentido, ele foi até o Uruguai, acompanhado do ex-presidente FHC, para tentar convencer o presidente Tabaré Vázquez a não transmitir a presidência do bloco à Venezuela com o argumento desse país não ser uma “democracia plena” .
Em entrevista ao jornal O Globo (16-07-2016), assim se manifestou o ministro das Relações Exteriores do Brasil: “Imaginar a Venezuela dirigindo o Mercosul às vezes dá arrepios, em face dos desafios que o próprio Mercosul tem pela frente. A Venezuela tem questões mais profundas. Realmente, é um país em que não há democracia plena. Quando você tem presos políticos, você não tem um regime democrático funcionando a contento”.
A partir de então Serra passou a defender que a transferência do bloco fosse repassada para a Argentina, não obtendo o consentimento do Uruguai, país que estava exercendo tal cargo até o final do mês de julho de 2016. Como não houve consenso, no final do mês de julho o Uruguai deu por encerrada sua gestão, de acordo com os procedimentos legais instituídos pelo bloco.
Articulados pelo governo interino do Brasil, os governos da Argentina e do Paraguai ajudaram a impedir a realização da cerimônia oficial de transmissão do cargo, solenidade que nunca deixou de ocorrer nos 25 anos de formação do bloco. Mesmo assim, o governo da Venezuela, com base no artigo 5º do Protocolo de Ouro Preto, se declarou oficialmente no cargo.
Esta atitude venezuelana desagradou ao governo interino brasileiro que, em carta enviada aos chanceleres dos demais países membros em 01-08-2016, afirma que o Brasil não reconhece a Venezuela como presidente do bloco. Textualmente diz-se que “o governo brasileiro entende que se encontra vaga a Presidência Pro Tempore do Mercosul, uma vez que não houve decisão consensual a respeito de seu exercício no período semestral subsequente”.
Todavia, o Protocolo de Ouro Preto (1994) diz que a Presidência do Conselho do Mercado Comum (órgão máximo do bloco) será exercida por rotação dos Estados Partes, em ordem alfabética, pelo período de seis meses. Esta resolução é autoaplicável e automática, sabendo-se, a priori, que após seis meses o país de ordem alfabética subsequente será o novo presidente do bloco. No caso em pauta, era conhecido desde o início do ano de 2016 que a próxima presidência seria exercida pela Venezuela. Isso revela que o argumento do chanceler brasileiro de que não houve uma decisão consensual prévia não encontra guarida nos fatos, uma vez que nunca houve anteriormente uma discussão consensual prévia sobre a transmissão da presidência. Ela sempre foi automática e seguindo as normas e regras definidas nos Tratados e Protocolos firmados pelos países membros. Portanto, neste episódio revela-se falsa a argumentação do governo interino do Brasil.
IHU On-Line - A partir das críticas que Brasil, Argentina e Paraguai endereçaram à Venezuela, percebe tentativas de um realinhamento do Mercosul? Em que consistiria?
Lauro Mattei - É importante destacar que a principal crítica dos três países mencionados diz respeito ao fato de que ambos consideram a Venezuela um país não democrático. Portanto, sobre a questão da democracia mencionada pelo chanceler brasileiro, é preciso fazer uma ponderação sobre as normas e prática vigentes no bloco relativas ao quesito “democracia”. Sabe-se que este tema foi tratado pelo Protocolo de Ushuaia (Argentina), assinado em 24-07-1998 pelos quatro Estados Membros e também por mais dois Estados Associados (Bolívia e Chile). Este Protocolo estabeleceu o compromisso democrático entre os participantes, definindo que a plena vigência de instituições democráticas é a condição essencial para o desenvolvimento do processo de integração entre os Estados Partes.
Este protocolo foi aprimorado posteriormente, recebendo o nome de Protocolo de Montevidéu para a Defesa da Democracia, também conhecido como Ushuaia II. Tal documento, assinado em 20-12-2011 pelos quatro países membros mais Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, estabeleceu a chamada Cláusula Democrática do Mercosul. Esta cláusula, além da plena vigência das instituições democráticas (Ushuaia I), estabeleceu o compromisso dos Estados Partes com a promoção, defesa e proteção do estado de direito democrático e com os direitos humanos e com as liberdades como condições essenciais para o aprofundamento do processo de integração. Esse Protocolo será aplicado toda vez que ocorrer ruptura ou ameaça de ruptura da ordem democrática que ponha em risco o legítimo exercício do poder e a vigência dos valores e princípios democráticos.
Deve-se realçar que a Venezuela foi o único integrante do bloco que até o presente momento ratificou o Ushuaia II (em 07-05-2013), sendo seguido pelo Equador, que o ratificou no ano de 2014. Todos os demais Estados Membros ou Estados Associados do bloco sequer ratificaram tal cláusula. Chama atenção que o Paraguai, que agora se associou ao Brasil para impedir a posse da Venezuela na Presidência Pro Tempore do Bloco, afirmou taxativamente, quando de seu regresso ao bloco em 20-12-2013, que se reservava alguns direitos, sendo o principal deles a não aceitação do Ushuaia II.
Portanto, fica explícito nas passagens anteriores que o motivo atual de conflito entre Brasil, Paraguai e Argentina em relação ao exercício legítimo da presidência do bloco por parte da Venezuela está fortemente contaminado por diferenças ideológicas, muito mais do que simples conjecturas sobre “democracia plena”. Afinal, tomando-se o Ushuaia II como referência, nota-se que a Venezuela foi o único país que até o momento honrou a Cláusula Democrática do Bloco, uma vez que a ratificou. Portanto, os demais membros que não a ratificaram não têm nenhuma condição para exigir, no âmbito do Mercosul, qualquer posicionamento daquele país, em especial no quesito democracia.
Mas suspeitamos que existam outros motivos por trás da decisão do governo interino brasileiro de aprofundar os conflitos que, na prática, enfraquecem ainda mais o Mercosul. Por um lado, a ação decisiva do bloco na formação da UNASUL e da CELAC de alguma forma ajudou a expandir de forma expressiva o processo integracionista regional, o que pode ser mensurado por meio do aumento do volume de intercâmbios comerciais e investimentos intrarregião. Por outro, a perspectiva desenhada pela chamada “nova política externa” definiu como estratégico firmar acordos bilaterais aos moldes clássicos das estratégias das grandes potências, em particular da política externa norte-americana.
Desta forma, parece claro que o realinhamento do Mercosul nas condições e aspirações atuais dos governos atuais, sobretudo brasileiro e argentino, buscará eliminar a cláusula que obriga os países a negociar conjuntamente acordos de livre comércio com outros blocos (Tratado de 1991). Provavelmente era a isso que o presidente interino brasileiro se referia quando afirmou que hoje o Mercosul dificulta que o Brasil faça acordos tarifários bilaterais, provavelmente com os países prioritários mencionados no documento de posse do chanceler interino.
IHU On-Line - O fato de termos como ministro das Relações Exteriores um político que mantém ambições eleitorais, e não um diplomata de carreira, impacta de alguma forma a diplomacia brasileira?
Lauro Mattei - As diretrizes da política externa do governo interino deixaram uma mensagem essencialmente política, ao se afirmar que o atual governo estava fazendo uma política de Estado e não de governo e nem de um partido, mesmo que propositadamente tenham se esquecido de alguns fatos óbvios.
Em primeiro lugar, as proposições apresentadas são essencialmente políticas e, portanto, refletem uma concepção de governo e não de Estado. E seus atos subsequentes — como os mencionados em relação ao Mercosul — espelham exatamente isso.
Em segundo lugar, quando o chanceler interino menciona partido político, obviamente que ele está se referindo ao partido do governo que sofreu o impeachment. Todavia convém lembrar que durante o governo Lula (PT) não havia correligionários no Itamaraty e o posto de chanceler foi ocupado por diplomata de carreira. Já no governo Dilma todos os ocupantes do Itamaraty foram diplomatas de carreira e nenhum deles era filiado a qualquer partido político.
Já o mesmo não se pode dizer sobre passagens recentes pelo Itamaraty de correligionários do chanceler interino. Por exemplo, em termos políticos, deve-se registrar que FHC (enquanto senador pelo PSDB) foi ministro das Relações Exteriores em 1992/93. No segundo governo FHC (1999-2002) o chanceler era correligionário do mesmo partido do presidente (PSDB). Isto representa, nas palavras de Celso Amorim, a presunção de que somente o que o chanceler interino propõe é política de Estado, fato que pode ser considerado um misto de arrogância e de prepotência.
Nestas circunstâncias — e diante de posições e proposições adotadas pelo chanceler interino em seus primeiros três meses de exercício do cargo — é visível a perda de qualidade da diplomacia brasileira, além de uma verdadeira ideologização da política externa, a qual remete o país ao final do século XX.
IHU On-Line - Quais são as principais dificuldades de integração do Mercosul neste momento histórico?
Lauro Mattei - Do ponto de vista da trajetória, observa-se que, diferentemente de outras experiências mundiais, o Mercosul teve como fio condutor a instituição de uma união aduaneira que se caracteriza pela completa eliminação de barreiras alfandegárias e não alfandegárias entre os países membros. Ao ganhar personalidade jurídica (Tratado de Ouro Preto, 1994), o órgão diretivo do bloco passou a ter poder de negociar com outros países e organizações internacionais em nome do Mercosul.
Segundo Carvalho (2000), resumidamente pode-se caracterizar o Mercosul a partir de quatro grandes linhas temáticas: a) Livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países; b) Estabelecimento de uma Tarifa Externa Comum (TEC); c) Coordenação conjunta de políticas macroeconômicas e setoriais; d) Compromissos dos países membros de harmonizar suas legislações nas áreas onde são firmados os acordos.
Obviamente que o processo de integração sofreu diversos sobressaltos em seu percurso, sendo que até hoje não se viabilizou uma integração plena, comparativamente a outras experiências mundiais. Todavia, depois de firmado o Tratado de Assunção em 1991 foram implementadas diversas iniciativas que poderão ser determinantes para o futuro do bloco. Dentre estas, destacamos: Protocolo de Las Leñas (1992); Protocolo de Buenos Aires sobre Jurisdição Internacional em Matéria Contratual (1994); Protocolo de Ouro Preto (1994); Protocolo de Medidas Cautelares (1994); Protocolo de Assistência Jurídica mútua em Assuntos Penais (1996); Protocolo de Integração educativa para a Formação de Recursos Humanos a Nível de Pós-Graduação entre os Países Membros do Mercosul (1996); Protocolo de Ushuaia I (1998); Protocolo de Olivos (2002); Protocolo de Assunção sobre Compromisso com a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos (2005); Protocolo Constitutivo do Parlamento do Mercosul (2005); Tratado Constitutivo da União das Nações Sul-Americanas (2008); Tratado de Ushuaia II (2011).
São evidentes os efeitos sobre o fluxo de comércio entre os países a partir da celebração dos Acordos Preferenciais de Comércio - APC, os quais procuram expandir a integração comercial entre os Estados membros. Neste caso, deve-se registrar que a livre circulação de produtos, serviços e fatores de produção foi potencializada, tanto em termos das políticas macroeconômicas e setoriais, que provocaram importantes reduções de tarifas intrabloco, como em termos da definição de uma Tarifa Externa Comum - TEC.
Neste sentido, é importante registrar que o comércio interno ao bloco cresceu acentuadamente desde o início da formação do mercado comum, sendo que durante a década de 1990 apresentou uma taxa de crescimento média acumulada ao redor de 73%, sendo que grande parte desses resultados positivos deve-se ao aprofundamento das relações comerciais entre Brasil e Argentina, países que ao final do século XX enfrentaram grave crise econômica. Mesmo assim, nota-se que nos primórdios do século XXI essa tendência continua se fortalecendo.
Mas ainda são necessários novos esforços diplomáticos no sentido de se fazer valer acordos já firmados — o que significa que os Estados Membros precisam ratificar mais celeremente os acordos — para que os mesmos passem a ter validade. Além disso, é importante que fatos políticos — como o ocorrido no Paraguai em 2012/13 — não atuem no sentido de frear a expansão do bloco, bem como posições essencialmente ideológicas de determinados governos não venham potencializar conflitos políticos, os quais colocam a consolidação do bloco no caminho inverso ao que está sendo demandado. Finalmente, é preciso que seja garantida a originalidade do processo, evitando-se cair no discurso fácil de acordos bilaterais com parceiros que tradicionalmente se manifestaram contrários à conformação de um grande bloco latino-americano. Obviamente que todos esses aspectos poderão ter pouca viabilidade caso prevaleça a posição conflitiva atual patrocinada pelo governo interino do Brasil, que está sendo endossada também pelos governos da Argentina e do Paraguai, país que recentemente demonstrou ser pouco afeito a conviver com regimes democráticos.
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