22 Março 2020
Para o neuropsiquiatra Boris Cyrulnik, que desenvolveu o conceito de resiliência, nossas sociedades sairão profundamente transformadas da epidemia.
A reportagem é de Isabelle Francq, publicada por La Vie, 20-03-2020. A tradução é de André Langer.
Com relação à história, duas formas de consequências sociais são esperadas na situação atual. Algumas, imediatas, outras de efeito retardado.
Até agora, para a maioria de nós, o vírus só foi visível pela mídia. Nós só o conhecemos através de várias pessoas mortas e contaminadas e das decisões de proteção que nos são anunciadas todos os dias. Estamos nos adaptando a um perigo invisível, cuja origem não conhecemos, exceto o anúncio pela Organização Mundial da Saúde (OMS) de uma epidemia que teria se originado na China. E, mais especificamente, em casa, onde muitas epidemias virais já chegaram até nós: gripes, mas também epidemias bacilares, especialmente as pestes negras. Existem todas as condições para desencadear rumores. Por enquanto, não há muitos, mas se esse quadro persistir... Os sírios, provavelmente os judeus e certamente os chineses, serão acusados de terem trazido esse infortúnio.
Por falar nisso, muitos países já estão fechando suas fronteiras, porque sempre são os estrangeiros que são acusados de trazer a peste. Depois, quanto mais a mídia reportar diariamente um número crescente de mortos e infectados, mais grave será o impacto econômico já em andamento. A ponto de provocar escassez de alimentos e destruição de empregos. Veremos então mudanças políticas aparecerem. Novas concepções de vida surgirão. E, sem dúvida, assistiremos a uma mudança cultural. Toda vez que acontecerem desastres naturais como os terremotos, ou acidentes ecológicos como as inundações e a propagação de bactérias, sem esquecer as guerras, uma nova hierarquia de valores, um novo “ethos”, se estabelece.
Inicialmente, as pessoas se adaptam, como nós fizemos, por resignação. Isso sempre aconteceu, em todas as epidemias, de peste ou outros flagelos. De fato, a epidemia de encefalite de 1918 deixou mais pessoas mortas que a Grande Guerra e, comparativamente, quase nunca se fala dela, como se fosse mais aceitável.
Depois, quando a morte bate na porta ao lado, no vizinho, nos parentes, na família, as experiências passadas e os textos antigos mostram isso, as sociedades se dividem. Quando a morte se torna imediata, uma parte da população geralmente começa a rezar enquanto a outra se envolve em tipos de bacanal, com a seguinte palavra de ordem: rápido, vamos aproveitar a vida antes que também nós sejamos levados pela morte.
No Haiti, depois do terremoto, eu mesmo vi procissões de pessoas vestidas de branco, desfilando com lanternas e cantando hinos de louvor. Elas agradeceram a Deus por lhes enviar esse desastre para puni-las e fazê-las entender que não eram crentes o suficiente. Esse fervor era ao mesmo tempo bonito e perturbador. Outra parte da população, agrupando aqueles que poderiam ser descritos como “descrentes”, disse: devemos festejar imediatamente. Porque sempre que a sociedade é desorganizada, como em 1968, ou quando a morte está próxima, alguns começam a beber e a fazer amor de maneira desenfreada, como parece ter acontecido em Conciergerie durante a Revolução.
As consequências econômicas também são recorrentes. Antes da primeira peste negra aparecer em Marselha, em 1348, os camponeses eram servos, semiescravos, vendidos com a terra. Seus braços pertenciam aos proprietários. Após a disseminação, um em cada dois europeus desapareceu, quase não há mais camponeses e os franceses que permaneceram vivos se alimentaram muito mal. Os ricos imploram aos camponeses para que retomem seu trabalho. Em dois anos, eles conseguem ser pagos e, assim, tornam-se trabalhadores da terra, livres e respeitados.
Enquanto até então as casas estavam vazias, quando todos estavam de luto, o lar ganha uma importância que nunca teve. É onde você se sente bem, seguro. À medida que a casa se torna um refúgio, as cerâmicas e os tapetes chegam às mesas. A pintura, até então quase exclusivamente dedicada a cenas religiosas, começou a representar frutas, caça, peixes, especialmente no século XVI, com a propagação fulgurante da segunda peste negra, que também apareceu em Marselha em 1720. E à medida que os sobreviventes se reúnem, as famílias aparecem como grupos de proteção, um refúgio, um valor seguro.
Diante do Covid-19, ainda estamos no estágio da estupefação. Aguardamos, nos confinamos, esperamos. A contenção é um método probabilístico de impedir que a pandemia diminua ou reduza, mas não é fácil evitá-la, e as consequências sanitárias, econômicas, sociais e psicológicas serão significativas.
A proibição de fazer visitas a casas de repouso é uma faca de dois gumes. Obviamente, dessa maneira protegemos essas populações vulneráveis contra o vírus. No entanto, muitos idosos frágeis conseguem não morrer porque recebem regularmente visitas. Assim que são privados disso, alguns começam a definhar e até morrem. Ao isolá-los, podemos esperar uma onda de mortes em asilos, provavelmente comparável àquela registrada durante a onda de calor de 2003.
Por outro lado, que todos fiquem em casa é uma oportunidade para parar o sprint industrial e cultural desenvolvido por nossa sociedade. Esse sprint sobrecarregou os adultos – especialmente as mulheres, que foram mais afetadas pelo burnout do que os homens. Isso aflige os pais e debilita os filhos. E ao obrigar todos a se confinar e, portanto, a deixar a correria de lado, esse acidente viral está revalorizando o lar. As pessoas são obrigadas a se recolher na família. As crianças, particularmente enfraquecidas pelo nosso sprint social, serão os grandes ganhadores dessa situação, principalmente os bebês!
Desde que, obviamente, não contemos que elas são os portadores do vírus, caso contrário, elas se sentiriam culpadas. Mas parece pouco provável e penso que elas vão usufruir da presença de seus pais. Isso está de acordo com as recomendações do relatório da Comissão dos Mil Primeiros Dias (incumbida pelo Presidente da República de refletir sobre a situação das crianças pequenas, ndlr) que presido.
Emmanuel Macron deveria fazer anúncios sobre esse assunto no final de abril. O Covid-19 pode obrigá-lo talvez a mudar seu plano de trabalho. Mas esse acidente viral é ao mesmo tempo uma oportunidade de reunir famílias, proteger as crianças e preparar os espíritos para as nossas recomendações: a proteção e o fortalecimento da solidariedade com as mães e as crianças, em especial adiando o máximo possível a entrada das crianças na creche e a redução da velocidade da escola, que deve ver as crianças o mais tarde possível.
Os estudantes asiáticos, que formam o pelotão vencedor do ranking internacional Pisa, que serve como referência para diferentes sistemas educacionais, são, na realidade, vítimas de abuso escolar, o que não deixa de ter consequências físicas e psicológicas. Portanto, é urgente abandonar esse modelo e proteger a infância maltratada pela modernidade. Precisamos mudar a cultura e interceptar o sprint, a corrida pelo dinheiro e o sucesso individual. Mas penso que depois dessa crise, todos esses valores terão se tornado obsoletos.
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“Novas concepções de vida vão surgir. E, sem dúvida, assistiremos a uma mudança cultural", avalia Boris Cyrulnik - Instituto Humanitas Unisinos - IHU