31 Março 2016
É neste momento que mais se precisa defender o bloco, inclusive com a aplicação de suas regras sobre um de seus membros fundadores, o Brasil .
O comentário é de Cristina Soreanu Pecequilo, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI), em artigo publicado por CartaCapital, 31-03-2016.
Eis o artigo.
Nas últimas semanas, algumas declarações chamaram a atenção no quadro da integração regional sul-americana em resposta às crescentes tensões político-sociais do Brasil, que culminaram na abertura do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Neste contexto, o presidente Evo Morales da Bolívia, a ministra das Relações Exteriores da Argentina Susana Malcorra e o alto representante geral do Mercado Comum do Sul (Mercosul), Dr. Rosinha, trouxeram à tona o tema da Cláusula Democrática do Mercosul (Protocolo de Ushuaia I e II) e dos compromissos institucionais assumidos no âmbito deste bloco e de arranjos como a União de Nações Sul-Americana (UNASUL) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) pelos países membros.
De acordo com o Protocolo de Ushuaia I, assinado em 1998, os países signatários, estabelecem que “A plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para o desenvolvimento dos processos de integração entre os Estados Partes (...) Toda ruptura da ordem democrática em um dos Estados Partes do presente Protocolo implicará (....) os demais Estados Partes promoverão as consultas pertinentes entre si e com o Estado afetado (...) considerarão a natureza e o alcance das medidas a serem aplicadas (...) desde a suspensão do direito de participar nos diferentes órgãos (...) até a suspensão dos direitos e obrigações (...).”
Em 2011, o Protocolo de Ushuaia II reafirma estas prerrogativas, acrescentando o potencial fechamento de fronteiras entre os signatários, estendendo a denúncia da ruptura democrática para outros organismos regionais e globais como as Nações Unidas. A ênfase na legalidade política, na legitimidade dos processos e nos direitos humanos é objetiva, não deixando margem a interpretações.
Entre 2012 e 2013, nações como o Paraguai foram suspensas destes arranjos a luz da quebra de seu regime democrático e a perda de mandato do então Presidente Fernando Lugo. Naquele momento, muitos definiram a situação paraguaia como a de um “Golpe Branco” realizado pela oposição conservadora, tática política que, poucos anos depois, observa-se sendo repetida no Brasil.
Preocupantes, os rumos da política interna e as pressões enfrentadas por um governo democraticamente eleito pela maioria dos votos populares, apontam para a potencial ruptura do regime democrático. Ou seja, a Cláusula Democrática poderia ser acionada e os vizinhos chamados a agir em situações de coordenação ou mediação diplomática diante do agravamento da crise no Brasil.
Para o país, que desde os anos 1980, ao lado das nações sul-americanas, assumiu a condição de líder destes processos, a aplicação da cláusula representaria tanto seu sucesso quanto fracasso. Sucesso no sentido de ter construído uma América do Sul na qual a Cláusula Democrática vale para todos, e reforçou, e é reforçada pelo compromisso da integração.
Compromisso este que abriu, e tem aberto as portas para a cooperação em nível social e econômico regional e global, e que tem provocado a redução de assimetrias e a formação de uma coalizão de forças que defende maior igualdade e empoderamento das populações.
Sem agendas autônomas ou sem o Mercosul ou a Unasul ou a Celac, ou a IIRSA/COSIPLAN, poderia se imaginar uma América do Sul que incluiu classes nas dinâmicas político-econômicas internas ou tirou da exclusão populações mantidas à margem por sua origem étnica ou social? Por que recuar se fomos tão longe no Brasil e na região? Por que flertar com o fracasso? E que fracasso é esse?
O fracasso de não jogar o jogo político, de ter caído na armadilha das respostas fáceis, anti-constitucionais, que obscurecem um diálogo interno justo e equilibrado. Busca-se a polarização e a quebra quando não se tem nada a dizer ou projetos a construir, beirando a ausência de maturidade.
Ausência esta que é revelada na confusão que se realiza, muitas vezes de forma proposital em vários meios, na compreensão do que significa fazer um pacto com a democracia. Defender a democracia não é defender este ou aquele partido, mas sim lutar pelos direitos do povo e da nação brasileira. Ao se pronunciarem, as vozes regionais apenas apontam a realidade que vivemos: a de um país em meio à quebra da legalidade, no qual os fins justificam os meios.
Diante da possibilidade da invocação da Cláusula, não foram poucas as vozes dentro da oposição que acusaram o Mercosul de “ingerência” e sinalizaram que esta seria mais uma prova de sua ineficiência e constrangimento para a liberdade do Brasil.
A estes críticos de tratados assinados e legitimados pelo país, em sua sociedade, Executivo e Legislativo, cabe lembrar que Ushuaia I e II são reconhecidos como pilares do ordenamento legal e multilateral por vários organismos, inclusive as Nações Unidas. Em 2001, a Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou a Carta Democrática Interamericana, respondendo à evolução do hemisfério.
Porém, para os que defendem o fim dos projetos de integração sul-americanos como os conhecemos, com conteúdo político-estratégico a suspensão do Brasil deveria ser respondida com a saída destes organismos.
Com isso, o país estaria pronto para buscar parcerias comerciais, livre cambistas e neoliberais e, privilegiar apenas alianças políticas Norte-Sul. Não é coincidência, que os que desejam o impeachment, com todas as suas vulnerabilidades jurídicas, questionem o Mercosul, a integração sul-americana e a Cooperação Sul-Sul (mesmo os BRICS).
Curiosamente, estes grupos defendem a aproximação com os Estados Unidos e a União Europeia como modelos superiores. Mas estas são sociedades nas quais a violência endêmica, a desigualdade, a xenofobia e o radicalismo avançam, e colocam em xeque este regime.
Qual caminho democrático se deseja seguir, o que leva Obama à Cuba, ou o que sustenta o pré-candidato republicano Trump? As visões da Chanceler Merkel ou as dos neonazistas? Infelizmente se tornam claras as respostas de algumas forças políticas brasileiras.
O Mercosul é Ushuaia e muito mais. Apesar de março de 2016 marcar os 25 anos de bloco, muitos são os que abafam a história de sucesso desta integração entre países em desenvolvimento.
E uma integração que nasce sob crises e as superou com visão estratégica. Até mesmo os que o apoiam tem receio e o governo pratica desde 2011 uma política externa de baixo perfil. Afinal, comemorar (ou até mencionar) o Mercosul no presente clima de patrulhamento ideológico pode nos tornar vítima de agressões e ofensas.
Os sinais estavam dados, e o erro maior não foi subestimá-los, mas sim abrir mão de nossos projetos de forma sistemática, mudando políticas e agindo com timidez e ambiguidade, e não só no que se refere ao Mercosul. Quanto ao bloco, é neste momento que mais se precisa defendê-lo, inclusive com a aplicação de suas regras sobre um de seus membros fundadores se necessário.
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A maturidade democrática: o Mercosul aos 25 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU