Por: Jonas | 04 Mai 2016
“A corrupção, o ‘impeachment’, a destituição de Dilma, etc., são parte do circo montado para o grande público. Mas, o que se aposta nesse circo é outra coisa. O destino de toda a América do Sul está em jogo, enquanto se incentiva, também midiaticamente, a desilusão e o desencanto de nossos processos (que vão além das vicissitudes dos circunstanciais governos). O desenlace do que acontecer no Brasil, marcará a disposição geoestratégica, seja de reclusão ou expansão, dos BRICS. Se o Brasil cair, a supremacia estadunidense terá uma carta estratégica para enfrentar as potências emergentes e contará novamente com os nossos recursos para uma nova reconquista do mundo”, escreve Rafael Bautista S., autor de “La Descolonización de la Política. Indroducción a uma Política Comunitaria” e coordena o “taller de la descolonización” em La Paz, Bolivia, em artigo publicado por America Latina em Movimiento, 28-04-2016. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Se a diplomacia aberta é esboçada para o consumo informativo (pois algo precisa ser informado), a política exibida midiaticamente é concebida para modelar a opinião pública. Nenhuma tem, como missão, orientar e, menos, gerar uma relação crítica com os fatos políticos (o novo circo romano é virtual). O que se informa não contém nada que não seja o permitido pela função atribuída, ou seja, o que se sabe é apenas o que uma administração seletiva de informação permite saber (este controle, é claro, não é de todo perfeito; seu êxito é proporcional ao grau de domesticação produzida). A interpretação dos fatos políticos é, desse modo, circunscrita dentro das margens permissíveis que estabelece um poder estratégico que sabe a importância da manipulação da informação.
A diplomacia aberta é um conceito que sintetiza a visão aristocrática da democracia moderna: o povo não tem motivo para saber o que realmente está em jogo. O povo obedece, não decide. Aqueles que decidem são os protagonistas da diplomacia profunda e são os artífices da política real. O que se vê é apenas o teatro midiático, a tragicomédia política, mas a trama, o argumento e o miolo do assunto, não podem ser exibidas, nem sequer no próprio desfecho. Porque descobrir isto é revelar os propósitos do nível profundo e isto significa desmascarar o poder por trás do trono.
Hoje em dia, a midiocracia monopolizou toda a mediação entre indivíduo e realidade, fazendo da opinião pública seu patrimônio privado. A informação se tornou um recurso estratégico de controle político, fazendo deste a marca registrada de todo fenômeno comunicacional. Contudo, não é a informação, em si, a que produz conhecimento, mas a reflexão que tematiza o sentido que a informação contém. Tampouco é o contato direto com os fatos o que permite compreensão, mas o ter perspectiva, assim como a objetividade não se mede pela neutralidade, mas pelos critérios éticos que se assume. Então, para ter uma visão esclarecida sobre os acontecimentos, é preciso superar o cerco midiático e desvendar os conteúdos informativos que a imprensa propaga e, a respeito dos quais, nem ela própria é consciente.
O que acontece no Brasil não pode ser considerado a partir do que se exibe midiaticamente. Essa informação só produz confusão e não permite entrever o que realmente está em jogo. As denúncias de corrupção governamental é um teatro montado para os ingênuos em geopolítica, que é o modo como se está definindo a nova reconfiguração global. Nesse sentido, a possível destituição da presidente Dilma não está longe de tudo o que vem acontecendo a partir do golpe em Honduras e Paraguai.
Sob a nova nomenclatura implantada pelas guerras de quarta geração, um golpe de Estado pode agora prescindir do uso da força militar. O “impeachment” é uma nova modalidade do conceito de “golpe suave”, que impõe o “smart power” como uma forma de reduzir as expectativas democráticas dos povos, sem alteração da ordem constitucional e promovida pela própria institucionalidade democrática. O que poderia parecer um contrassenso não é mais que a constatação de uma capitulação jurídica que a esquerda continental não soube tematizar.
Algo que a visão economicista da esquerda latino-americana não entende é que o neoliberalismo não é simplesmente um modelo econômico. Não é politicamente que o neoliberalismo penetra em nossos Estados, mas juridicamente. A doutrina do choque nos mostra como o dogma neoliberal penetra em nossas sociedades, mas não nos ensina como chega a se encarnar na própria estrutura do Estado. O que acontece no Brasil é uma demonstração do modo como o regime normativo dos Estados é capturado pelo conceito de direito que patrocina a atual hegemonia financeira da centralidade do dólar.
Algo que o marxismo padrão não chegou a esclarecer é que o capitalismo é impossível sem um marco jurídico que torne possível o desenvolvimento da lógica do capital. O próprio Marx destaca que, na realidade, não vemos relações econômicas, mas, ao contrário, vemos estas relações no espelho das relações jurídicas. Sem um direito que justifique e legitime o roubo e a pilhagem (ao ser humano e à natureza) que são, em última instância, o conteúdo do conceito de riqueza moderna, o capitalismo seria impossível.
O regime normativo que inaugura o direito moderno-liberal é o conteúdo que o capitalismo promove na subjetividade moderna. A partir de Hegel, o direito expressa a propriedade como determinação da liberdade do indivíduo moderno; ou seja, o direito moderno é concebido para a defesa da apropriação do que era comum, por isso “o privado” da “propriedade privada” é a “privação” que se faz aos demais do que era comum. É um direito pensado para os ricos. Se este direito estrutura o regime normativo de um Estado, então se entende que esse Estado só desenvolve uma política antipopular.
Por isso, o neoliberalismo realiza uma desmontagem do caráter nacional de nossos Estados e reconfigura nossas constituições à mercê do novo sujeito do direito atual: o capital transnacional. Os novos tratados comerciais, como a Aliança do Pacífico (extensão do Trans Pacific Partnership ou TPP, e do Trade In Services Agreement ou TISA), são uma clara demonstração disso, estabelecendo uma subordinação dos próprios Estados a uma legislação que protege as empresas de qualquer reivindicação de soberania.
Nossos governos haviam iniciado uma recuperação do caráter nacional de nossos Estados, mas sem a alteração do regime normativo que o neoliberalismo havia implantado previamente. Agora, que se tinha obtido, mesmo que minimamente, a estabilidade requerida para impulsionar as economias, é a partir do próprio sistema constitucional que se produz uma recaptura do poder. Mais uma vez, a esquerda entrega em bandeja de prata um país à mercê de um novo assalto conservador.
Algo que já deveria ser assunto de avaliação da ciência política é a obstinada denúncia de presidencialismo que a direita continental promovia. Uma das premissas da democracia neoliberal, inventada pelos ‘think tanks’ estadunidenses, é a distribuição do poder político, retalhando atribuições constitucionais que pudesse ter uma cabeça – não disciplinada – governamental, para desviá-lo principalmente ao Legislativo, onde é possível estabelecer a lógica dos lobbies e, desse modo, sempre controlar o Executivo. Essa é a democracia estadunidense, onde o presidente não exerce poder, simplesmente o administra; por isso, o voto é irreal, porque o presidente, ainda que prometa tudo, não pode fazer nada, e o poder por trás do trono atua comodamente a partir das câmaras. Por isso, para este tipo de democracia incomoda que um presidente pretenda recuperar atribuições constitucionais, a partir das quais possa promover uma radical transformação do Estado.
É curioso como as acusações de corrupção governamental sempre surgem assim que aparece a predisposição de realizar uma “limpeza” estatal. Isso acontece no Brasil e é até manchete no New York Times, do dia 15 de abril: “ela não roubou nada, mas está sendo julgada por um bando de ladrões”. Esta situação começa desde que Dilma, em 2011, começa a efetuar “limpezas” em organismos públicos.
Algo que é fundamental na implantação do neoliberalismo é a geração de uma cultura de corrupção política, pois só desse modo podem os próprios compatriotas colaborar com a um desmantelamento do caráter nacional do Estado. Desse modo, a política se torna subsidiária da economia: as empresas financiam campanhas políticas e compram políticos para influenciar o próprio poder político (o poder de Eduardo Cunha no Congresso brasileiro – o principal impulsionador do “impeachment” contra Dilma -, provém exatamente do poder que lhe oferecem os políticos favorecidos com a montagem de corrupção que se originou dos acordos com empresas ligadas ao financiamento de campanhas e compra de políticos, em troca de favores e influência legislativa para se beneficiar de contratos públicos e estatais). O neoliberalismo não só promove a desregulamentação bancária, como também a imoralidade política. A política se torna administradora do poder retalhado que o poder econômico lhe confere. O próprio Estado se encontra, uma vez desmantelado, refém do recurso que os setores empresariais podem lhe proporcionar.
Estes setores se encontram, a partir do neoliberalismo, muito comprometidos com o dólar. De modo que seus interesses não se encaixam em uma recuperação do caráter nacional do Estado. Que Eduardo Cunha seja o principal aliado do vice-presidente Temer, demonstra uma orquestração do Congresso, que busca algo mais que uma simples destituição constitucional. Trata-se de algo que só pode ser escavado na política profunda e que escapa das considerações meramente locais. O que está em jogo no Brasil é o próprio destino da América do Sul. Não porque no Brasil se dirima uma fatalidade, mas, sim, porque o desfecho do “impeachment” estabelecerá, no futuro, a derrota geopolítica de toda a América do Sul, no novo tabuleiro geopolítico multipolar.
A destituição de Dilma provocaria a sucessão constitucional, ou seja, a assunção à presidência de seu vice-presidente Temer, que é o favorito, nesta disputa, dos interesses estrangeiros. Temer é a versão brasileira de Macri, cuja missão imediata é, e assim está demonstrando, recolocar na Argentina uma economia alinhada à hegemonia do dólar. Desse modo, seria reestabelecido o projeto das elites, em uma situação global já não tão encantadora para os Estados Unidos.
Não se trata apenas de destituir Dilma, mas também de anular Lula, para uma nova cooptação absoluta da economia do gigante sul-americano. Por trás de todo o teatro midiático, está a restauração neoliberal em condições que merecem a urgência dos Estados Unidos em isolar a América do Sul da influência da China e Rússia e de toda opção que signifique, para nossos países, se separar da hegemonia estadunidense.
O fator geopolítico vem por esse lado. Tanto os Estados Unidos como a Rússia já vêm declarando seu mais que certo abandono, não só da Síria como de todo o Oriente Médio. Isto significaria não só o desligamento dos conflitos suscitados por lá, como também a mudança do próprio teatro de conflagração geopolítica global para outra parte do mundo. Os Estados Unidos concentram seu poder bélico no Extremo Oriente, mas seu mais atualizado ‘neomonroeismo’ está concentrando seus esforços em recuperar o que considera seu continente de toda a influência que reduza em algo sua importância. A partir da doutrina Bush, os Estados Unidos foram perdendo presença em quase todo o mundo. A própria obstinação no Iraque e Afeganistão lhe custaram, entre outras coisas, perder o controle sobre a América do Sul.
Tanto a Ucrânia como a Síria demonstraram a fratura de um mundo unipolar e que está propiciando uma nova guerra fria. Dois blocos antagônicos se enfrentam em todo conflito que persegue a reposição de um mundo unipolar. De um lado, os Estados Unidos, com seu braço armado (a OTAN), seu braço político (a União Europeia) e seu braço financeiro (o Banco israelense-anglo-saxão). Do outro, os BRICS, além do Grupo de Xangai, mas principalmente Rússia e China. O Brasil faz parte dos BRICS e uma união mais estreita entre Brasil e China significaria o fim da hegemonia estadunidense na América do Sul. A restauração neoliberal no Brasil busca a desconexão entre estes dois gigantes. Se o Brasil tiver o mesmo destino da Argentina, então o futuro do Mercosul, da Unasul e da Alba ficará seriamente comprometido e nossos países, que não podem viver à margem de uma integração econômica, ficarão reféns dos tratados comerciais promovidos pelo capital transnacional. A Aliança do Pacífico foi pensada para isso, pois dentro da doutrina Obama um ponto primordial é a contenção da China. Se os Estados Unidos promover esta contenção na própria área de influência da China, com maior razão farão no que consideram seu ‘backyard’ [jardim dos fundos].
Para tal finalidade, o Council of Foreign Relation, ou CFR, delineou o conceito geopolítico de “North-America”, que se expande até a Venezuela, como parte de um Caribe ampliado (que os Estados Unidos sempre consideraram como seu Mar Mediterrâneo). Este conceito estabelece a prioridade de contar com os recursos naturais e energéticos que provêm das bacias do Orinoco e do Amazonas, como base material para garantir a reposição da supremacia estadunidense no continente. A anulação geopolítica da América do Sul é essencial para esta reposição. Esta foi a clareza que tinha o presidente Chávez (por isso, era urgente seu desaparecimento). Nenhum outro presidente, nem sequer Lula, mostrou consciência desta perspectiva geopolítica, necessária na hora de ingressar de modo soberano em uma nova reconfiguração do tabuleiro geopolítico global.
Desfazer uma integração regional sul-americana, de caráter soberano, é fundamental para fragilizar os BRICS, sobretudo Rússia e China, pois o laço geoestratégico das potências emergentes teriam que se limitar ao velho continente, uma vez rompida a continuidade proporcionada pela África do Sul e Brasil (de Washington, orquestra-se os protestos estudantis em Hong Kong, a desestabilização na África do Sul, também os protestos contra a reeleição de Putin, assim como a confabulação com a família Saudita e o banco para baixar o preço do petróleo e implodir as economias da Rússia, Irã e Venezuela). Desconectar o Brasil supõe isolar a América do Sul da expansão do pacífico e não permitir, em hipótese alguma, um ingresso de nossa região, em melhores condições, na nova cartografia tripolar (Estados Unidos-China-Rússia) que não convém em nada à supremacia estadunidense.
A carência de uma leitura global de um mundo em transição nos fez perder a grande oportunidade de consolidar um projeto regional, quando o Império estava distraído no Oriente Médio. A resistência dos povos do Iraque, Afeganistão, Síria, Irã, etc., deu-nos a possibilidade de dar início a uma primavera democrática nestes lados; mas o triunfalismo do conquistado, que não era só mérito nosso, agora nos coloca em uma conjuntura já não tão favorável, onde as duas maiores economias da América do Sul vão se inclinando por uma nova capitulação muito mais entreguista que as anteriores. A colonialidade de nossas elites, tanto econômicas como políticas e até culturais, só podem manifestar um ânimo de resignação e, ainda que prodiguem um anti-imperialismo discursivo, isto só serve para a birra momentânea e a acusação unilateral para fora (até para admitir responsabilidades, a esquerda só saber olhar para fora).
Nesta conjuntura, onde a integração é mais difícil e o ficar isolados cancelaria o propositivo de nossas revoluções, é necessário repor de modo urgente as prerrogativas que pretendiam uma integração política e econômica, além de financeira e regional. Ninguém se salvará sozinho. A saída desta emboscada não pode ser outra que a conjunta. As críticas ao interior de nossos processos não podem perder de vista que, o que está em jogo, é a própria sobrevivência de nossos Estados. Se os governos demonstram algo de sensatez a esse respeito, deveriam ser os primeiros a ceder seu exclusivismo e infalibilidade para promover uma nova reconexão horizontal com o caráter popular-democrático que nossos povos haviam inaugurado, sobretudo indígenas. Uma nova integração não pode se reduzir ao meramente comercial, mas deve se propor em termos geopolíticos de uma reposição geoestratégica da região, para, desse modo, nos permitir um ingresso, nas melhores condições, no novo tabuleiro geopolítico global.
Assim como as políticas adotadas por Macri são insustentáveis, o mesmo aconteceria com Temer no Brasil. O novo tipo de acumulação financeira que os novos tratados comerciais orquestram é decididamente mais desapiedado e só pode conseguir os índices acumulativos que propõe, despojando todas as conquistas sociais alcançadas neste período. Como na Argentina, o que se ocorreria no Brasil é o caos (as conquistas sociais, e até culturais, constituíram um novo sentido comum que será difícil anular). Porém, este panorama não coloca sombras sobre as aspirações do capital financeiro, pois para as finanças, o caos e a guerra sempre constituem oportunidades para gerar lucros espetaculares.
Se os Estados Unidos desistem do Oriente Médio, pois já não podem contrapesar a superioridade bélica russa, restam-lhes assegurar sua área imediata de influência. E se para isso promove um conceito geopolítico de ofensiva estratégica, como é o “North-America” ampliado, então a anulação da América do Sul significaria sua balcanização. Essa é tristemente a obstinação de toda reconfiguração geopolítica: onde não há integração regional só resta sua balcanização. Quando se trata da sobrevivência – até das potências -, os fortes não encontram outra maneira de se manter a não ser à custa dos fracos. E os fracos são assim porque, em semelhante situação, antepõem suas particularidades e não apostam em sua complementação. Em um mundo compartilhado, ninguém é independente do todo, nem sequer os impérios. Se é independente na medida em que se toma consciência do grau de dependência que se tem, de modo a aproveitar essa dependência (porque não é unilateral) e torná-la recíproca. A independência é subjetiva, ou seja, é o tipo de relação que estabeleço que define minha condição.
Este panorama também é o que se vem definindo nas eleições que serão realizadas nos Estados Unidos. A favorita do poder financeiro e dos lobbies é Hillary Clinton (a quem já chamam “Killary”), e se a nova administração estadunidense recai na parte mais conservadora, que já não é só a republicana, então a terceira guerra mundial passa a ser uma opção inevitável. A visão provinciana euro-estadunidense da diplomacia e da política exterior do primeiro mundo não concebe um mundo compartilhado e essa limitação só admite a possibilidade da guerra.
Toda a propaganda atual está desenhada para legitimar uma situação limite. A revelação dos “Panamá Papers” é uma das tantas estratégias da guerra financeira contra os inimigos do dólar. Não em vão, o consórcio que investiga estas contas off-shore é curiosamente patrocinado pela CIA, a fundação Ford e a fundação Soros. A curiosa seletividade informativa dá mostras de uma interessada pesquisa, onde aparecem personagens do “eixo do mal” para abrasar mais o assunto.
Outra função a mais do circo midiático é que, pretendendo defender a liberdade e a legalidade, não faz outra coisa a não ser retalhar ainda mais a liberdade global. Porque esta operação não afeta o sistema financeiro, que necessita destes paraísos fiscais para, justamente, evadir as leis estatais. Esta operação só busca eliminar a concorrência e estabelecer como únicos paraísos fiscais aqueles que se encontram nas jurisdições dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Israel e Holanda para, desse modo, ter o controle total de todos os movimentos financeiros globais, legais ou não.
A importância geoeconômica da América do Sul é clara para as pretensões do conceito “North-America”. Para uma incorporação de nossa região, em condições prometedoras, em um mundo multipolar, se requer uma abertura para o Pacífico e uma conexão estratégica – soberana – com o gigante asiático. De modo isolado, isto não é possível e os estadunidenses sabem disso. Por isso, anulando o Brasil, anula-se uma aposta conjunta. Só regionalmente se estaria em condições de negociação favorável com alguma potência, do contrário, qualquer potência só nos subsumiria em seu projeto expansivo.
O conceito de “North-America” subjaz ao disciplinamento do Caribe, que começou com o golpe em Honduras, a incorporação do México neoliberal como abonador energético desta restauração expansiva, a desestabilização da Venezuela, o golpe no Brasil, a defenestração de Cristina Kirchner (quando mostrou seu entusiasmo de que a Argentina fizesse parte dos BRICS) e, até poderia se dizer: assenta como uma luva, a derrota da esquerda no Peru e o terremoto no Equador (estariam ativas as antenas do projeto HAARP?). A atual guerra fria financeira tem fins geoestratégicos contra os BRICS; e o interesse em reduzir a América do Sul ao conceito “North-America”, implodindo suas três maiores geoeconomias (Brasil, Argentina e Venezuela). Torna-se preocupante a nossa situação nesta encruzilhada.
A América do Sul se encontra polarizada entre o que resta da Alba e o auspício imperial da Aliança do Pacífico. Se o Brasil for absorvido pela restauração neoliberal, sua importância como promotor de uma integração regional (coisa que, é preciso dizer, nunca se propôs de modo decidido) se converterá em arrastar todos à capitulação. O Mercosul poderá ser excluído pela Aliança do Pacífico e os Estados Unidos controlarão novamente tudo para o seu próprio e exclusivo benefício (o CAFTA - Tratado de Livre Comércio entre Estados Unidos, América Central e República Dominicana - já está sob seu controle). A fratura geopolítica dará lugar a uma situação de caos e desestabilização regional e uma possível balcanização.
América do Sul se tornaria o lugar da definição geopolítica global, onde a grande supremacia estadunidense fundaria suas pretensões de restaurar sua hegemonia única e a reposição de um mundo unipolar. Para isso, conta com a cumplicidade das burguesias locais e de todo o sistema financeiro mundial, que é capaz de colapsar qualquer economia vulnerável ao padrão dólar. Agora, se compreenderá a razão pela qual era urgente e necessário o funcionamento do Banco do Sul e a consolidação de uma moeda regional. Só com a recuperação de nossas reservas internacionais teria sido possível dar um impulso decidido em nossa independência econômico-financeira regional. Isto envolvia a transformação de todo o marco jurídico imperante (da centralidade do mercado e do dólar), mas isso foi, justamente, o que não foi possível para a perspectiva colonial de nossos governos.
Pode ser que sejam anti-neoliberais, mas sua perspectiva não é pós-capitalista. Por isso, tudo o que conseguiram se encontra, agora, à mercê e ao gozo de uma restauração neoliberal.
A tecnocracia neoliberal, presente nos ministérios do setor econômico e financeiro, é o cavalo de Troia que não se soube descobrir a tempo (enquanto Dilma era defenestrada pela gigante midiática Globo, por sua ousadia de se pronunciar a favor de uma independência cibernética do Brasil, cometia a imprudência de confiar a Joaquim Levy – um funcionário do FMI – os cofres das finanças brasileiras, não fazendo outras coisa a não ser facilitar o seu trabalho de sabotagem; o que lhe valeu, depois, ser nomeado chefe financeiro do Banco Mundial). Como se deu conta o presidente Chávez - no caso da Líbia -, nossos próprios governos foram os encarregados em reafirmar nossa dependência ao sistema financeiro, causador do atual e iminente colapso econômico global. Por isso, o primeiro mundo, graças a nossa dependência, segue estável, apesar de sua aguda crise financeira. Das guerras multidimensionais que os Estados Unidos empreendem contra os BRICS, as guerras geofinanceiras são as que mais êxitos tiveram. Não outra coisa significa a espionagem cibernética da National Security Agency à Petrobras e que fez colocar o Brasil de joelhos quando revelou suas contas secretas. Também as sanções econômicas contra determinados países lhes foram mais efetivas que o poder militar.
Como saiu da recessão de 1929 o posterior vencedor da Segunda Guerra Mundial, ou seja, os Estados Unidos? A guerra sempre foi, no mundo moderno, o campo de oportunidades mais almejado no âmbito financeiro. O grave em nosso presente é que uma conflagração global entre potências passa pelo uso do armamento nuclear. Porém, até isto entra nos cálculos imperiais no momento de promover o desenvolvimento de bombas atômicas táticas, que são munições nucleares de pequenas dimensões, que acreditam diminuir os riscos do uso do arsenal nuclear de dimensões maiores, sem levar em conta o perigo que significaria a proliferação do uso massivo destas armas de caráter tático.
O conceito de “North-America” é uma clara resposta à nova visão estratégica que tinha nascido na Escola de Geoestratégia do Brasil, em 2008, e que se expôs na chamada “Estratégia Nacional de Defesa”; tomando em conta os âmbitos nuclear, espacial e cibernético e configurando duas áreas estratégicas: o Atlântico Sul e o Amazonas. Esta estratégia colocava, como é devido, um interesse detido nos assuntos de segurança nacional e defesa. Isto, que devia ter sido promovido pela Unasul, em seus melhores momentos, agora parece só constituir uma anedota. Este ano, Brasil anunciou, por meio de seu ministro do comércio, Armando Monteiro, a aceitação de pagamentos, por parte do Irã, em moedas que não sejam precisamente o dólar, com a finalidade de se desvencilhar das sanções econômicas dos Estados Unidos. O sistema financeiro global pode aceitar o comércio sul-sul, mas se isto significa colocar o dólar à margem, então a reação não demora.
A corrupção, o “impeachment”, a destituição de Dilma, etc., são parte do circo montado para o grande público. Mas, o que se aposta nesse circo é outra coisa. O destino de toda a América do Sul está em jogo, enquanto se incentiva, também midiaticamente, a desilusão e o desencanto de nossos processos (que vão além das vicissitudes dos circunstanciais governos). O desenlace do que acontecer no Brasil, marcará a disposição geoestratégica, seja de reclusão ou expansão, dos BRICS. Se o Brasil cair, a supremacia estadunidense terá uma carta estratégica para enfrentar as potências emergentes e contará novamente com os nossos recursos para uma nova reconquista do mundo.
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A fratura geopolítica da América do Sul começa no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU