Por: Jonas | 24 Junho 2015
Constanza Moreira (foto) aderiu a Frente Ampla desde muito jovem, quando a participação política penetrava as portas das universidades, onde estudou Licenciatura em Filosofia, e hoje é doutora em Ciência Política. Nessa conjunção entre academia e militância, Moreira se ocupou de temas como a democracia no Uruguai e na América Latina, as desigualdades sociais e a cultura política.
Além de sua participação política, esta Senadora da Frente Ampla foi colunista do semanário “Brecha”, em fins dos anos 1990.
Fonte: http://goo.gl/VaSUTC |
Nas eleições nacionais de 2009, integrou a equipe de Campanha de José “Pepe” Mujica e do Espaço 609, setor pelo qual foi eleita Senadora da República. Como integrante de várias comissões do Senado, Constanza Moreira se assume como defensora da construção de políticas públicas “a serviço das maiorias”.
A senadora uruguaia se mostra cética com as últimas eleições departamentais de seu país. “As eleições voltam a expressar à Frente Ampla que não possui todos ao seu lado”, afirma ao jornal Página/12. Estes resultados obrigam – segundo ela – a uma mudança na Frente. Moreira analisa as modificações estimuladas por Tabaré Vásquez na política exterior e na política econômica de José “Pepe” Mujica.
A entrevista é de Natalia Aruguete e Bárbara Schijman, publicada por Página/12, 22-06-2015. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Qual é a sua análise dos resultados das eleições departamentais e municipais do passado dia 10 de maio?
Os resultados não foram ruins, tampouco bons. A Frente Ampla continuou com três dos cinco governos departamentais que já possuía, recuperou dois dos quatros que possuía anteriormente e venceu, por apenas duzentos votos, em Rio Negro. A derrota em Maldonado e Artigas, no entanto, deixou um gosto amargo. É a primeira vez, após dez anos, que a Frente perde em Maldonado. Ali não se dá o que ocorre em Montevidéu e Canelones, onde a Frente se transformou no partido predominante. Em Maldonado, governamos durante dez anos, mas há um efeito de retorno do velho Partido Nacional. Por isso, causa-nos dor e é nisso que devemos prestar atenção. As eleições voltam a expressar à Frente Ampla que não possui todos ao seu lado, que a vitória dos outros não é apenas por dinheiro e propaganda, que não se vence as eleições de qualquer maneira e, às vezes, nem sequer com bons candidatos. Que o fato de ter tirado o país da crise e tê-lo feito prosperar não é garantia de nada.
Que cenário vislumbra frente ao futuro?
Estas eleições deixam várias lições. A Frente Ampla deve passar de uma estratégia “global” ao esboço de dezenove estratégias departamentais. O cansaço é dos dirigentes, não necessariamente dos eleitores. E o que tende a tornar as campanhas eleitorais difíceis não é o cansaço, mas, sim, o dinheiro. Boa parte destes e de outros problemas que a nossa democracia apresenta se resolveriam com uma boa lei de financiamento de campanhas eleitorais que assegure recursos iguais aos partidos, como a que existe na maior parte dos países do mundo. Em tal sentido, medidas orientadas ao uso “público” da televisão, que garanta a visibilidade de todos, seriam muito sadias para o funcionamento da poliarquia uruguaia. Paradoxalmente, isto parece mais difícil de fazer do que impulsionar uma nova reforma constitucional.
Por quê?
A Frente Ampla já não tem um crescimento “irresistível”. Nos tempos que seguem, além de administrar o governo, deverá dedicar tempo e energia para pensar nas transformações que será necessário fazer frente ao futuro. Está claro que precisa “fidelizar” eleitores, mas, sobretudo, continuar fazendo trabalho político com as pessoas.
As últimas três eleições presidenciais no Uruguai deram por vencedor o candidato da Frente Ampla, uma tendência para o fim do bipartidarismo?
Para encontrar uma situação semelhante, é preciso voltar aos anos 1950; depois, nunca mais existiu tal repetição de um partido no governo. Isso coloca os partidos da oposição em um estado de alerta máxima. Além disso, o candidato vence com uma maioria apertada, no sentido de que temos 50 deputados, de um total de 99, e 16 senadores, de um total de 31. Sempre temos um voto a mais do que eles. Costumamos chamá-lo de “o voto 50”, porque isso dá muitíssimas possibilidades de chantagear algum dissidente nosso: nesta situação, apenas uma pessoa te deixa sem maioria. Temos maioria, mas para exercê-la é necessário manter uma disciplina perfeita. Isto aconteceu conosco com o aborto. O deputado 50, que era diácono da Igreja católica, não quis dar seu voto. Então, tivemos que negociar com um partido pequeno – que tinha apenas dois deputados – todo outro projeto. O fato dessa maioria ser por um voto, acarreta uma grande necessidade de fazer acordos internos para evitar dissidências dentro das votações. Ainda que depois, em segundo turno, vencemos folgados. Este é um dado importante também, o fato de que em um segundo turno vencemos por 4 ou 5 pontos de diferença.
Que dificuldades esta dinâmica legislativa acarreta?
Na Constituição uruguaia há questões que devem ser modificadas por maiorias especiais, por exemplo, a modificação de leis eleitorais. O voto no exterior não saiu no Uruguai porque se entende como uma modificação da lei eleitoral e os partidos da oposição não nos dão os votos. A lei de cotas para as mulheres saiu uma única vez porque essa foi a condição que os partidos da oposição apresentaram, mas nós queremos ampliá-la e torna-la indefinida. As vênias, as aprovações feitas pelo Senado dos embaixadores, ministros da Suprema Corte de Justiça, tudo isso precisa de maiorias especiais.
O que ocorre no caso das nomeações? O regime é diferente, verdade?
Sim, e consiste em que, se aos 60 dias a oposição não oferece os votos, então aí você possui uma vênia fixa. No entanto, são muitas as coisas que precisam de maiorias especiais. O modo como o Uruguai modifica suas leis eleitorais nos complica profundamente.
Por quê?
Dois exemplos do que digo: o tema do voto no exterior e a cota para mulheres. Depois, a Frente tem muita disciplina parlamentar. Inclusive, o Parlamento funciona como uma correia das decisões do Poder Executivo. Não há muitos problemas com a disciplina parlamentar quando as coisas vêm do Executivo. Agora, quando os projetos são apresentados pelos legisladores ou pela sociedade civil, então a disciplina parlamentar se torna mais difícil de ser alcançada. Porém, não acredito que tenhamos tais problemas neste período.
Isso obstrui uma dinâmica mais democrática na aprovação das leis?
Os tipos de problemas que Uruguai enfrentará são de outra ordem, e tem a ver com um enfraquecimento no avanço do crescimento econômico no país e na região. Parece-me que isso é o que está determinando hoje a perspectiva econômica do Brasil, Argentina e Uruguai. Temos que enfrentar o enfraquecimento da economia brasileira. Isso é o que colocará restrições, nos próximos cinco anos, às reformas que tínhamos pensado em implementar: reforma da Justiça, investimento em infraestrutura e logística (que para Uruguai está sendo muito determinante pelo projeto de desenvolvimento) e o sistema nacional de cuidados. Tudo isto em um contexto de restrição do crescimento econômico. Será necessário ver as prioridades. Essa será a grande discussão deste ano.
Dentro do governo de Tabaré Vásquez, quem pode ser identificado como continuidade do ex-presidente José “Pepe” Mujica?
Neste momento, quem aparece como referência é sua esposa, a senadora Lucía Topolansky (que foi candidata à intendente de Montevidéu), dentro do Movimento de Participação Popular (MPP), Frente Ampla. Ela é a figura mais importante dentro do Movimento. Não me animaria a dizer que é a continuidade, mas, sim, a referência que ocupa o lugar de liderança na ausência de Mujica. O fato de ter sido colocada à frente da Capital, na campanha eleitoral, significa que quiseram apresentar o melhor que tinham. Mujica não precisará de continuidade porque ele continua aí, com sua voz, com sua presença, fala todos os dias. Sem ir muito longe, caso se considere a quantidade de segundos que Mujica aparece e a quantidade de segundos que Vázquez aparece, sem dúvidas Mujica deve dobrá-lo.
Levando em consideração as diferenças entre Mujica e Vázquez frente ao regional, quem deles tomará as decisões de fundo sobre o que se deve fazer?
Na política exterior e na política econômica já temos uma controvérsia em relação ao TISA (Acordo de Comércio de Serviços, em sua sigla em inglês). A ideia é que seja um tratado multilateral para liberalizar o comércio de serviços entre os Estados Unidos, a União Europeia e alguns países da América Latina. Trata-se de uma discussão que já se colocou e, de alguma maneira, apareceu que o Uruguai estava participando dessas negociações, mas ninguém sabia de nada, ainda que o governo insista que avisou os sindicatos. Apareceu – inclusive – que essa negociação começou no período de Mujica. Aí, a Frente Ampla deve tomar tempo para resolver.
Em que sentido deveria resolver? Qual é a conveniência do TISA para o Uruguai?
O governo está tomando as rédeas do que entende que deve ser uma política exterior de esquerda. A Chancelaria atual não tem a mesma orientação que aquela da época de Mujica. Nós tínhamos a Almagro, um chanceler empenhado no tema dos direitos humanos. Foi ele quem incentivou a revogação das leis de caducidade. Depois, Almagro foi decisivo para o reconhecimento do Estado Palestino. Teve uma política muito em consonância com o que acreditamos que deve ser uma política exterior de esquerda. Era interpelado e chamado ao Parlamento por essa característica. Nem Novoa, o chanceler atual, tem outra perspectiva e quando enfrenta a situação da Venezuela, apresenta a pauta de uma perspectiva muito mais crítica a respeito desse país.
Mais próxima a Washington?
Mais crítica da Venezuela, sem dúvidas... Depois, ocorreram as reuniões de Tabaré com Obama. E hoje existe toda uma discussão a respeito dos presos de Guantánamo e sobre quem deve se tornar responsável pelos custos de sua permanência no Uruguai. O governo dos Estados Unidos, assim como no Uruguai, oferece pensões reparatórias aos presos da ditadura, deveria dar uma pensão reparatória a esses presos que permaneceram detidos sem condenação, de maneira completamente irregular. Agora mesmo, temos uma discussão a respeito disso que vem do governo de Mujica, como o TISA. De qualquer forma, algo disto já foi visto no primeiro governo de Tabaré e o Acordo de Comércio e Investimentos com os Estados Unidos (TIFA)... Sobre isso, Mujica disse que deixava a discussão para o próximo governo. Então, a Frente Ampla pega firme e assume a debate. Estamos nisso, mas há uma grande resistência. No dia 1º de maio, a central sindical se posicionou fortemente contra o novo TISA.
É possível pensar que o Uruguai utilize tais convênios como pressões a outros países do Mercosul?
O Uruguai gera certa pressão ao estabelecer acordos fora do Mercosul. De fato, o tratado de livre comércio com Estados Unidos não saiu porque, de alguma forma, o Brasil foi firme e disse: “não”.
Quer dizer que o Brasil tem capacidade de veto sobre as decisões de política exterior do Uruguai?
O Brasil tem capacidade de “convicção” sobre nós. Agora, no caso do TISA não teriam feito nenhum reparo – nem a Argentina e nem o Brasil – no fato do Uruguai participar das negociações, que só estão começando. Os tratados, depois, devem ser aprovados pelos Parlamentos. O que o Uruguai sustenta é que participar das negociações é bom, que desse modo se conhece a informação por dentro e que, além disso, todos os países podem apresentar a lista daquilo que não querem liberalizar.
E possui tal margem de liberdade para decidir o que não querem liberalizar?
Essa foi a defesa do governo uruguaio, mas o certo é que o governo sindical disse: “não”. Para mim, os inconvenientes do TISA ficam claros, o que não fica claro é o que o Uruguai ganharia. No momento, cada ministro está apresentando um relatório sobre o TISA no que diz respeito a sua própria pasta. A Chancelaria está de acordo em fazer parte das negociações. Seria necessário conhecer argumentos produtivos: o que serve ao Uruguai liberalizar serviços? Quais serviços importantes que o Uruguai exporta seriam favorecidos com o tratado? São claros inconvenientes a respeito da participação de empresas estrangeiras nos serviços que monopolizamos, como Antel. Foi dito que os serviços de monopólio público não seriam liberalizados. A questão é sobre as coisas que hoje não são de monopólio público, mas que amanhã talvez se queira reservar para um tratamento diferenciado em termos de mercado. Inicialmente, não vejo isso com bons olhos. Os países que se incorporaram às negociações não são os países do Mercosul, com uma perspectiva mais desenvolvimentista, são países com orientações muito diferentes das nossas.
O que implica para o Uruguai a incorporação da Bolívia e da Venezuela no Mercosul?
Para nós é benéfico. Como o Uruguai de alguma maneira tem essa determinação geopolítica de ser pequeno e viver entre dois grandes, tudo o que seja a ampliação do Mercosul é bom. Sobretudo, quando se amplia com países menores, pois desse modo aumenta a capacidade de orientação e negociação que nós, os menores, temos em relação aos grandes. O Uruguai aumentou muitíssimo suas relações comerciais e econômicas com a Venezuela. Por um lado, uma boa parte dos produtos lácteos vai para lá; por outro, a Venezuela foi muito generosa com o Uruguai por meio da ajuda a empreendimentos específicos. Por conseguinte, a deterioração econômica da Venezuela afeta o Uruguai e afeta, além disso, setores específicos de mercado como o do leite. Para nós, este assunto foi gracioso, porque quando o Mercosul decide suspender a condição de sócio do Paraguai e incorporar a Venezuela, no Uruguai, debateu-se muito mais a sanção ao Paraguai – os Blancos e Colorados não queriam, pois possuem compromissos com o governo paraguaio – do que a incorporação da Venezuela, porque todos tinham claro os benefícios econômicos que poderia envolver. E aí os argumentos ideológicos passaram para um segundo plano, e não parecia ruim a incorporação da Venezuela, ainda que pudesse não parecer boa a forma como foi feita.
E no caso da Bolívia?
Com a Bolívia as relações comerciais não são tão intensas. A Bolívia também passou a ocupar um lugar politicamente destacado: por causa de Evo, pelo indigenismo, pela refundação do Estado plurinacional. Agora é vista com mais respeito.
De onde surge esse respeito?
Em matéria de drogas, nós estudamos o caso boliviano, porque para a regulação da maconha o Uruguai seguiu o que a Bolívia fez, independente que os percursos tenham sido diferentes. Voltando à ampliação do Mercosul, para nós tudo é ganho. De fato, o ideal seria ter um Mercosul tão grande como a Unasul, que toda a região funcionasse como um bloco comercial.
Quais são os obstáculos para essa ampliação? Inclusive para avançar com o Banco do Sul...
No caso do Banco do Sul, que seria ter fontes próprias de financiamento, há várias questões. Primeiro, o Chile se desprende desta ideia: quando deve votar se desentende do projeto e todos nós sofremos sua escolha. Não sei como se resolve isto, mas faz isto muito firmemente e, enquanto todos nós nos orientávamos para uma economia regional, o Chile se colocou sozinho. Depois, temos a Aliança do Pacífico: Colômbia, Peru, todas estas economias que, além disso, estão muito engatadas com os Estados Unidos; um país, este último, que não olha com bons olhos estas tentativas de uma economia continental. Temos o Chile que evade e a México que evade por defeito. Hoje em dia, quando falamos de América Latina, fazemos um corte e deixamos o México de lado, e isto é triste porque o México era muito importante na perspectiva da pátria grande.
Porém, o México, além de fazer parte da América Latina, é um país que compartilha mais coisas com os Estados Unidos do que com qualquer país da América do Sul. O que impede a integração é o modo como os Estados Unidos jogam no tabuleiro, estabelecendo relações unilaterais com países e o fato de que todos queiram vender à economia norte-americana. Além disso, buscar a unidade latino-americana é se envolver em uma grande confusão, porque vemos que os países têm economias muito diferentes. Sem ir muito longe, a convergência da política monetária. Se não há convergência da política monetária, então surgem problemas como os que temos com o turismo argentino. Agora temos esse problema com o Brasil, eles baratearam muito o seu dólar. A economia do free-shop e a zona franca estão caindo aos pedaços pela falta de convergência das políticas monetárias. Os países estão muito desesperados em busca de seu próprio projeto de desenvolvimento regional. Até 20 anos atrás, éramos pobres e vivíamos em crise. “A década de êxito” é uma década, não meio século. O que sinto é que o Brasil e a Argentina buscam seu destino nacional, quando nós buscamos um destino regional. Para os países pequenos, o destino regional é muito mais importante do que para os países maiores.
Que peso os conglomerados transnacionais possuem no rodapé dos acordos internacionais, como o TISA?
Imagino que muito. Nos anos 1980, não tínhamos uma perspectiva da relação regional positiva como se tem agora. Para nós, tudo isso era um pacote no qual apenas ganhavam as transnacionais e se liquidavam as indústrias nacionais. Porque víamos que as tarifas eram rebaixadas, que ocorria a liberalização comercial, sempre já se sabia quem eram os vivos do filme. Por isso, a esquerda uruguaia resistiu ao Mercosul, sendo que agora é a primeira a defendê-lo. Há outra coisa: no Uruguai as transnacionais também significam empresas argentinas e brasileiras. O mesmo acontece com a Bolívia e o Equador. Há um fenômeno de transnacionalização de grandes empresas que também é regional e, aí, o Brasil tem um grande papel.
Quanto foi significativo foi o papel da sociedade na ampliação de direitos no Uruguai?
Tudo aquilo que se conhece como “avanço dos direitos” e que se considera como “avanços de Mujica” é preciso dar os créditos à sociedade civil. É uma aliança virtuosa entre a sociedade civil e o Parlamento. Exceto a regulação da maconha, a descriminalização do aborto e o matrimônio igualitário não são projetos do governo. Claramente, a descriminalização do aborto não é; a única coisa que pedimos ao Governo é que o deixasse fluir, o mesmo ocorreu com o matrimônio igualitário, que é uma iniciativa do movimento gay e das “Ovejas Negras” (uma organização defensora dos direitos das pessoas LGBT do Uruguai).
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“O que impede a integração é o modo como os Estados Unidos jogam no tabuleiro”, afirma senadora uruguaia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU